Vai para os conteúdos

Passos N.138, Junho 2012

DIREITOS

Fora do bunker

por Ubaldo Casotto

Poder é um termo ambíguo. Direito, mais ainda. No entanto, no debate público seu significado é dado por óbvio. E há um mal entendido em relação à sua finalidade: “O florescimento do homem”. É assim que JOHN FINNIS, jurista de Oxford e Notre Dame, define a felicidade. E explica porque a liberdade religiosa é muito “laica”

O professor John Finnis nos concede esta entrevista no hall de um hotel em Milão, antes de sua participação em um encontro Universidade Católica. Foi muito disponível, como sabem ser os grandes mestres. Ele é uma autoridade indiscutível no campo do direito natural, divide suas aulas entre a Notre Dame, nos Estados Unidos e Oxford, na Europa. E como todos os verdadeiros inovadores argumenta: “Toda a minha filosofia da razão prática, da lei natural, da justiça, da lei positiva e os meus trabalhos sobre a teologia natural seguem profundamente a linha, até onde se pode julgar, de São Tomás de Aquino, que considero um fundador do pensamento moderno”.

Professor, o título de sua conferência é “Poder, direito, democracia. Como reconhecer aquilo que é justo”. Poder é um termo ambíguo, geralmente temos uma percepção negativa dele, contemporaneamente é uma realidade indiscutível – em suas obras o senhor fala da necessidade de autoridade. Como superar essa ambiguidade?
Tenho refletido muito sobre o fundamento da relação entre autoridade e responsabilidade. Responsabilidade é uma palavra com vários significados, sou responsável por aquilo que fiz no passado ou por aquilo que digo... O poder é aquele tipo de responsabilidade que tem a ver com o dever de servir ao bem comum. É uma responsabilidade em sentido geral, que estabelece os fundamentos do direito, e não diz respeito só à política, mas também à família e à sociedade.

Direito é uma palavra mais nobre do que a palavra poder, mas hoje também é ambígua. Os direitos humanos, sobretudo, deveriam ser o princípio que se opõe ao poder, mas assistimos a outro fenômeno estranho: torna-se direito somente aquilo que o poder reconhece.
A categoria dos direitos humanos tornou-se um ramo da lei, tomou as características da lei positiva. Lei feita por um código e pela constituição que criam as leis positivas. Na mentalidade pública e da elite, os direitos humanos são considerados uma parte da lei, mas deveriam, ao contrário, ser considerados uma fonte de lei e um potencial fundamento para a crítica das leis. Certamente são reconhecidos e absorvidos pela lei, mas ao mesmo tempo estão acima das leis e diante de leis ineficientes.

Então, pode-se dizer que o ponto de resistência ao poder é a pessoa, com seus direitos e sua liberdade?
Sim, se o conceito de pessoa for corretamente entendido. A pessoa na sua característica ontológica de unidade de corpo e alma, a pessoa concebida como desejo de satisfação, que é um florescer, compreender e realizar os verdadeiros bens da pessoa.

O senhor está descrevendo uma concepção “religiosa” de pessoa. No discurso em Bundestag, e precedentemente na ONU em 2008, Bento XVI aproxima o princípio da laicidade do direito ao fundamento transcendente da pessoa. Em suma – desculpe o paradoxo –, para ser verdadeiramente laico é preciso ser, de algum modo, religioso?
Como disse o Papa em Berlim, o cristianismo nunca impôs um direito religioso, e nesse sentido, demonstrou-se muito “laico”. Não se apoiou sobre uma lei revelada, mas sobre uma lei fundada em “razão e natureza”, onde a natureza não é somente a natureza empírica de cada sociedade. Até os melhores filósofos, e falo de Platão e Aristóteles, entenderam que a natureza empírica abre ao transcendente. Tiveram alguma compreensão do transcendente. Mas não tiveram um conceito claro de criação e liberdade. A revelação esclarece aquela compreensão inicial da pessoa e da liberdade orientada em direção ao transcendente. A razão precisa de esclarecimento para entender a verdadeira natureza do homem.

Provavelmente, o problema da razão, sobretudo em sua acepção racionalista, é que ela está restrita ao âmbito da lógica e das ciências. O Papa insiste sobre a necessidade de “alargá-la”. Em Bundestag fez aquele maravilhoso exemplo do bunker no qual está englobado o pensamento moderno: “É preciso voltar a abrir as janelas, precisamos voltar a ver a vastidão do mundo”. Parece que a primeira característica dessa razão aberta seja o maravilhamento. O senhor está de acordo?
O Papa chama a atenção para uma concepção de razão que vai além da razão positivista e cientificista, que nega o dogma pelo qual apenas a ciência pode fazer propostas justas, pelo qual a filosofia se limita a seguir servilmente a ciência, e não pode dizer nada além. Essa é uma incompreensão catastrófica do conceito de razão.

Poder e direito não são um fim em si, mas estão subordinados ao fim. O senhor, em sua obra, os define como “o florescimento humano”. Bento XVI fala de “amplitude do sermos homens”. O que isso tem a ver com o desejo de felicidade que está no coração de cada homem?
Felicidade, em inglês, é uma palavra que se presta a incompreensão, pode facilmente ser entendida no sentido hedonista. Por isso, eu prefiro as palavras satisfação ou florescimento, porque levam a mente além do conceito limitado dos nossos dias e abrem a perguntarmos qual é a satisfação da pessoa, quais possibilidades estão abertas para nós. A era moderna sente a felicidade como algo do qual já sabemos tudo e sobre o qual não precisamos fazer perguntas.

O Papa insiste em dizer que “hoje” é mais difícil reconhecer aquilo que por si só deveria ser evidente: o bem e o justo. E denuncia uma mentalidade positivista e relativista cujas consequências são novas formas de escravidão do homem e a possibilidade de manipulá-lo até destruí-lo. O inevitável êxito do absoluto relativismo é o absolutismo da lei do mais forte?
Certo, relativismo e positivismo, mas o Papa também diz que hoje existem problemas novos, genuinamente novos. Enfrentá-los é a nossa dificuldade. Quanto às formas de absolutismo: se abandonamos o conceito da verdadeira fonte da responsabilidade e da autoridade em face da vontade arbitrária, de pequenos ou grandes grupos, e não temos uma fonte de verdadeira objetividade, diante deste poder não encontramos nenhum pretexto. A fonte genuína da resistência é o direito natural, palavra da qual, hoje, infelizmente nos envergonhamos. Há uma verdade do direito natural, a verdade do discernimento moral, ao qual todo intelecto que indaga pode fazer apelo diante do efeito dos poderes e das relações. A lei natural é uma fonte de crítica em relação aos costumes da lei, sem necessidade de fontes reveladas. Como diz São Paulo, aqueles que não possuem lei, a têm escrita no coração. Não que seja uma lei independente de Deus, mas pode ser um discernimento do bem e do mal ao qual é possível recorrer diante do mal, mesmo sem conhecer a fonte dessa lei.

E a liberdade religiosa?
Defendo o caráter constitucional da liberdade religiosa. A verdade em relação à situação humana é que não vive em um bunker sem janelas, mas é um relacionamento com o divino. Dito isto, existem os problemas em relação à característica das religiões. Algumas religiões escondem o rosto de Deus, outras têm práticas e crenças que são contra a razão e o interesse público. A liberdade religiosa também é cheia de ambiguidades. O Papa diz que os direitos associados à liberdade religiosa precisam, todos, de proteção se considerarmos que se embatem com uma prevalente ideologia secular (por exemplo, a China comunista), ou com posições religiosas majoritárias (como no mundo árabe). Precisamos defender a liberdade religiosa, mas ser extremamente conscientes dos problemas de relacionamento entre direito natural e as necessidades genuínas de ordem pública: a paz, os direitos dos outros e a moralidade pública. Cada um desses elementos deve ser compreendido no seu verdadeiro caráter como ratificado pela razão. A religião não deve, absolutamente, separar-se da razão.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página