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Passos N.136, Abril 2012

VIDA DE CL / AMÉRICA DO SUL

Geração Peru

por Alessandra Stoppa

Nas salas de aulas de uma universidade para os pobres de Lima, a vida do Movimento cruzou centenas de homens e de histórias. E cresceu. Da semente de três jovens professores, à “trama de uma sociedade nova”, num país de extremos, onde se vê a vivência do carisma entre os alunos, adultos e crianças que crescem penduradas nas costas das mães. Ou no meio da Amazônia...

“A floresta é um mistério.” Dizem que, quando chove, sente-se uma energia que se concentra até à última folha escondida. Uma força que penetra em tudo, violenta, como a luz do sol de hoje no teto entrelaçado desta grande cabana. Sob o teto de palha, as mesas de madeira com os bancos: é o refeitório de uma universidade, no meio da Amazônia peruana. Feliciano é um rapaz indígena de vinte e um anos que está estudando para ser professor. Fala asháninka. Antes de vir para cá, nem sequer sabia que a sua língua tinha verbos. “Falava, mas não sabia nada sobre ela”, e ri com gosto.
A comunidade onde nasceu e cresceu é a Charahuaja, a duas horas daqui pelo rio: trinta e oito famílias, sem luz, água ou estradas, que vivem da caça e da pesca, toda a sua força é a natureza. E ele nos fala de Dom Giussani: “Abriu-me os olhos. Nunca tinha me perguntado quem colocava diante de mim toda essa beleza. De que é feita esta realidade. E quem me criou? Quem sou?”. Olha satisfeito para os trinta hectares à sua volta, que eram floresta e onde agora surgem os barracões que servem de salas aulas, as plantações e o dormitório. Diz que ainda não sabe a resposta para aquelas perguntas. Mas quer pedir o batismo: “Giussani explica que é a possibilidade de renascer e de ter a felicidade. Então, é o início da resposta”. Faz uma pausa: “O mistério da floresta exige o batismo”.
Se podemos ver o coração puro e nu de Feliciano, é porque o carisma de Dom Giussani chegou a este ponto afastado da floresta além dos Andes, perto da cidade ao estilo faroeste de Atalaya onde, ao longo do rio Marankiari, o rio da serpente, se dão lições sobre O senso religioso. Também esta flor de graça da vida do Movimento no Peru surgiu, começando no fim da década de 1980, na capital de dez milhões de habitantes, na costa em que vive praticamente toda a comunidade, exceto algumas “ilhas”, aqui e ali.

Escurece muito depressa. A origem, por outro lado, sempre foi a UCSS de Lima, a Universidad Católica Sedes Sapientiae. Mais precisamente: três jovens professores italianos, três Memores, que vieram para cá em missão há vários anos: Andrea Aziani foi o primeiro a chegar, em 1989. E viveu aqui até o fim: morreu há quatro anos, de repente, depois de ter feito com que centenas de vidas se apaixonassem por Cristo através do fascínio forte e humilde de sua pessoa. Pouco depois chegaram Dado Peluso e Giambattista Bolis, conhecido por Tista. Ensinavam juntos em várias faculdades da Lima rica, até que um bispo pediu a ajuda de Andrea para construir a UCCS, a primeira universidade para os jovens desta paupérrima Região Norte e de sua coroa de colinas apinhadas de barracos. Começou em 1998, com os mesmos três que, aos sábados e domingos, distribuíam panfletos nas paróquias: como sede, um prédio com os tijolos à vista e um portão de ferro. “Hoje há cinco faculdades e seis mil estudantes. E chamam-nos das várias dioceses, para também começarmos cursos lá: de Tarma, no centro do País, a Churcanas, na fronteira com o Equador”, conta Tista, no segundo andar da UCSS. Chegou ao Peru dois meses antes do golpe de estado de Fujimori: toque de recolher obrigatório, carros armados e uma tristeza que todas as tardes o assaltava e não compreendia porquê. Depois percebeu que aqui escurecia muito depressa. “Tudo, até aquele pormenor, foi uma provocação do destino durante aqueles anos. Perguntava-me continuamente porque estou aqui.” Despede-se bruscamente, à maneira do Norte da Itália, e vai para a aula.
O impulso mais forte para a vida do movimento no Peru surgiu nestas salas de aula. Sobretudo, dos cursos dos primeiros três semestres que constituem o PerCurso de Dom Giussani, para todos os alunos. Ano após ano, foram muitos os que ficaram envolvidos pela experiência cristã e por aqueles três professores italianos. E ainda hoje, grande parte da comunidade peruana, cerca de duzentas pessoas, é feita de ex-alunos da UCSS que se tornaram pais e mães. E não são poucos, por sua vez, os que ensinam aqui na Universidade. Três andares de vidraças e de varandas que dão para a entrada e um vaivém contínuo de alunos.
“Se me guiasse pelo instinto, seria o último lugar onde quereria estar”, diz sem rodeios, Giuliana Contini, que é há seis anos diretora da Faculdade de Educação. Para ela foi um “triplo salto mortal” vir para cá depois de onze anos de missões na europeia Santiago do Chile: “Mas a Deus se diz sim, sem fazer cálculos. E sou eu que estou ganhando: concentro-me naquilo que aprendi, isto é, que as circunstâncias são sempre adoráveis, e descubro o que sai delas. E sou feliz, porque Cristo é cada vez mais evidente para mim”. Tem 71 anos e o olhar de uma jovem: “Aquilo que Giussani me escreveu no princípio é verdade: ‘No fundo, tudo é nada exceto amar Cristo’”, repete sem rodeios, sentada à mesa; nas paredes, as suas “simpatias” (Giotto, Mozart e os Dolomitas, onde nasceu). Desfaz rapidamente qualquer “poética do pobre”, ironiza sobre a negligência da mentalidade daqui e insiste no objetivo deste lugar: educar homens livres. Mas, o que é que isso quer dizer? “Eu os vejo: saem daqui jovens encaminhados, que intuem de onde nasce a liberdade. E não se trata da cultura, mas de perceber que há um significado para tudo: a cultura é só um instrumento.” A relação entre alunos e professores é “um retomar contínuo, porque cada instante é um instante para a liberdade que se reabre”, continua ela, enquanto mostra a “Sala Aziani”. Quando Andrea morreu, recolheram-se aqui todos os seus livros: “Assim os jovens podem tocá-los, lê-los, para eles é a sala de estudo que não têm em casa”.

O Bispo sem casa. Nesta zona de Lima “há quinze anos, não havia nada, só uma grande taxa de delinquência e 500 mil jovens entre os 14 e os 29 anos. Não havia ninguém que apostasse aqui”, conta oDom Lino Panizza, bispo de Carabayllo. A ideia da UCSS foi sua. A princípio não tinha casa, nem catedral, o seu escritório era o carro, com o qual circulava pela sua diocese de dois milhões e meio de pessoas: “Vi a situação da educação nas escolas. Desastrosa. Daí a Universidade, que é uma obra de Deus e que cresceu como sinal da Providência, como toda a minha vida”. Como a casa em que nos recebe, a dois passos da UCSS: “Uma noite apresenta-se do nada um senhor que nunca tinha visto, com um envelope: tinha feito uma promessa ao Padre Pio e tinha lido o meu nome numa revista. Lá dentro estavam 20 mil dólares, a quantia exata que me faltava para acabar de pagá-la”.
Muitos alunos vêm dos morros, as colinas de barracos. Só têm um dos pais, famílias desfeitas, muitas vezes para sustentar. É por isso que estudam e trabalham: há quem o faça de dia e siga os cursos noturnos, até às 22h30, depois janta, vai dormir e de manhã de novo ao trabalho. A Escola de Comunidade dos universitários também se divide assim: dois turnos, para quem tiver aulas de dia ou de noite. “Há alunos que trabalham de noite, e a minha primeira tarefa na aula é mantê-los acordados”, conta Paolo Bidinost, bebendo uma chicha morada no bar. É diretor de gestão e vive na casa do Grupo Adulto de Lima, no bairro de San Isidro, onde Andrea também vivia. “Era um homem totalmente definido pela fé”, conta ele: “Como se a sua única preocupação fosse afirmar Cristo, mesmo nos erros. Tudo o que está aqui tem a sua marca.” Isso se vê. Até nas crianças que têm o seu nome, Andrés, como o chamam aqui: filhos de pessoas que, olhando-o, começaram a desejar a vida. A sua presença é uma presença que nos invade. Tanto quanto ele era transparente. “Nunca se sabia onde é que estava”, conta Christian, que cresceu com ele: “Dava-se, consumia-se literalmente para se encontrar com as pessoas. Só quando morreu é que nos apercebemos verdadeiramente de quantos filhos tinha”. Como Giovanna. Encontrou-se com ele pequena, levando o pão às casas ao amanhecer, e hoje mora “lá embaixo, no nada”, ou seja em Villa el Salvador, em uma casinha de tijolos azuis: ao entrar, penduradas, estão as fotografias de Giussani com o Papa e de Andrea. Ou Sebastiana, uma menina de rua que dormia debaixo dos viadutos. Um dia, aproxima-se um homem, era Andrea: “Parou ao meu lado e beijou-me os pés sujos e feridos”. Ela nunca conseguiu esquecer aquele beijo.

“Professor, já não posso viver com ele” . A sepultura de Andrea é uma placa na relva num cemitério da periferia norte de Lima, ao lado da Panamerica, que corre ao longo de 5 mil quilômetros até ao mar, onde os pobres da floresta e dos Andes invadiram as colinas, que são dunas. Vivem em casas sobre a areia, passam o tempo na relva dos separadores do tráfico, como se fosse num passeio, entre os gases dos escapamentos dos táxis amassados e das Kombis abarrotadas que dirigem como loucos. “Andrea é uma pessoa que me lembra de dizer sim ao Mistério, agora”, diz padre Giovanni Paccosi, enquanto dirige. Grande amigo dele, ficou responsável pelo Movimento depois dele e hoje é pároco em Lima do Norte. Com o padre Paolo Bargigia, de Florença como ele. Amigos do peito desde o tempo dos colegiais, descobriram juntos a vocação e hoje encontram-se aqui em missão. A amizade deles é uma lufada de ar fresco, bem como a casa em que moram. Ali, entre os compromissos da paróquia que, como explica Paolo, têm “dimensões industriais, como tudo em Lima”, há um acolhimento contínuo aos jovens trabalhadores, às crianças, aos amigos dos amigos. Fora da porta, o campo de futebol está decorado como uma igreja, com tendas e faixas, porque, entre primeiras comunhões e crismas, são mais de 150 de cada vez.
Ambos são também professores na UCSS: à noite, juntamente com os outros professores, contam o que acontece dentro e fora das aulas. “Depois de uma aula sobre O senso religioso, uma aluna aproxima-se de mim: ‘Professor, depois do que ouvi, já não posso viver com ele: quero casar-me’, conta Marialuisa. “Alguns pedem os sacramentos, como a Ciel, que decidiu crismar-se depois de vir ao happening.” Aconteceu o mesmo com cada um dos amigos que aqui estão: Karina, Giampier, Katty, Andreita... Todos eles tomados plenamente por Cristo através de uma lição, uma frase, um sinal em que experimentaram aquilo que diz Marialuisa: “Há pessoas que veem o teu coração no íntimo: é este o milagre. A quem é possível?”.
A mesma intensidade encontra-se também nos “últimos” a chegar. Teresa está aqui por uma estranha história de fidelidade ao próprio coração: conheceu o Movimento há três anos, depois de ter procurado a verdade nos estudos de filosofia e durante os verões na biblioteca em Heidelberg, desilusões e tentativas até que “encontrei um olhar que nunca tinha visto e depois li esta frase: ‘O fato de Cristo’. Disse comigo: o fato? Mas que existe, existe mesmo? Foi uma explosão”, e diz com o rosto comovido: “Descobri que a verdade é um abraço”.
Entre os mais velhos está Modesta, que dirige o CIDIR, um centro para a formação dos administradores públicos, e Daniela, que acompanha os projetos da AVSI: contam que “há alguma coisa além de você que age no trabalho cotidiano. Você nem percebe porque vê ‘apenas’ o seu trabalho, mas, com o tempo constrói-se a trama de uma sociedade nova”. Você entende isso no dia seguinte, em Huachipa, onde a Cesal trabalha, a ONG espanhola que deu vida a uma creche, uma escola de costura e um centro de alfabetização e nutrição que ajuda mais de 200 famílias. Em um lugar onde as crianças passam os dias penduradas nas costas das mães ou dentro das formas de argila em que se fazem os tijolos. Em volta, o deserto.
“No Peru só há extremos”. Lucio é um professor de arte muito inteligente que explica o retablo, os retábulos de altar de madeira que enchem as igrejas de Lima, dramáticos e coloridos como a vida aqui. “Também a natureza é de extremos”, diz ele. “É um país tropical com uma neve perene. Há a floresta amazônica e o deserto de Nazca, onde não chove há 1500 anos. Há montanhas de seis mil metros e o canyon mais fundo do mundo, o Cotahuasi.” E há uma história feita de santos. Os franciscanos, que partiam dois a dois do mosteiro de Ocopa, a 4 mil metros sobre os Andes, para evangelizar na floresta e nunca mais voltavam.

A fila de sapatos. Você lembra deles no Pachacamac, 40 quilômetros a sudeste de Lima: no meio de rochas e de estradas poeirentas, está a casa das irmãs do movimento Pontos Coração. Por vontade do padre Thierry de Roucy, o fundador, a sua missão em todo o mundo é sustentada pelo trabalho da Escola de Comunidade. Quase todas francesas, encontram-se a 600 metros de uma cidadezinha de 1500 pessoas: “Não fazemos nada, só coisas sem importância”, diz a hermana Leonor. “Visitamos as casas, para nos encontrarmos com as pessoas.” Estão ali, e basta. Como o nome da ordem diz: Servas da Presença de Deus. “Esta manhã encontrei dois trabalhadores rurais em uma trilha, percebi que queriam falar um pouco do poço e da colheita. Só queriam que eu parasse.”
Na manhã seguinte parti para a floresta, para Atalaya, onde encontramos Feliciano e onde a Universidade da floresta nasceu do encontro entre o Movimento e um bispo franciscano, Gerardo Zerdin, o Monseñor dos indígenas. É o chefe da Diocese de San Ramón: 80 mil quilômetros de floresta e rios. Esloveno, chegou em 1975 como seminarista. Viveu na pele o terrorismo e muitos anos nas comunidades indígenas, fazendo tudo como eles: hoje é um homenzarrão com um colete de caça que parece do Rambo e que, quando o avião está para levantar voo, faz o sinal da cruz. “Queria fazer uma universidade para formar professores indígenas. Mas não encontrava ninguém que me ajudasse sem pensar no que podia ganhar. Dom Panizza me indicou CL.” E assim, hoje, há mais de 400 alunos, há Feliciano, que, com cinco amigos, todos de etnias diferentes, se encontra debaixo de uma árvore para ler Giussani. Tinham começado a fazê-lo com Angelica, uma Memor que, depois de algum tempo aqui, teve que ir embora. Como nos conta na UCSS, onde agora ensina: “Não queria nunca ter saído da floresta, foi um passo doloroso. Mas se não abandonar continuamente aquilo que ‘penso’ que está certo, não vivo: quando estou com os meus preconceitos estou triste, não avanço. Pelo contrário, quando, por um instante, não os escolho, descubro verdadeiramente a realidade”.
De regresso a Lima, vamos à creche Dom Giussani, em Zapallal, na periferia do norte. Aqui tudo é areia, pó, lixo. Uma fila de sapatos, pendurados em uma corda estendida entre os telhados: “São os troféus dos bandos de criminosos”, mostra-nos Vanessa, a diretora da creche, sem precisar se explicar. Também ela teve uma vida pobre: “Uma tarde ajoelhei-me: se isto é a vida, não quero viver”. Depois, acabou por ir para a UCSS e, entre os seus professores, estava Padre Michele Berchi, aqui em missão até 2008: “Ia para o trabalho e continuava a pensar na aula, perguntava-me porque me ardia assim o coração”. Até que o ouviu falar de João e André: “Comecei a chorar e comecei a segui-lo”. Tudo se tornou diferente. Procurou no Facebook o pai, que tinha abandonado a ela, à mãe e aos irmãos para ir para os Estados Unidos: “Escrevi-lhe: ‘Encontrei Deus e por Ele te perdoo’”. Começou a fazer caritativa com as crianças daqui, até transformar os quartos da paróquia, de criações de frangos e porcos, em uma creche. “Sempre odiei a ideia de ser professora, porque isso queria dizer que continuaria pobre. Quando tive que decidir, tinha na cabeça uma imagem diferente da minha vida, mas o meu coração estava fervendo. Era Deus que queria o Seu coração aqui”.
(nos números anteriores: Argentina, Brasil, Paraguai e Colômbia)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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