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Passos N.137, Maio 2012

VIAGENS PELA AMÉRICA LATINA

Algo completamente diferente

por Davide Perillo

Uma creche pela qual você entende o que é o cristianismo. Os olhos de Amparito, as mães do seu bairro... E todos os rostos encontrados em uma metrópole a 2.800 metros de altitude. Fomos ao Equador, onde cresce uma amizade (e uma história) da qual “você nunca pode dizer que entendeu tudo”

As crianças estão sentadas em fila, no pátio, atrás do portão azul. A professora diz algumas palavras e entoam uma canção de boas-vindas. Depois, atiram-se nos seus braços correndo, acompanhando-o no universo delas, feito de salas de aula e desenhos, livros e pequenos trabalhos manuais para mostrar orgulhosamente ao convidado que chegou de longe. Aqui impressiona a ordem e a beleza. A sensação de que as coisas estão onde devem estar e podem ir para onde devem ir, começando pela sede de futuro destas crianças, que todas as manhãs atravessam as avenidas esburacadas de Pisuli, na periferia noroeste de Quito, e entram na Ojos de cielo. Creche modelo, como lhe chamariam na Europa. Aqui, é muito mais do que isso. É algo muito diferente da pobreza e da violência do bairro, que se conta entre os mais difíceis do Equador. “E, no entanto, quem a faz são elas, as mães e as pessoas do lugar”, nos diz Stefania Famlonga, responsável local da Avsi e ponto de referência também da creche, que nasceu em 2006, a partir de um projeto da Ong italiana: “Isto é que é valor agregado”. É verdade. A tal ponto, que bastaria contar muito bem a história da Ojos de cielo para nos darmos conta mais uma vez do que é o cristianismo. Um fato que muda-o a partir de dentro. Algo que torna o homem mais homem e uma mãe mais mãe.
Stefania, com uns olhos muito azuis, uma risada que ressoa, uma pele coberta de sardas sob os caracóis ruivos, é uma Memor Domini. Está aqui desde 2003, “antes estava na Romênia”. É ela a responsável pelo Movimento no Equador. Trabalha para a Fundação Avsi desde 2004. Desde o primeiro instante dedica-se a projetos para a educação, postos à prova em campo e não nos manuais sobre o desenvolvimento. Aqui, por exemplo, começou a ir de casa em casa para conhecer as famílias, para fazer uma coisa semelhante àquela que, por estes lados, chamam Pelca, preescolar en casa. “Acompanham-se os pais – mães, sobretudo, e muitas vezes sozinhas – no trabalho mais difícil: educar. Reuniões, encontros, momentos de convívio em que se enfrentam os problemas práticos: a escola, a alimentação...”. Começou assim. Algumas mães se envolveram. Muitas abriram as portas. Nasceram sete micro-creches familiares em outras tantas casas do bairro: mães que acolhem filhos de outras mães, para que elas possam ir trabalhar. Até chegar à creche, precisamente, porque são tantas as necessidades. Agora isto significa quase oitocentas crianças e jovens, auxiliados de maneiras diferentes, “porque, junto com a creche, acabamos de abrir um centro juvenil”. E com ela trabalham quarenta pessoas, entre educadores e funcionários, quase todas oriundas da zona e todas empenhadas numa rede de relações que se assenta numa matriz sólida: “Nós nos encontramos todas as segundas-feiras para julgarmos juntos o trabalho e nos confrontarmos com os textos de Dom Giussani”, diz Stefania. Impressiona-nos ouvir Pilar: “Tenho três filhos, mas foi aqui que descobri o gosto de criá-los e compreendi que sou eu que preciso ser educada”. Ou Marta, que trabalha aqui há cinco anos: “Como mudei? Antes era muito rígida, até comigo própria. Constantemente me fazem uma pergunta: por que está aqui? É um desafio. É estar diante daquilo que Deus está me dando. Quando me sinto triste, olho para esta gente. E recomeço”. Ou ainda Roberto, ex-seminarista: “Aqui encontrei de novo o que estava quase perdendo”.
Saio dali com a impressão nítida da força que tem uma obra que se apresenta com um rosto claro, preciso, até no último detalhe. Daquilo que constrói, muito além dos números com que normalmente se mede o desenvolvimento. Penso nisto enquanto o carro desce numa alameda larga e cheia de buracos e ao lado se aproxima Quito. Dois milhões e meio de habitantes numa metrópole estranha, que se estende sobre um planalto de 2.800 metros, com o aeroporto no meio (“de vez em quando as aterrissagens fazem saltar algumas telhas: é o deslocamento do ar...”), os bairros burgueses que lembram a Europa da década de 1970 e um centro histórico que se conta entre os mais belos da América do Sul. A igreja dos jesuítas, com o seu barroco encantador. A talha do convento franciscano. A Plaza Grande. E umas quarenta igrejas e edifícios que, no pequeno espaço de umas poucas ruas, desenham toda a história do cristianismo daqui.

O GOSTO DE DIEGO. No fundo, é a partir daquela história que nascem os rostos que encontro no almoço. Diego e Vidal, Lucia e Rita. E também Pato, Cristian, Sara... Até a Amparito, que já tínhamos encontrado pela primeira vez há três anos, quando contou a sua história no Meeting de Rímini. Uma história dramática: uma filha que morreu com um ano e quatro meses, outro aos quatro anos, uma terceira que agora é adolescente e que criou sozinha, porque o pai foi embora e constituiu outra família. Já a ouvimos falar sobre a maneira como o encontro com a Stefania e o trabalho na Avsi mudou a sua vida. Em tudo. Mas tornar a vê-la entre as mulheres do seu bairro, aquelas que também foi procurar nas casas uma a uma, ou descobrir a referência que é para as professoras da sua creche, é outra coisa. Fala-nos dela, da crise das últimas semanas, com o pai da sua filha que tentou voltar e que depois foi embora novamente. Fala das dificuldades em criar a Amanda, que está envolvida com uma série de jovens que, como ela, são frágeis e muito bonitos na simplicidade e na fadiga com que fazem Escola de Comunidade com a Stefania (“o que aprendo com eles? Comovo-me sempre”, conta-lhe ela depois: “Estão tão desarmados... E é naquela idade que tudo se decide. Estando com eles, você tem diante de si as exigências fundamentais da sua vida. As perguntas mais verdadeiras”) e, à maneira deles, agarram-se à única coisa capaz de suportar feridas duríssimas: o amigo que mataram, o pai na prisão... “Mas eu agora posso dizer: todas as circunstâncias são a confirmação de que aquilo que vi é para mim”, insiste Amparito. E ouvi-la falar de sacrifício com olhos que riem e estão tristes ao mesmo tempo, nos deixa sem fôlego: “O sacrifício é impossível se não for por Cristo. Mas Ele responde no Seu tempo, não no meu. Se eu viver isto sozinha, é só raiva e cansaço. Pelo contrário, nesta companhia, é uma dor. É uma coisa completamente diferente”.
“Uma coisa diferente”. São palavras que voltam com frequência, quando contam sobre a amizade que cresceu nos últimos tempos e que torna a florescer também aqui, como em outros países da América Latina, em torno de pessoas simplesmente alegres porque Cristo existe. “É uma novidade”, diz padre Alberto Bertaccini, italiano, transferido para Guayaquil, onde fui encontrá-lo alguns dias depois: “É uma coisa pela qual uma pessoa até faz, sem esforço, trezentos quilômetros para vir encontrar os outros”. Mas uma novidade que tem, ao mesmo tempo, traços frescos e maduros, capazes de fazer com que Diego, contabilista numa fábrica de móveis e estudante noturno de contabilidade, diga: “Aqui estou descobrindo o gosto de viver a vida”. Ou Vidal, que encontrou o Movimento durante uma viagem de trem quando estava estudando na Itália, há cinco anos: “A cada vez que nos vemos, a experiência está mais perto da origem”.
Mas a certeza sobre a nascente desta novidade também está madura. “A Escola de Comunidade”, responde sem rodeios Sara, americana, que estudou em Bolonha e que também veio parar aqui, com a Avsi: “Redescobrimos o gosto de julgar as coisas. E nos ajudamos a fazê-lo”. Gosto que Kathy resume assim, numa frase que vai ficar gravada para mim em castelhano: “Me mantiene despierta”. Mantém-me acordada. Assim como ficam marcadas as palavras de Lucia, que trabalhava em uma agência de viagens e que agora trata da secretaria de CL: “Encontrei-os numas férias no Cotopaxi, o vulcão. Percebi que podia mostrar-me por aquilo que eu era. Antes, tinha uma cara para cada lugar. Aqui posso pôr tudo o que sou nas mãos de Cristo. E cada dia é um desafio. Você nunca pode dizer que entendeu tudo”.

O ÔNIBUS E O OCEANO. Nunca. Nem quando a história começa a alongar-se. Neste momento, no Equador, o Movimento tem quase vinte anos. Em 1992 chega o padre italiano Dario Maggi, membro da Fraternidade Sacerdotal do Apóstolo São João. “Quatro anos na paróquia com os jovens, mas não acontecia nada”, conta ele diante de uma xícara de café no salão do edifício de Ibarra, onde é Bispo há um ano e meio: “Pedi ajuda a Dom Giussani. O padre Carlo d’Imporzano começou a vir encontrar-me de vez em quando. Era a companhia de que precisava: uma amizade que me construísse, para que eu conseguisse ser padre também”. Até chegar aquelas férias com alguns jovens em Conga, perto do Cotopaxi, em 1996. Na primeira noite, o padre Dario escreve num quadro as palavras da canção Povera você. “Pois bem, se tivesse de dizer quando o Movimento começou no Equador, diria que foi ali”. Diante daquelas palavras de giz.
As outras etapas chegam aos poucos. Foi precisamente padre Dario quem iniciou as primeiras obras, como a experiência do Pelca, e seria também por intermédio dele que a Avsi conseguiria fixar-se posteriormente. Ou como a cooperativa universitária Cuet, que nasce na esteira da cooperativa italiana Cusl, para oferecer serviços aos universitários e depois se transfere para a frente da educação. A chegada de outros sacerdotes (Francesco Rizzo, que agora é pároco em Portoviejo, depois padre Alberto). A nomeação episcopal de padre Dario (auxiliar de Guayaquil). E a abertura da casa dos Memores Domini, em Quito. “Uma história complexa”, conta Stefania sorrindo: “Aqui as coisas são instáveis, mais do que em outros lugares. Eu sempre disse: se tivermos que continuar aqui, o Senhor nos dará trabalho. Até agora tem sido assim”. Ela tinha começado numa instituição bancária antes de chegarem a Quito os projetos da Avsi. Loretta, italiana, ensina na universidade. Rosa, espanhola, trabalha para a Cesal nos projetos de desenvolvimento de construção de habitações entre a capital e Portoviejo.
De Quito a Portoviejo são quarenta e cinco minutos de voo e outros tantos de ônibus. Naquele ônibus há um mundo. O aposentado que conta porque os chapéus Panamá, na realidade, nasceram aqui (“depois o fabricante mais importante transferiu-se para lá e roubaram-nos o nome”), a estudante cujo rosto se ilumina ao ouvir a palavra “Itália”. Não há porto, o oceano está a trinta quilômetros de distância. Mas vai vê-lo, pois se faz uma parada em Crucita para um encontro com as pessoas que trabalham para a Cuet. Estão ali num encontro, conduzido pelo padre Rizzo. Eles também acompanham famílias e projetos de educação, nos campos da região. E é bonito ouvi-los contar “a descoberta, com o passar do tempo, de uma razão maior no estar com eles” (Ivan), a compreensão de que “não temos que lhes resolver os problemas, mas caminhar com eles: o trabalho é de um Outro e nós somos apenas instrumentos nas mãos de Deus” (Jennifer) ou como “fico contente quando uma mãe me diz que depois do encontro conosco está educando a segunda filha de uma maneira diferente” (Laura). “Mas a satisfação verdadeira é a relação com Cristo”, observa padre Rizzo. Em Portoviejo também há um grupinho que floresce. Ou que refloresce. Como no caso de Olinda, uma senhora de meia-idade que abre inteiramente a casa aos amigos “e está contente com o fato de voltarem a fazer os jantares do Movimento, como antes”. Dez pessoas ao redor de uma mesa. Já tínhamos visto alguns deles em Quito, como Pato e Rita. Mas é um prazer passar duas horas com eles, a ajudando-se incansavelmente, para verificarem “porque a realidade é positiva”.

“OFEREÇO-TE UM PEDAÇO DE MIM.” Na manhã seguinte, a última etapa: Guayaquil. Palmeiras, calor e salsa a cem decibéis na rádio do micro-ônibus que, após três horas de viagem, lhe deixa no centro, perto da paróquia do padre Alberto. Ele passou treze anos em missão no Paraguai com o padre Aldo Trento (“fizemos uma companhia total um ao outro: foi com ele que aprendi a obediência, a regra da confissão semanal e a gratidão”), depois ficou um período na Itália devido a problemas de saúde (“diabetes, enfarte, uma válvula mecânica no coração... um pouco de tudo”) antes de atravessar novamente o oceano. “O médico me disse: você está em risco. Mas se houver um hospital, estar aqui ou em Guayaquil é a mesma coisa”. Um impacto duro: “Tinha deixado o Cumadin nas malas e elas não chegaram. Eu sabia que aqui não havia certos medicamentos. Ao fim de quatro dias, tiveram que me amputar um dedo. Disse: Senhor, não posso te dar outra coisa. Ofereço-te um pedaço de mim”.
E ele está lhe oferecendo muito mais. Está lhe oferecendo a vida, com uma simplicidade total, por meio das relações com as pessoas daqui. Chego até a conhecer alguns, antes que o relógio me empurre para o aeroporto. E permanecerão dentro de mim. Como Juan e Erica, os pais da Giovanna. É uma menina deficiente, que padre Alberto preparou para a Primeira Comunhão. “Foi através dela que nos tornamos amigos. Primeiro tínhamos medo. Agora não. Sabemos que ela também faz parte de um caminho”. Por quê? Sorriso. Um instante de silêncio. “Outro dia, na rua, uma pessoa parou para olhá-la e disse: ‘Mas onde é que está Deus?’. Um tempo atrás eu não saberia o que responder. Agora sei: Está ali, nela. Porque os seus olhos são sinal de Cristo”. São olhos de céu.
(As reportagens anteriores foram: Argentina, Brasil, Paraguai, Colômbia e Peru)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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