Vai para os conteúdos

Passos N.141, Setembro 2012

DESTAQUE - Férias Nacionais

O rosto de um mestre

por Ana Luiza Mahlmeister

Quais são as suas exigências mais autênticas, humanas, fundamentais, e o que pode responder a elas? Para o padre Pigi Bernareggi, de Belo Horizonte, esse é o verdadeiro desafio do cristianismo. O coração, assim como no quadro de Ícaro, de Matisse, é o ponto focal de tudo,

De 26 a 29 de julho, as férias nacionais de Comunhão e Libertação, em Angra dos Reis, reuniu 490 pessoas de todo o país. O tema, como proposto por padre Julián Carrón, foi a frase de Dom Giussani: “É o tempo da pessoa”. Uma provocação a estar diante de toda a realidade como protagonistas. Para enriquecer estes dias juntos, entre passeios, tempo livre, música, poesia de Leopardi, jogos e festa, foi relembrado que há exatos 50 anos aconteceu um passo na grande aventura dessa história chamada Comunhão e Libertação, quando alguns jovens de 20 anos vieram para o Brasil. Padre Pigi Bernareggi, que foi aluno de Dom Giussani no colégio Berchet de Milão, nos primeiros anos do Movimento, esteve presente em Angra e contou sobre a aventura do início e sua vinda ao país e como é “caminhar em direção de uma coisa indescritível, o fascínio do nosso destino”.
A seguir, a transcrição do diálogo com padre Pigi durante as férias nacionais, respondendo a algumas perguntas que surgiram espontaneamente da assembleia.

Quando você viu a frase “É o tempo da pessoa”, você dizia: “Vocês têm que seguir o Carrón. De fato, hoje a gente assiste a uma destruição que é igualzinha a destruição de quando cheguei ao Brasil, no início dos anos 60. Ou melhor, é outra forma de destruição, porque o mal tem centenas de formas com que ele age e o bem só tem uma forma. E o caminho é recomeçar tudo da pessoa”. Pode nos explicar um pouco mais sobre isso?
Pigi Bernareggi:
Eu falei que hoje é o tempo da pessoa como cinquenta anos atrás era o tempo da pessoa, porque o processo de desagregação do cristianismo formal está em pleno andamento. Não só aqui na América Latina, ou no Brasil, mas está em pleno andamento em nível de planeta. É uma corrosão planetária do cristianismo. As ideologias hoje têm meios de comunicação sofisticadíssimos, instantâneos, globalizados, e essas ideologias ao longo destes últimos 500 anos foram crescendo com um único objetivo: eliminar Cristo. Esse era o único objetivo também do Império Romano, das invasões bárbaras no Ocidente, fazer “tábula rasa” do cristianismo. Cada época da sua maneira. A linguagem e os instrumentos são diferentes, mas o objetivo é exatamente o mesmo. Nós éramos estudantes, com 15 anos, no primeiro ano do ensino médio, e foi dentro de um clima muito parecido, na Itália daquela época, no pós-guerra, ano 1954: a forma de investir contra o cristianismo era a forma do clima radical burguês, era uma forma intelectual, catedrática, era uma forma super-ideológica, super-refinada, que passava diretamente pela formação dos jovens. Começava pelos adolescentes essa forma de destruição programada, pensada, bem sucedida, justamente por causa de um cristianismo muito formal, muito “tradicionalista”, muito de paróquia, e portanto não era uma tarefa muito difícil arrebentar com essa imagem muito folclórica, muito “litúrgica”, muito solene. Era um verdadeiro arraso da formação cristã, através da escola, sobretudo da escola pública onde estudávamos. E todos nós, na nossa sala, aos 15 anos, estávamos muito desprotegidos contra essa pressão: éramos todos adolescentes vindos de famílias de tradição católica. Dentro desse contexto de rápido desmanche da experiência cristã, ou melhor, da posição religiosa cristã, é que apareceu na nossa vida nosso professor de religião, padre Luigi Giussani, e imediatamente, de forma assim contundente, nos soltou a sua proposta: “Antes de abandonarem o cristianismo vocês têm que verificar porque vocês estão fazendo isso”. Ele dizia: “É uma questão de lealdade”. Isso era muito significativo. A primeira vez que ouvi isso da parte de padre Giussani foi quando fui fazer o que eles chamavam de “raggio”, isto é, encontro dos jovens participantes da minha escola. Na reunião foi lido o Evangelho que falava da parábola do semeador. Na síntese, depois dos depoimentos quando jovens como eu tinham reagido positivamente diante da mensagem ele falou com toda clareza que a diferença do chão, de terra pedregosa ou terra boa, é sua lealdade diante do cristianismo. É uma questão de lealdade “levar a sério” para fazer uma verificação autêntica do que isso corresponde com a sua pessoa. A partir dessa proposta foram três anos de uma aventura verdadeira, porque depois da aula do padre Giussani vinha a do professor de História e Filosofia, que era um laicista, anti-católico, aliás, ateu proclamado de forma ferrenha. Então, saindo padre Giussani de sua aula, vinha pelo corredor este outro professor, inteligentíssimo, e os dois topavam no meio do caminho e começavam a discutir ali: “O que você está dizendo na sua aula? Como você demonstra que Cristo existe?” Juntava aquela turma de estudantes em volta deles e em vez de dar aulas dentro da sala era um debate público lá fora entre o professor de História e Filosofia e padre Giussani. Tudo isso gerava em nós uma percepção das coisas que nunca tínhamos ouvido, que devíamos ser leais com aquilo que recebemos, analisar, sentir, ver, para provar e depois, no caso, aceitar. Mas percebíamos que nós éramos completamente acríticos, completamente dogmáticos. Muito mais dogmáticos do que aquilo que o professor de História e Filosofia dizia contra a religião católica. Através de três anos na escola neste tipo de experiência fomos sendo peneirados e começamos a levar a sério o cristianismo. Em vez de jogá-lo fora como lixo dogmaticamente, começamos a levar a sério, sobretudo o cristianismo como presença de Cristo vivo entre nós hoje e agora. O padre Giussani nos deu aula por três anos no ensino médio sem nenhuma vez abrir a Bíblia. Nunca! Nunca lia a Bíblia ou fazia comentários eruditos. Ele indagava constantemente conosco qual a sua profunda exigência de verdade, de justiça, de vida, e como se posiciona diante do cristianismo. Desta forma é que fazemos uma comparação com a nossa realidade de hoje.
Talvez os instrumentos sejam diferentes, talvez os tipos de argumentações são diferentes – isso quando existem argumentações, pois muitas vezes nem existem argumentações –, mas estamos em um processo de demolição sistemática do cristianismo. Ainda mais no Brasil, que é um país, que quando eu vim da Itália, em 1964, fiquei deslumbrado como o povo acreditava em Deus. Qualquer um, gente rica ou gente pobre, todos levavam Deus a sério. A mesma coisa que eu senti no ano anterior quando minha mãe me mandou passar férias na Irlanda e eu fiquei lá no meio de um povo cristão, todos eles, e tudo o que se fazia era imerso dentro de um clima cristão. Exatamente o contrário da minha terra, onde eu vivi os primeiros quinze anos da minha vida assistindo a demolição sistemática do cristianismo dentro da escola com uma tradição anticristã e antirreligiosa em geral, porque o problema era ateísmo mesmo.
Por isso, conversando com vocês, achei que hoje o problema é o mesmo. O problema não é salvar determinadas estruturas, mas verificar o quanto a minha pessoa tem a ver com o cristianismo. Se vocês fossem budistas e eu quisesse aplicar aqui a mesma técnica do padre Giussani, eu diria: peguem o livrinho onde fala o que é o budismo, leve a sério aquilo ali, monte uma comunidade budista para verificar se isso satisfaz à sua humanidade ou não. E depois vamos conversar. O problema autêntico não é qual é a melhor religião, como se fôssemos ao supermercado e pudéssemos escolher. A questão é redescobrir quais são as minhas exigências autênticas, como está aqui representado neste quadro de Matisse, o Ícaro. O Ícaro era aquele personagem mítico que construiu asas de cera para voar nas estrelas, e o coração vermelho é o ponto focal de tudo. Quais são as suas exigências reais, humanas, fundamentais, e o que pode responder a essas autênticas exigências? Este é o verdadeiro desafio do cristianismo que para mim é o mesmo hoje. Não vejo muita diferença em termos essenciais. Já em termos de modalidade, às vezes eu converso com os jovens e parece que eu estou em outro planeta, pois a linguagem e os parâmetros são outros, mas o coração, no fundo, é o mesmo.

Como foi que Dom Giussani pediu pra você vir para o Brasil nos anos 60?
Pigi:
Todos os anos fazíamos férias comunitárias de um mês nas montanhas da Itália, diante do cenário das Dolomitas, em um hotel não tão luxuoso, com colchão no chão. Quando chegava seis horas da tarde, quando o sol se punha e a montanha ficava vermelha, como se estivesse pegando fogo, nós íamos para um grande terraço e rezávamos juntos uma dezena do terço. Depois tínhamos um tempo de silêncio e contemplação. Um dia, neste tempo de silêncio, Giussani me cutucou de lado e disse: “Você quer ir para o Brasil?” Eu tinha 23 anos, estava no fim da universidade. O meu projeto era fazer mestrado e doutorado, começar como professor e fazer carreira universitária. E eu falei: “Deixa eu pensar um pouco”. Terminou tudo e eu passei a noite toda pensando. “Que negócio esquisito”. Eu sabia que tinha todo um movimento e que desde 1962 já tinha ido muita gente ao Brasil, passado por Macapá, Belo Horizonte, e eu admirava essa gente toda, era uma maravilha, mas nunca pensei nisso. “Porém, pensando bem, acho que vou aceitar”. No dia seguinte falei com o padre Giussani: “O senhor está certo do que estava me falando ontem?” Ele: “Claro”. E eu disse “Então, eu estou aqui à disposição”. Ele: “Sabia”. Pronto! Muitas vezes você acha que a vocação é toda uma preparação mística, uma preparação existencial, mas ali foi uma questão de segundos. E, de fato, de todos os que vieram naquela época para cá, o único sobrevivente sou eu. Alguns morreram, outros voltaram para a Itália, e eu estou aqui. Então me convenço que nós temos que entender a vocação no sentido muito menos confuso e muito mais realista. Gostei quando o Luca falou agora que o padre Fabio lhe respondeu: “Eu não preciso de engenheiros, mas você precisa ficar junto daqueles que te ajudam a caminhar”. Gostei, porque essa é uma indicação concreta, simples, e muito própria do cristianismo: porque o cristianismo é Deus que se fez homem, que entrou nas nossas misérias, nas nossas limitações humanas, no instante que passa. O passado já passou, o futuro ainda não chegou, e nós existimos no instante que passa. Portanto, a vocação é um toque, é um sopro. O Apocalipse fala muito isso: “Eis que estou na porta e bato. Quem abrir eu entrarei e cearei com ele”. Se não, passa. Mas não é só para vir ao Brasil. É todo dia, no dia a dia, nas questões mais terra-terra. Prestar atenção nas filigranas, como nos notas dos reais, na luz razante, porque no tecido sutil do instante que passa, ali está o Cristo, a vontade de Deus. Isso é muito tênue, mas tem uma grandiosidade espantosa, a grandiosidade pela qual Deus se faz realmente carne nas estruturas concretas, reais, da vida.

Eu conheci o Movimento em 1978 e eu me lembro que o sábado era um dia muito importante porque vinha a São Paulo o padre Pigi de Belo Horizonte. Eu ia lá na PUC te ouvir e eu lembro que não entendia absolutamente nada. Mas depois de algumas reuniões, convivendo com vocês, eu percebi uma grandeza naquele caminho. Dizemos que “é o tempo da pessoa”, mas se nesta confusão que você descreveu, se a gente não tem a sorte de encontrar um mestre que tenha paciência de ficar conosco não saímos do enrosco que é o mundo que vivemos. Então eu queria perguntar para você se é possível fazer esse caminho partindo da pessoa sem o mestre. O mestre é fundamental mesmo ou não?
Pigi:
Eu corrigiria a terminologia que você usou. Não é sorte, é graça. Encontrar um mestre não é uma sorte, é graça, é projeto de Deus. Na vida das crianças, os pais são graça, não são acontecimento por acaso, é o arcabouço da pessoa. Nós não somos, como os renascentistas, o centro de todas as coisas. A revolução copernicana diz: não é mais o sol que gira em torno da terra, mas é a terra que gira em torno do sol. Fizeram a revolução copernicana naquela época e diziam: “não tem mais Deus no centro do mundo, o centro somos nós, e Deus se existir é um satélite que passa em volta”. Mas nós não somos o centro do mundo. O centro do mundo é Deus, e Deus age, não fora, mas dentro. Portanto, o mestre é aquele que está dentro do tecido concreto da sua vida. Por isso o padre Fabio falou para o Luca: “eu não preciso de um engenheiro, mas fica junto daqueles que te ajudam naquele instante, porque o caminho está ali”. E não se preocupe, você é você, e naquele caminho você vai. Essa concretude de sentir a presença de Deus que me toca, que me mostra, que me indica. Deus se fez homem, se fez gente, se fez comunidade, se fez presença, se fez família, se fez coisa real. Não é conversa de botequim. Não, não. É aquela simplicidade real, verdadeira, que toca no cotidiano. Tanto assim que diz o ditado popular: “as palavras convencem, o exemplo arrasta”. O que é um exemplo? É a palavra feita carne numa pessoa. O Verbo se fez carne e habitou entre nós. Quando falamos de comunidade não falamos de um quadrado de gente em que a “união faz a força”. Nosso conceito de comunidade é que este mundo que nós formamos é onde Cristo está agindo nesse momento, na minha família, no sacramento do matrimônio: porque naquele instante banal, ao qual você não dá valor nenhum, Deus está criando o seu caminho, Deus está dando a sua vida. É esta concretude. O cristianismo é realmente o “banho-maria” de Deus na nossa realidade, no instante que passa. É belíssima a frase da creche Etelvina Caetano de Jesus, da Rosetta: “Mestre é não apenas aquele que nos mostra o caminho, é aquele que caminha conosco”. É a autoridade. Autoridade é esse compartilhar a aventura do dia a dia. Eu digo aventura porque graças a Deus é aventura, se não seria uma vida muito chata. É aventura com uma grande novidade acontecendo a todo momento. A grande luta nossa agora em Belo Horizonte é convencer o povo de Deus que comunidade não é ir à Igreja aos domingos, encher aquela Igreja toda, e depois tchau e até a próxima. É fazê-los descobrir que a comunidade começa dentro de cada um e depois passa por todos os seus relacionamentos do dia a dia, comunidade de família primeiro, comunidade de rua, de vizinhos, comunidade de bairro, de paróquia, comunidade de universidade, de escola. Esta é uma carência tremenda. Para quem começou tudo na escola pública como nós, no ensino médio, nas condições mais adversas, mas com essa presença concreta, é duro ver a insensibilidade de hoje de criar comunidades nas escolas e nas universidades. Sou pároco de paróquia e deveria ficar muito satisfeito que viessem todos na minha paróquia, mas tenho que analisar qual é o perfil do meio de vida cotidiana dessa gente, e é ali que é preciso se formar a comunidade cristã: justamente por essa capacidade que Deus tem de colocar no nosso dia a dia, na simplicidade cotidiana, quem é autoridade, quem nos faz crescer dentro da realidade concreta e física do nosso dia a dia. Então, é muito possível essa graça, esse dom, que é a forma que Deus inventou para se comunicar ao mundo. Nasceu da Virgem Maria na gruta de Belém, aos 30 anos deixou a casa dele e saiu pelo mundo afora com 4, 5, 10, 12 colegas, morreu sozinho na cruz com a mãe e João, subiu aos céus e está sentado à direita do Pai. Onde está o Pai? Onde brota a nossa vida. E de onde brota a nossa vida? Do íntimo de cada um de nós. O Cristo ressuscitado no seu corpo glorioso está no íntimo de cada um de nós, de quem está ao meu lado, está aqui. E eu vou caçar Ele aonde? Nós temos que redescobrir o catolicismo. Se não, transformamos o cristianismo em um evento folclórico, de massa, de emoção, de grito. Por isso eu acho que o fato de a Igreja católica estar diminuindo na nossa época exige de quem quiser ser católico essa redescoberta.

Eu também sou dos tempos velhos e até hoje eu tenho certeza que toda vez que eu penso na radicalidade do encontro com Cristo na minha vida eu penso em alguma coisa que eu aprendi de você. E eu queria te perguntar o que é que você aprendeu de novo no encontro com Cristo nestes últimos anos?
Pigi:
Nestes últimos anos fizemos e estamos fazendo a experiência da vida eterna, definida por Santo Tomás desta maneira: Totius Vitae Simul una et perfecta possessio (A posse simultânea única perfeita da totalidade da vida). Uma definição dessas não define nada, porque nós não temos capacidade de visualizar o nexo lógico de tanta coisa: nós estamos caminhando em direção de uma coisa indescritível, o fascínio do nosso destino. Hoje dou muito valor à palavra “destino” que aparecia dezenas de vezes nas conversas com o padre Giussani. Enquanto somos jovens estamos entretidos naquilo que fazemos, queremos fazer isso e aquilo, e quanto mais idoso você fica, mais o destino aparece. O destino é igual ao rio que quando chega perto da cachoeira aumenta de velocidade, e aquilo chama a atenção. É essa preponderância do destino na vida da pessoa que vai como um rio, essa preocupação com o destino, essa inclinação a meditar o destino final, a glória eterna. A visão que temos agora chama a atenção, é um símbolo, da Visão, da qual não temos a mínima ideia. Sem essa ideia dominante, sem esse atrativo constante, a vida fica chata. Mesmo sendo jovem você tem que ter ideal, só que se tornando mais velho o ideal se torna cada vez mais imponente, cada vez mais sólido, cada vez mais toma conta, até o ponto em que você se une definitivamente a este ideal. É um conselho que eu vou dar aos que têm menos de 74 anos como eu: não se furtem ao fascínio do destino final. Porque esse negócio de eficiência, de tecnologia, de abraçar o mundo com as mãos, esse negócio de dominação, essa coisa toda é o contrário. Quanto mais você se sente fascinado pelo destino final, tanto mais você, de um lado não fica angustiado pelas coisas que estão passando, e do outro lado se torna mais útil aos outros porque se torna testemunho para eles. Você me perguntou o que eu aprendi nos últimos anos, e se eu pudesse dizer a tônica desse negócio, eu diria que é a perspectiva do destino final.
E queria explicar mais um detalhe sobre aquilo que ele falou antes, que eu dava umas aulas e ele não entendia nada. Eu falava a respeito da “evidência”, que nós perdemos ao longo de 500, 600 anos de racionalismo, que é o seguinte: nós dominamos o mundo porque nós, com a nossa mente, fabricamos o mundo, nós catalogamos o mundo, nós selecionamos o mundo. Esta é a famosa definição de razão do frei franciscano Guilherme de Ockham, o qual dizia que “o primeiro objeto da inteligência humana é o conceito”. Nós fabricamos, nós produzimos conceitos, e esses conceitos é que catalogam, é que estabelecem, é que planejam o mundo. Racionalismo! No início do século passado, Edmund Husserl, fundador da nova mentalidade, que ainda não é espalhada e até hoje não se espalhou, mostrou que não é assim, que a razão é a percepção da evidência, é colher a realidade como ela é, é se deixar dominar pela impressão clara da realidade como ela é. Isso o padre Giussani falava para nós nas escolas. Esse olhar que nós temos não é uma dominação do mundo: é a capacidade de colher o que o mundo tem, o que a realidade tem, a beleza da realidade, a novidade da realidade, a imprevisibilidade da realidade, a riqueza infinita da realidade. É essa imediata transparência vivida entre a inteligência e a realidade. O que isso tem a ver com o cristianismo? Tem, porque se você não tiver essa capacidade de colher a realidade como ela é, você nunca vai perceber a ação de Cristo na sua vida. Nunca! Essa capacidade de objetivamente sentir, perceber, a grandeza do Ser que se apresenta. Com o nosso racionalismo nós limitamos, opinamos sobre tudo: pessoas, filhos, trabalho, a Amazônia, os rios, as montanhas. Quer dizer, nós sabemos tudo com as nossas capacidades racionalistas. Mas praticamente nós transformamos o mundo “à nossa imagem e semelhança”. Mas como de nosso não temos nada, nós destruímos o mundo. A música da Adriana Mascagni que foi ouvida aqui mostra isto. Eu me lembro fotograficamente o dia em que ela cantou pela primeira vez essa música. Foi num encontro em Varigotti, e quando ela cantou foi uma impressão fantástica. É a fotografia do que se passa conosco: “Deus, pra mim olho e eis que descubro: não tenho rosto. Olho no fundo e vejo o escuro que não tem fim”. Este é o ser humano sem Deus. Quem tem coragem de admitir isso, quando se embeleza frente ao espelho para todo mundo ver que eu sou a melhor? Quem tem coragem de admitir isso, quando faz musculação lá na academia para aparecer? “Só quando percebo que Tu és, como um eco eu ouço a minha voz e renasço com o tempo da lembrança”. É a intuição imediata da presença de Deus, no instante que passa, a percepção de que Deus é tudo para mim: eu sou amor de Deus, eu sou criação de Deus. O Novo Catecismo da Igreja Católica neste ponto é fantástico, porque antes de colocar todas as coisas, como o artigo do credo, os mandamentos, o Pai Nosso, etc, antes de mostrar tudo isso tem um primeiro trechinho: nossa autoconsciência é a percepção da presença de Deus. Sem essa motivação não se entende nada. O cristianismo sem esta fonte originária, constante, da intuição viva da presença de Deus, se torna uma tradição que respeitamos, que tratamos bem até certo ponto, cumpre os mandamentos, cumpre tudo, mas não me diz nada. Essa intuição aqui da música da Adriana eu queria que ficasse como mensagem.
Assim, o mundo poderá ser mudado, pois estamos em uma sociedade violenta, gananciosa, dominadora, esquematizante. Por isso vêm as drogas, o tráfico, porque, qual é o jovem que aguenta? Se eu não tivesse estas coisas, ficaria doido. Antes de conhecer padre Giussani e começar essa trajetória, eu passava pelo Liceu Berchet, perto de um edifício grande com quatro ou cinco estátuas no alto, olhava e pensava: “Eu sou como uma dessas estátuas”. Porque eu ia para casa e não fazia nada. Sem esta percepção da fonte absoluta e infinita da vida, que me faz ser neste instante, que autocompreensão posso ter de mim? Que autoestima posso ter, a não ser que eu sei muito bem que sou mentira? Se nós conseguirmos reinjetar no fundamento do cristianismo esta coisa, que quer dizer transformar completamente o cristianismo, todo esse desamor, violência, não tem necessidade. Temos que pegar o essencial e assim construir um mundo novo.


TESTEMUNHO

Fragmentos que constroem uma história


A primeira coisa que eu quero gritar é “isso é viver”. Para mim estes dias têm sido assim e foi fantástico ver e ouvir o Pigi aqui. Eu estou no Movimento há muitos anos e também ouvia o Pigi e não entendia nada, mas foi uma emoção muito grande vê-lo aqui. Ele me marcou muito quando dizia “não se furtem ao fascínio do destino final”, pois eu, de um modo ou de outro, não renunciei ao fascínio primeiro, e por isso posso estar aqui hoje, anos e anos depois. Eu já vim em todas as férias do Movimento e não pensava que seria assim. Na sexta-feira, no passeio, eu vi meus dois filhos no outro barco, com o barco balançando e fiquei aflita: “O Pedro não me obedeceu, deve estar com frio, a roupa dele ficou aqui, o que eu faço?”. Eu fiquei desesperada! Mas tive mais uma vez que confiar. Depois, conversando com as pessoas me contaram que o Pedro estava petrificado de medo de entrar na água, mas em vez de fazer como eu e não descer, ele viveu a experiência de se entregar para um bando de amigos que o fotografaram na boia. Eu que não tenho marido, pois ele morreu, e vivo com meus dois filhos, quando deixei que fossem ao acampamento [de Carnaval] sem que eu fosse, na volta pensei: “Eu já posso morrer”, pois antes achava que não podia morrer porque precisava cuidar deles. E ontem fiz a mesma experiência de que se eu confio, se eu fico junto, se fico confiante, posso até morrer, pois meus filhos estão seguros. Não sou eu que resolvo o problema dos meus filhos. Isso não quer dizer que no próximo passeio de barco eu não vá entrar em desespero, mas para mim isso foi muito marcante. Nessas férias eu me senti como aquela estudante dos primeiros tempos, com uma vivacidade que já não tinha mais. Fiquei muito feliz de encontrar tantas pessoas. E queria dizer que mesmo sem entender o que o Pigi dizia no início, os fragmentos daquilo que eu entendi tem sustentado a minha vida nos últimos trinta anos. Eu não sei alinhavar nada, ouço o Bracco e não entendo, e lembro que já ouvi essas frases, mas não entendo muitas coisas. Mas na vida, quando as coisas apertam, foram os fragmentos daquilo que eu entendia que me fizeram caminhar, me trouxeram até aqui, claro que junto com a companhia. Tenho essa certeza que foram os pouquíssimos fragmentos que entendi que têm me sustentado a mim, meus filhos, minha mãe e até os meus parentes que moram fora. Essa aventura que a gente começou, que me fascinou quando eu era muito mais nova, isso tem sustentado a minha família inteira. Eu nunca consegui trazer ninguém da minha família para o Movimento, mas, por exemplo, minha prima que já veio em algumas férias e para quem eu falo muito de Dom Giussani, outro dia estava com um problema no trabalho e me surpreendeu quando me ligou e perguntou: “Estou ligando para saber o que é que Dom Giussani diria disso”. Ela é crente! E fiquei tão feliz porque percebi que mesmo que eles não estejam no Movimento estão olhando para mim, mesmo quando não admito isso. Então, para quem é mais jovem do que eu, quero repetir o que o Pigi dizia: “não se furtem ao fascínio dessa experiência”.

(Cida, de São Paulo, durante a assembleia final nas férias de Angra dos Reis, julho 2012)



 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página