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Passos N.141, Setembro 2012

UM DIA COM... Padre Francesco Bertolina

O Pastor Errante

por Luca Fiore

Um sacerdote que vive há vinte anos na Sibéria, entre pântanos cobertos de neve, babuske e Batismos. Onde as missas são celebradas nas casas e ele passa a maior parte do tempo no carro. Mas há algo de imponente na missão deste padre italiano. Nós o acompanhamos nos encontros de porta em porta, através dos rostos e das histórias com as quais Cristo planta a Sua cruz na terra mais fria: “O meu coração”

“Estou contente? Não. Se olho para o êxito, não, mas estou mais alegre do que quando cheguei. A alegria não tem a ver com o êxito. A alegria depende do estar diante de Cristo ressuscitado”. Do ponto de vista dos números, padre Francesco Bertolina, missionário da Fraternidade San Carlo Borromeo, na Sibéria desde 1991, tem razão: é um fracasso. Em vinte anos, preparou 286 pessoas para receberem o Batismo. Pouco menos da metade foi para a Alemanha ou se mudou para longe para estudar ou trabalhar. Muitos morreram, outros se perderam. Sua paróquia é frequentada por uma dezena de fiéis. Das duas missas dominicais que assisti, uma em Polovinnoje e outra em Karasuk, participaram sete mulheres e um jovem. Os números são mais ou menos os do início. No entanto, há algo de imponente na obra deste tímido sacerdote italiano de 50 anos. Algo que foge não só à lógica do mundo mas também à de quem pensa que já aprendeu tudo sobre o cristianismo. Este artigo quer falar dessa imponência.
Um gorro preto e um colete verde militar sobre uma blusa preta de lã. Padre Francesco entra em sua Toyota cinza e enfrenta o trânsito de Novosibirsk. Com um milhão e meio de habitantes, é a terceira cidade da Rússia depois de Moscou e San Petersburgo. Na Krasny Prospekt, a Perspectiva Vermelha, complexo viário que atravessa a cidade, convivem os edifícios soviéticos de cimento armado e os novos prédios de vidro e aço. “Aqui é a Ob”, diz Bertolina assim que entramos na ponte que atravessa um dos rios mais longos do mundo: “Nesta praia, as pessoas vêm tomar sol no verão. Agora existe um skilift com uma pista de esqui”. Estamos no centro da Sibéria, uma região do tamanho de um continente. Se estende dos Montes Urais ao Oceano Pacífico. Moscou é tão longe dali quanto Pequim. Pouco menos de três mil quilômetros. As temperaturas mínimas no inverno chegam a quarenta graus negativos. Em julho, o único mês realmente de verão, a temperatura é de trinta graus. “Chego na cidade na segunda-feira à noite para descansar um pouco e fazer um encontro da Fraternidade com padre Alfredo Fecondo, o outro missionário que está aqui comigo. Na quinta-feira de manhã vou embora”, diz padre Francesco.

O arco-íris invertido. A estrada até Polovinnoje está livre da neve. O vilarejo onde padre Francesco passa cinco dias por semana, é distante de Novosibirsk quatro horas de carro. A planície se repete sempre igual e sempre diferente. O branco é interrompido por breves mas frequentes bosques de bétulas. Pés de canela, alguns pinheiros e poucos lariços. Com o afastamento da cidade, os centros habitados diminuem até quase desaparecer. Ser missionário na Sibéria significa passar no carro a maior parte do tempo para chegar aos vilarejos onde moram os poucos fiéis. “Sempre trago um travesseiro”, conta: “Quando sinto chegar o cansaço, encosto e durmo por alguns minutos. Depois, continuo o trajeto”.
Ele tem a determinação do montanhês. Quando era jovem trabalhou como funileiro na empresa do pai. Reformou os telhados de muitos abrigos da alta Valtellina.
Poucos gestos, precisos. Palavras? Somente as necessárias. Porém, o olhar é o cheio de estupor do poeta. “Uma manhã, enquanto dirigia, vi uma coisa que não tinha ideia de que pudesse existir”, conta padre Francesco: “Notei que o sol havia criado, no manto de neve, um imenso arco-íris invertido. Durou meia hora. Desde então, para explicar a originalidade do cristianismo a quem pede o Batismo, uso essa imagem: Deus também, como aquele arco-íris, abandonou o céu para descer à Terra”. O sol se põe por volta das oito da noite e o céu se inflama. Quando chegamos a Polovinnoje já está escuro. Padre Francesco desce do carro e retira a neve entre a calçada e a entrada da casa.
A igreja fica no centro do vilarejo. Em frente, fica a escola, a creche, uma mercearia e a Casa de Cultura, uma espécie de centro social que no sábado à noite se transforma em discoteca. Mais à frente há um pequeno ambulatório. Se não fosse pela neve, se pareceria com uma vila do velho oeste: duas fileiras de casas, depois o nada. Padre Francesco Bertolina chegou aqui em 1994 e ocupou o lugar de padre Ubaldo Orlandelli. São os primeiros padres depois da queda da União Soviética. “Os únicos católicos eram os alemães deportados durante a Segunda Guerra Mundial”, me explica. “Quem conservou a fé foram as babuske, as avós. Algumas delas nunca tinham visto um padre. Aprenderam a rezar graças à devoção das próprias mães”. Depois da queda do regime soviético, a Alemanha lança uma lei que permite a volta dos deportados. Basta ter um avô alemão e é possível voltar. Muitos filhos e netos das babuske a aproveitam.
No café da manhã padre Francesco bebe café solúvel para ser mais rápido. Fora da janela é possível ver os jovens que saem da escola carregando os esquis. “É a hora da educação física”, diz sorrindo. Em Polovinnoje, às sextas-feiras à tarde é celebrada a missa precedida da Via Crucis. Na igreja, entram três senhoras. Têm a cabeça coberta por lenços coloridos, como é habitual para as senhoras idosas daqui. Vivem nas fronteiras do vilarejo e o padre foi buscá-las de carro. São baba Marta, baba Emma e baba Gàlia. Quando é dito o nome da estação da Via Crucis, as três mulheres se voltam para a imagem correspondente pendurada nas paredes da igreja. Com elas também deveria estar baba Margherita, mas está doente e não pôde vir. “Uma vez, na missa de Natal, durante a leitura do Evangelho de São Lucas que narrava o nascimento de Jesus, eu a vi chorar”, conta padre Francesco: “Eu perguntei, depois da missa, o que ela tinha. Respondeu que chorava porque não sabia que 'Deus tinha compartilhado o meu leito'. E contou-me que depois da deportação para a Sibéria, durante os primeiros sete anos, também ela, como Jesus Menino, havia dormido sobre a palha”.
Karasuk é uma cidadezinha de trinta mil habitantes distante cem quilômetros a leste de Polovinnoje. Os condomínios ao longo das estradas são feitos de grossos blocos pré-fabricados de concreto armado. É sábado e é dia de feira. Chegamos aqui depois de ter passado em Krasnozjorsk, onde há alguns meses mora padre Viktor Bilotas, um sacerdote de 40 anos de origem lituana (o pai foi deportado na década de 1950). Com ele, também passamos em Blagadatoie, o bairro de Viktor, um homem alto que aparenta uns 60 anos, e a mulher Ljudmila que recentemente pediu o Batismo. Em Karasuk, padre Viktor se encontra com eles na casa de Marina. Ela, há alguns meses, pediu os sacramentos na igreja católica. Até alguns anos atrás somente as idosas iam à igreja. Nos últimos tempos, inesperadamente, alguns jovens também se aproximaram.

Na casa de Oleg. “Como conheci Marina? É preciso ir um pouco longe”. Com padre Francesco é sempre assim. A narração é trançada. De todas as pessoas que encontra, conhece – como se diz – vida, morte e milagres. “Baba Livia tinha dois netos: Sacha e Slava. Sacha já era casado. Mas seu casamento, como normalmente acontece aqui, porque se casam muito jovens, se desfez: casa-se novamente com Julia. Nesse meio tempo Slava se casa com Marina, e pouco depois começa a fazer comigo a catequese para o Batismo”. Quando fala de Slava, padre Francesco tem uma expressão segura. Mas tem um peso no coração. “Um dia, baba Lidia me telefonou dizendo que Slava tinha desaparecido. Não estava no trabalho. Diz o nome da rua em que ele mora, mas não o número da casa. Bati de porta em porta até conseguir encontrá-lo. Estava completamente bêbado. Pedi que viesse comigo. E ele veio. Por um período, conseguiu voltar com Marina. Depois, perdeu-se de novo”.
Enquanto padre Viktor dá aula de catequese na casa de Marina, vamos com padre Francesco à casa de Natasha e Oleg. Ela tem 25 anos e ele, 27. Ela tem um filho do primeiro casamento. “Entrou em contato comigo porque queria batizar o segundo filho”, conta padre Francesco: “Oleg não era cristão, mas não se opunha. Quem se opunha eram os pais dele. Moravam juntos e eles não permitiam que eu fosse à casa deles dar catequese. A situação mudou quando os dois foram morar sozinhos. Fui lá algumas vezes. Por acaso, Oleg também estava em casa. Ficou maravilhado. Pediu o Batismo também”.
Padre Francesco senta-se no sofá-cama. Natasha senta-se ao lado dele e Oleg, num banquinho. Vanja, de quatro anos, joga no computador. Dima, de um ano, brinca com um livro sonoro. Na TV, o DVD de Aladin. Nessa situação, começa a catequese. A primeira pergunta é de Natasha: “O que é a Quaresma?”. Padre Francesco responde. Depois, tendo em mãos o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, retoma de onde tinham parado: “O que é a vida eterna?”. Ele lê perguntas e respostas e as comenta. Os dois jovens o olham quase hipnotizados.
“Não quero que ele cometa os erros que eu cometi”, diz Natasha para explicar porque pediu o Batismo para o filho. “Gostaria que fosse protegido e que agora já andasse pelo bom caminho”. O marido arregala os olhos azuis quando é perguntado porque quer ser batizado: “É difícil dizer com palavras aquilo que tenho dentro de mim. Mas entendo que a salvação da alma é importante”. A amizade com padre Francesco está se tornando importante na vida deles. “Esse trabalho é uma ajuda”, diz Natasha: “Depois de momentos assim, ou depois de assistir à missa, percebo que fico mais tranquila. Fico um pouco mais em paz”. Recentemente Oleg foi fiador de um empréstimo que um amigo pediu no banco. Agora o colega morreu e a dívida recaiu sobre os ombros deles. Há algumas semanas está comprometendo 25% de seu salário. Quando Natasha fala de paz, provavelmente também pensa nisso.
“Com a morte das últimas babuske, parecia que em Karasuk a comunidade estava desaparecendo, mas inesperadamente fiz esses novos encontros”, diz padre Francesco. Pensa também em Vladimir e Natasha, um jovem casal de musicistas. Em Alexia e Sacha, que moram em Svabodnoe Truda. Não era óbvio que isso aconteceria. E, no entanto, aconteceu. Um pouco como naquele filme O Sacrifício, de Tarkovski: “Um velho monge ortodoxo ordena ao discípulo plantar um tronco seco sobre uma montanha e ir regá-lo todos os dias. Ele faz isso durante três anos, todos os dias. Até que um dia, subindo, percebe que o tronco floresceu”. Para ver o tronco da amizade com Vanja florescer foram necessários 17 anos. Em 1994 era um jovem que trabalhava como vigia na igreja de Polovinnoje. Hoje, é um homem que passou 10 anos na prisão por homicídio culposo. Na prisão adoeceu de tuberculose, mas nunca se esqueceu daquele padre italiano. E assim, depois de tanto tempo, o reencontrou e pediu para ser batizado.

O silêncio no carro. No domingo, vai novamente a Karasuk, onde é prevista a missa na casa de baba Katya. Além dela estão baba Mina e Vanja, um jovem de pouco mais de 20 anos que padre Francesco conheceu ainda menino. Também deveriam estar presentes Sacha e Julia, sua mulher. Mas, no fim, não foram. Padre Francesco, há algum tempo, vai à casa deles para dar catequese. “Sacha é silencioso, Julia, ao contrário, é muito vivaz. Pediram o Batismo para os dois filhos e para si mesmos. A primeira coisa que tento fazer com que a pessoa que pede o Batismo entenda é o que está pedindo, porque não sabem nem isso. Mas Sacha e Julia fazem perguntas inteligentes...”. Por exemplo? “Como é possível os judeus não terem reconhecido Cristo? Que fim teve São José?”. Antes da missa na casa de baba Katya, padre Francesco ensina a versão em russo da música Attende Domine. No momento da exaltação, Katya e Mina sussurram: “Mein Herr und mein Gott”. Meu Senhor e meu Deus. É o alemão de suas mães, ao qual não renunciam.
Em seguida, padre Francesco vai para Polovinnoje, onde será celebrada uma missa. Começa a nevar e a paisagem se torna branca. Ele passa para pegar as babuske. Margherita ainda está doente. Baba Marta também não está bem. Mas Emma e Gàlia vêm. Também chegam Anjia com a filha e uma amiga não católica. “Conheci baba Gàlia porque ela é avó de Katya, uma moça cuja mãe teve três maridos. Do primeiro marido, que morreu no trabalho, teve dois filhos. Um deles, Valodia, estava preso. O pai de Katya se suicidou. A mãe casou-se novamente com um alcoólatra e ela também começa a beber. Katya acaba em um orfanato. Nesse meio tempo, conheci a avó, baba Gàlia, que pede para ser batizada. Um dia, Katya me diz que o meio irmão, Valodia, está saindo da prisão. Digo para entrar em contato com ele e pedir que venha me encontrar, porque sei que quem sai da prisão quase sempre acaba voltando para lá. Uma noite, baba Gàlia me telefona, chorando: Valodia se enforcou”.
Na estrada de volta para Novosibirsk a neve cobre o asfalto. Padre Francesco me conta: “Antes, durante os longos trajetos de carro, eu escutava música para passar o tempo. Agora, não consigo mais fazer isso. Quando eu era um jovem padre, a hora cotidiana de silêncio parecia não ter fim. Hoje ela não é mais suficiente para mim, então, continuo fazendo o silêncio no carro. Rezo mentalmente o terço. E canto. Não conseguiria carregar o drama de todas essas pessoas sem estar diante do Mistério”. Começa a rezar de cor a oração de San Martino de Carso, escrita por Ungaretti: Destas casas / não restou / nada além / do que pedaços de parede // De muitos / que me correspondiam / não restou / nem isso // Mas no coração / nenhuma cruz falta // É o meu coração o país mais destroçado. “De vez em quando eu a repito para mim mesmo. Mas eu modifico o último verso e digo: É o meu coração o país mais preenchido. Preenchido por esses rostos, por essas histórias. Cada pedaço de parede me lembra alguém que conheci nestes anos”.

O tempo e o “sim”. Às 22h, ainda falta uma hora de carro para chegar a Novosibirsk. Nestes anos padre Francesco nunca desejou ir para um lugar mais fácil. “Não, nunca. Estou aqui para compartilhar a vida dessas pessoas. Eu não tenho o problema de querer resultados numéricos... É a pessoa individualmente que encontra Cristo”. Mas, como é possível resistir depois de tanto tempo? “É seguindo Cristo que se pode estar com Ele. É Ele que dita as modalidades. Só no tempo o meu “sim” se realiza e tem possibilidade de se renovar. Eu não desejo outro lugar. Porque Cristo me chamou aqui – e procuro sempre me lembrar disso – não para converter sabe-se lá quem, mas para plantar a Sua cruz em uma terra muito mais fria do que a Sibéria: o meu coração”.

 
 

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