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Passos N.139, Julho 2012

BENTO XVI

O dom precioso da fé

Ouvir o Concílio e fazer nossas as suas respeitáveis indicações constitui o caminho para identificar as modalidades com que a Igreja pode oferecer uma resposta significativa às grandes transformações sociais e culturais do nosso tempo, que têm consequências visíveis também na dimensão religiosa.
Com efeito, a racionalidade científica e a cultura técnica não tendem somente para uniformizar o mundo, mas muitas vezes ultrapassam os respectivos âmbitos específicos, na pretensão de delinear o perímetro das certezas da razão, unicamente com o critério empírico das próprias conquistas. Assim, o poder das capacidades humanas acaba por ser considerado a medida do agir, separado de qualquer norma moral. Precisamente neste contexto não deixa de sobressair, às vezes de maneira confusa, uma exigência singular e crescente de espiritualidade e de sobrenatural, sinal de uma inquietação que habita no coração do homem que não se abre ao horizonte transcendente de Deus. Esta situação de secularismo caracteriza sobretudo as sociedades de antiga tradição cristã e corrói aquele tecido cultural que, até recentemente, era uma referência unificadora, capaz de abranger toda a existência humana e de cadenciar os seus momentos mais significativos, desde o nascimento até à passagem para a vida eterna. O patrimônio espiritual e moral em que o Ocidente afunda as suas raízes e que constitui a sua linfa vital, hoje já não é compreendido no seu valor profundo, a tal ponto de não se captar mais a instância de verdade. Assim, também uma terra fecunda corre o risco de se tornar deserto inabitável, e a boa semente, de ser sufocada, pisada e perdida.
Um sinal disto é a diminuição da prática religiosa, visível na participação na Liturgia eucarística e, ainda mais, no Sacramento da Penitência. Muitos batizados perderam a identidade e a pertença: não conhecem os conteúdos essenciais da fé, ou pensam que a podem cultivar prescindindo da mediação eclesial. E enquanto muitos olham duvidosos para as verdades ensinadas pela Igreja, outros reduzem o Reino de Deus a alguns grandes valores, que certamente têm a ver com o Evangelho, mas que ainda não dizem respeito ao âmago da fé cristã. O Reino de Deus é dom que nos transcende. Como afirmava o Beato João Paulo II, “o Reino de Deus não é um conceito, uma doutrina, um programa sujeito a livre elaboração, mas é acima de tudo uma Pessoa, que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazaré, imagem do Deus invisível” (João Paulo II, Carta Enc. Redemptoris missio [7 de dezembro de 1990], n. 18). Infelizmente, é mesmo Deus quem permanece excluído do horizonte de muitas pessoas; e quando não encontra indiferença, fechamento ou rejeição, contudo deseja-se relegar o discurso sobre Deus para o âmbito subjetivo, reduzido a uma questão íntima e particular, marginalizado pela consciência pública. O coração da crise que fere a Europa, que é crise espiritual e moral, passa por este abandono, por esta falta de abertura ao Transcendente: o homem pretende ter uma identidade completa simplesmente em si mesmo.

Neste contexto, como podemos corresponder à responsabilidade que nos foi confiada pelo Senhor? Como podemos semear com confiança a Palavra de Deus, para que cada um possa encontrar a verdade de si mesmo, a sua autenticidade e esperança? Estamos conscientes de que não são suficientes novos métodos de anúncio evangélico ou de obra pastoral, para fazer com que a proposta cristã possa encontrar mais acolhimento e partilha. Na preparação do Vaticano II, a interrogação predominante à qual a Assembleia conciliar tencionava oferecer uma resposta era: “Igreja, o que dizes de ti mesma?”. Aprofundando esta pergunta os Padres conciliares foram, por assim dizer, reconduzidos ao cerne da resposta: tratava-se de recomeçar a partir de Deus, celebrado, professado e testemunhado. Com efeito, exteriormente por acaso, mas de modo fundamental não por acaso, a primeira Constituição aprovada foi sobre a Sagrada Liturgia: o culto divino orienta o homem rumo à Cidade futura e restitui a Deus o seu primado, plasma a Igreja, convocada incessantemente pela Palavra, e mostra ao mundo a fecundidade do encontro com Deus. Por nossa vez, embora tenhamos que cultivar um olhar reconhecido pelo crescimento do trigo bom também num terreno que se apresenta muitas vezes árido, sentimos que a nossa situação exige um impulso renovado, que aposte naquilo que é essencial da fé e da vida cristã. Numa época em que, para muitos, Deus se tornou o grande Desconhecido e Jesus simplesmente um grande personagem do passado, não haverá um relançamento da obra missionária sem a renovação da qualidade da nossa fé e da nossa oração; não seremos capazes de oferecer respostas adequadas, sem um acolhimento renovado do dom da Graça; não saberemos conquistar os homens para o Evangelho, se nós mesmos não formos os primeiros a viver uma profunda experiência de Deus.

Estimados Irmãos, a nossa tarefa primária, verdadeira e singular consiste em comprometer a vida no que vale e permanece, naquilo que é realmente confiável, necessário e último. Os homens vivem de Deus, dAquele que, muitas vezes inconscientemente ou apenas às apalpadelas, procuram dar um significado pleno à existência: nós temos a tarefa de O anunciar e mostrar, de orientar rumo ao seu encontro. Mas é sempre importante recordar-nos que a primeira condição para falar de Deus é falar com Deus, tornando-nos cada vez mais homens de Deus, alimentados por uma vida de oração intensa e plasmados pela sua Graça. Depois de um caminho de busca ofegante mas sincera da Verdade, Santo Agostinho finalmente conseguiu encontrá-la em Deus. Então, deu-se conta de um aspecto singular que encheu o seu coração de admiração e de júbilo: compreendeu que ao longo de todo o seu caminho, era a Verdade que estava à sua procura e que já o tinha encontrado. Gostaria de dizer a cada um: deixemo-nos encontrar e arrebatar por Deus, para ajudar cada pessoa que encontramos a ser alcançada pela Verdade. É da relação com Ele que nasce a nossa comunhão e é gerada a comunidade eclesial, que abrange todos os tempos e todos os lugares, para constituir o único Povo de Deus.
Foi por isto que desejei proclamar um Ano da Fé, que começará no dia 11 de outubro próximo, para redescobrir e voltar a acolher este dom precioso que é a fé, para conhecer de maneira mais profunda as verdades que constituem a linfa da nossa vida, para levar o homem de hoje, muitas vezes distraído, a um renovado encontro com Jesus Cristo, “Caminho, Verdade e Vida”.

No meio de transformações que abrangiam amplas camadas da humanidade, o Servo de Deus Paulo VI indicava claramente como tarefa da Igreja “chegar a atingir e quase subverter, mediante a força do Evangelho, os critérios de juízo, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação” (Exort. Apostólica Evangelii nuntiandi [8 de dezembro de 1975], n. 19). (...)
Estimados Irmãos no Episcopado, a missão antiga e nova que está à nossa frente consiste em introduzir os homens e as mulheres do nosso tempo na relação com Deus, em ajudá-los a abrir a mente e o coração àquele Deus que os procura e quer aproximar-se deles, orientá-los para compreender que cumprir a sua vontade não é um limite à liberdade, mas significa ser verdadeiramente livre, realizar o bem autêntico da vida. Deus é a garantia e não um concorrente da nossa felicidade, e onde entra o Evangelho – e, portanto, a amizade de Cristo – o homem experimenta que é objeto de um amor que purifica, conforta e renova, tornando-o capaz de amar e de servir o homem com amor divino. (...)
A nova evangelização tem necessidade de adultos que sejam “maduros na fé e testemunhas de humanidade”. (...) Vigiai e trabalhai para que a comunidade cristã saiba formar pessoas adultas na fé, porque encontraram Jesus Cristo, que se tornou o ponto de referência fundamental da sua vida; pessoas que o conhecem, porque o amam; e que o amam porque o conheceram; pessoas capazes de oferecer motivos de vida sólidos e credíveis. Ao longo deste caminho formativo é particularmente importante – vinte anos depois da sua publicação – o Catecismo da Igreja Católica, subsídio inestimável para um conhecimento orgânico e completo dos conteúdos da fé e para orientar rumo ao encontro com Cristo. Também graças a este instrumento, possa o consenso de fé tornar-se critério de inteligência e de ação, que abranja toda a existência.


DISCURSO NA ASSEMBLEIA GERAL
DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL ITALIANA
Sala do Sínodo, Roma, 24 de maio de 2012

© Copyright 2012 - Libreria Editrice Vaticana

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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