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Passos N.141, Setembro 2012

SOCIEDADE - Sarajevo

A guerra invisível

por Toni Capuozzo

Uma tragédia para a qual já não temos palavras. As fronteiras de hoje, “traçadas nas almas”. E um hino nacional mudo. A lembrança daqueles 44 meses de cerco, vividos “pessoalmente” por um jornalista europeu. E o que resta da Bósnia e da indiferença de então

Se fôssemos olhar os números, o balanço teria que ser cruel: a Bósnia-Herzegovina está longe até da Europa em crise. A pobreza, que no ano de 2000 afetava 15% da população, há dois anos atingiu o patamar de 18,2% e hoje afeta 25% da população, um quarto do país. Meio milhão de aposentados vive com o valor mínimo. Os desempregados chegam a 43% da população; o salário médio gira em torno dos novecentos e cinquenta reais por mês. Dizemos euro para facilitar o cálculo, porque o marco conversível vale exatamente a metade de um euro; o que, como moeda, confere um caráter meio surreal à Federação, que é filha dos acordos de paz de dezessete anos atrás: é o único canto da Europa onde sobrevive uma moeda que faz referência ao marco alemão, como se fosse um mundo que tem dificuldade para se desvencilhar do passado.

Paz ameaçada. Passaram-se vinte anos do cerco a Sarajevo, que com seus 1.426 dias deve ser o mais longo assédio da história moderna. Que começou com os disparos dos atiradores sérvios contra uma manifestação pacifista e continuou na ampla indiferença da Europa, capaz de assistir inerte à limpeza étnica na zona rural, aos estupros em massa, ao extermínio de Srebrenica, ao tiro ao alvo contra os civis de Sarajevo, sem fazer nada mais que pôr as mãos na cabeça e repassar aquele pouco de alimento e de remédios que só conseguiam prolongar a agonia. Poucas vozes se levantaram contra a vergonha: os alinhamentos ideológicos não entendiam de que lado ficar; a Itália estava absorvida pelo Mãos Limpas, e a própria ideia de Europa caminhava sobretudo entre parâmetros econômicos.
Não nos demos conta, mas o que aconteceu na Bósnia esvaziou e tornou inútil o nosso vocabulário. Dizemos “guerra” e não sabemos bem o que isso quer dizer, tanto que temos dificuldade para definir com uma palavra o Afeganistão, ou a Líbia, ou a Síria. Dizemos “pós-guerra” e temos em mente o adeus às armas, a reconstrução, o renascimento. E não sabemos como definir essas odes que continuam subterrâneas, esses acordos de paz sob ameaça, do Kosovo ao Iraque. Os europeus se consideram o continente dos direitos e dos valores universais, e ficamos de braços cruzados enquanto as imagens que víamos congeladas nos livros de história, os lager e o extermínio, apareciam ao vivo e em cores a dois passos da nossa casa.

Milena e a escuridão. Vinte anos atrás não havia celulares, nem internet, nem redes sociais; as vítimas do cerco ainda espalhavam cartas, através de nós, jornalistas, como as famosas mensagens dentro de garrafas. Mas hoje podemos ver, na internet, um museu virtual da sobrevivência (basta que se busquem as palavras-chave Sarajevo, sobrevivência, museu virtual), criado pela Universidade de Sarajevo, dedicado aos milhares de estratagemas com os quais a cidade sobreviveu, inventando estufas e lanternas, sabão e comida. Observo sempre com curiosidade esse museu, porque vivemos num mundo que fez do trekking survival a religião do weekend, e sempre me emociona porque sou inapto nas coisas técnicas e porque me lembra meu pai, que viveu a guerra, e não jogava nada fora, nem um prego torto: em Saravejo aprendi, em nosso mundo atravancado de coisas, que tudo pode ser útil. Mas aprendi, sobretudo, que a melhor ferramenta é a dignidade, exatamente o que os assediantes queriam extinguir, reduzindo a pessoa a mero alvo, a sobrevivente casual na loteria dos atiradores.
Daqueles quase quatro anos mantenho lembranças inapagáveis, e não preciso de aniversários para tê-las diante dos meus olhos. Aliás, às vezes prefiro fechá-los e me volta à mente a entrevista que fiz com uma mulher cega de Sarajevo, Milena, que me descreveu os barulhos e os odores do cerco, e se gabava de uma vantagem: não perceber que as lâmpadas estavam apagadas, à noite – “é como se todos estivessem na escuridão, como eu, mas eu me acostumei” – e não ver o estado em que ficara a sua cidade. Quando me pergunto sobre o que ficou da velha Sarajevo, tenho dificuldade de pensar no sonho que manteve esta cidade de pé, nos dias do cerco, de se tornar um laboratório de diversidade, de línguas e religiões, um caleidoscópio de culturas e de vidas. Foi só um sonho, inevitavelmente.
E assim penso naquele dia, em Tuzla, nos galpões onde milhares de corpos foram recolhidos, tirados das fossas comuns e das florestas em torno de Srebrenica, e que aguardavam os responsáveis pela maior operação forense já vista no mundo, na tentativa de confrontar os DNAs dos restos mortais com os DNAs dos sobreviventes, e assim dar um nome e uma sepultura às vítimas. Apesar da refrigeração do ambiente, era inevitável a gente ser atingido pelo cheiro de morte, entre as fileiras de estantes onde os sacos de nylon traziam afixada uma ficha e um número. Mas o que chamava a atenção do visitante, representando um refúgio para o olhar, eram as embalagens com as coisas pessoais do morto, que poderiam ajudar no reconhecimento por parte dos parentes: um par de óculos ajustado no nariz com uma fita, alguma foto amarelada, amassada ao ser recolocada na carteira, um isqueiro, um relógio, um pente, uma dentadura, um cortador de unha, pastilhas, um maço de chaves, como se estivesse pronto para retornar à casa... É tudo o que resta. Com a dignidade, claro.
Lembro que uma vez, ao longo da avenida dos atiradores, vi uma anciã colhendo mato numa área gramada que separava as vias de tráfego, certamente pensando em dar um pouco de sabor à rala sopa. Nós nos olhamos, os dois inclinados sobre a grama, e eles, os atiradores, perceberam. Eu estava me culpando pela intromissão – quem tem prazer em ser visto esmolando mato? – mas eles, com gentileza e firmeza, me disseram para fotografar, pois era bom que o mundo conhecesse a situação em que viviam, era preciso mostrar isso ao mundo. Para mim foi pior, porque eu sabia que o mundo sabia, e nada iria acontecer, pois a dignidade, sim, estava em falta no mundo, mas não ali.

Estávamos distraídos. Alguns dias atrás, dediquei um segmento do programa semanal de TV que dirijo (Terra!, programa de aprofundamento do canal italiano Tg5) ao aniversário de vinte anos daqueles acontecimentos. Uma amiga me escreveu uma mensagem, impressionada com as imagens fortes que, como era tarde da noite, foi-nos possível passar; ela me perguntava por que não as tínhamos passado na época. Mas não, eram todas imagens que já tinham sido transmitidas na época, quando estávamos a ponto de perder a ilusão de que contar e mostrar poderia servir para alguma coisa. Só que nós estávamos distraídos, ainda felizes com as imagens da queda do muro de Berlim, esperando ansiosos um final de século magnífico e progressista, e o que acontecia nos Bálcãs parecia só um escombro do passado, uma Ruanda para além do Adriático, uma mancha incômoda a ser esquecida. Ainda estava por vir, com o novo século, o 11 de Setembro, e a desordem do mundo era ainda uma desordem feliz, aceitável.
Por isso, para nós a recordação desses vinte anos tem o sabor de reparação póstuma. É como se dar conta do quanto gostávamos de uma pessoa só depois que ela morreu.

Fronteiras invisíveis. No último mês de abril ocorreram, em Sarajevo, cerimônias para marcar o aniversário. Nada de pomposo ou de especial, porque trata-se de uma cidade que tem bem presente que a memória, nos Bálcãs, geralmente é uma condenação a se repetir. Porque é uma cidade que gostaria de esquecer – e não consegue – até pela modéstia do presente, e também pelo vazio do futuro, num país de fronteiras invisíveis, traçadas na alma dos seus habitantes.
E se não bastassem os números de que falei no início para descrever o que resta da Bósnia depois de vinte anos, prestem atenção em algum jogo da seleção nacional de futebol: nenhum jogador acompanha, com o movimento dos lábios, as notas do hino. Não é porque não sabem as palavras, e sim porque o hino não tem palavras, por ter sido difícil chegar a acordo sobre um texto.

OS NÚMEROS
1.426
os dias de assédio

11.541
as vítimas do assédio:
os feridos são mais de 50 mil,
sendo 85% de civis

334.664
os habitantes de Sarajevo no fim do conflito. São 36% a menos em relação a antes da guerra. Hoje são 749 mil.

13.000
os católicos que vivem hoje em Sarajevo. Antes da guerra eram 60.000



O mais longo cerco
(5/abril/1992 a 29/fevereiro/1996)

1991.
Dia de junho, Croácia e Eslovênia declaram independência. Tem início a dissolução da Iugoslávia. Três dias depois, o exército federal ataca a Eslovênia. Em outubro tem início o cerco a Dubrovnik.

Em 22 de dezembro também a Bósnia-Herzegovina e Macedônia pedem o reconhecimento da independência.

1992. De 29 de fevereiro até 1º de março, num referendo boicotado pelos sérvios da Bósnia, as comunidades croata e muçulmana do país votam a favor da independência da Bósnia-Herzegovina da Federação Iugoslava, naquela época já órfã da Croácia, da Macedônia e da Eslovênia.

5 de abril. Durante uma manifestação pela paz, o exército sérvio-bósnio, que cercou a cidade postando-se nas colinas em volta, dispara contra a multidão. É o início do assédio. No dia seguinte, a Comunidade Europeia reconhece a Bósnia.

2 de maio. É oficializado o bloqueio da cidade, completamente isolada pelas forças sérvio-bósnias. No mesmo mês, a ONU decide pelo envio dos Capacetes Azuis.

22 de agosto. João Paulo II lança um dramático apelo pela paz, durante o Angelus.

1993. Fracassam as negociações em torno dos planos de paz Vance-Owen e Owen-Stioltenberg propostos pela ONU e União Europeia.

12 de abril. A Otan prepara a operação “Deny Flight” , pelo respeito à zona de interdição aérea proclamada pela ONU. Os relatórios oficiais indicam, durante todo o cerco, uma média de 329 bombardeios diários, com um máximo de 3.777 bombas lançadas dia 22 de julho desse ano.

1994. Dia 5 de fevereiro consuma-se a prima carnificina no mercado da cidade: 68 mortos e cerca de 200 feridos.

28 de fevereiro. Primeiro ataque aéreo da Otan; são abatidos quatro aviões sérvio-bósnios.

1995. Dia 11 de julho começa o “massacre de Srebrenica” : em dez dias, os sérvio-bósnios matam 8.300 civis muçulmanos, numa “zona de segurança” teoricamente sob o controle da Otan. É o maior massacre na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. O general Ratko Mladic, que comandava os sérvios, será preso somente em 2011, sob a acusação de genocídio.

28 de agosto. Uma segunda carnificina acontece, na qual perdem a vida 41 civis. Dois dias depois, começam os raids aéreos da Otan: durarão duas semanas consecutivas.

14 de setembro. Acordo entre a ONU e os sérvio-bósnios para remover o cerco a Sarajevo.

21 de novembro. Acordo alcançado em Dayton (Ohio, EUA) entre o presidente bósnio, Alija Izetbegovic, o croata Franjo Tudjman e o sérvio Slobodan Milosevic, com a mediação norte-americana e da comunidade internacional, estabelece o fim oficial da guerra. De fato, disparos ocasionais continuarão ainda nas semanas seguintes. O acordo reconhece a presença, na Bósnia-Herzegovina, de duas entidades bem definidas: a Federação croata-muçulmana (51% do território bósnio), e a República Srpska (49%). Os refugiados podem retornar aos próprios países.

1996. Dia 29 de fevereiro, os sérvios aplicam o acordo também a Sarajevo. Termina o cerco.

1997. Dias 12 e 13 de abril, João Paulo II faz uma viagem apostólica a Sarajevo (inicialmente prevista para setembro de 1994).

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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