Vai para os conteúdos

Passos N.142, Outubro 2012

UM DIA COM... A Comunidade “Pinóquio”

Não é uma fábula

por Paolo Perego

Fidel passou das drogas às lágrimas diante do filho; Walter não quer mais ir embora; e Gianni muda de trabalho para “estar aqui com vocês”. Fomos até a cidade de Brescia, na Itália, para ver o cotidiano de uma obra que há vinte e seis anos não para de crescer. Permanecendo sempre fiel àquilo que a gerou

Ele chora, pois fala muito pouco em público. Mas, desta vez, levantou-se da cadeira e se colocou. “Perguntas, desejos... eu quero respostas”, disse gaguejando. Depois, os olhos de Fidel, este chileno de 25 anos que foi adotado e cresceu em Milão, se fixam no filho de oito anos, que veio passar uns tempos com o pai e está sentado à sua frente. Na grande mesa se faz silêncio. Há apenas o barulho dos talheres pousando nos pratos. Em volta, vinte rapazes jantam no refeitório da comunidade, um salão no térreo do casarão reformado, no bairro Rodengo Saiano, na cidade de Brescia, Itália. É disso que se fala, diante de uma macarronada: do desejo bom, de felicidade, do fato de que, muitas vezes, encontramos uma resposta errada, como a droga. A “substância”, como é chamada aqui. É por isso que aqueles jovens estão em Rodengo, na comunidade “Pinóquio”, para a recuperação de ex-toxicodependentes.
Uma história que nasceu em 1986, com três agrônomos recém-formados, que queriam trabalhar juntos para continuar a experiência cristã que encontraram com CL, na universidade. “Agora, comigo, ficou Massimo Piva”, conta Walter Sabattoli, co-fundador e agora diretor da obra. “Assumimos a direção de uma pequena empresa agrícola em Mompiano, perto de Brescia, para acolher os presos que podiam prestar serviços como penas alternativas. Plantávamos, colhíamos, e depois vendíamos no mercado. Em seis anos, acolhemos quarenta pessoas”. E, enquanto isso, aquele desejo tomava forma. “Em 1991, compramos um casarão com o terreno, aqui em RodengoRodengo, e no ano seguinte, começamos a comunidade terapêutica”.
Eram os primeiros passos daquilo que é a comunidade Pinóquio hoje: um grupo de cooperativas, onde são realizadas diversas atividades. “Do cuidado dos canteiros públicos ao setor agrícola com a produção de maçãs e vinho, à fábrica de artigos de papel, e à marcenaria”.
“Não é só a droga”, diz Sabattoli: “Há também pessoas com outras dependências patológicas como o álcool e remédios. A acolhida se estende também a pessoas com problemas psiquiátricos e marginalizadas”. Há outra ala da casa que acolhe os hóspedes na casa-família O Patinho Feio. “Ali estão deprimidos e psicóticos. Alguns não são autosuficientes, outros estão em recuperação”.

O escritor e sua poesia. Como assim? “A verdadeira questão, descoberta em anos de experiência, é que não basta fazer companhia e ensinar um trabalho”, explica Sabattoli olhando o pomar de macieiras, sem trabalhadores porque neste período requer menos cuidados. “Por traz da recuperação de um jovem há o trabalho de muitas pessoas: educadores, médicos, psicólogos, assistentes sociais”. Com quase quarenta internos, a comunidade conta com uma parceria com o Governo do Estado que financia 29 vagas para internação e 10 na psiquiatria. Assim, as coisas devem ser bem feitas: “É claro que não depende só de nós. Precisamos nos jogar por inteiro, certamente. Mas somos humanos. E aqueles que acolhemos são humanos”. Assim, um quer fugir, outro tem dificuldade de relacionamento. “A questão é que devemos nos colocar diante deles sendo leais com aquilo que nosso coração deseja. Se não amamos a nossa liberdade, a nós mesmos, então, como podem acreditar quando dizemos algo a eles?”
Os primeiros que encontramos, de manhã, são exatamente os dezesseis da casa de acolhida, enquanto fazem o planejamento do dia com Mauro Gavazzi, responsável pela casa. “Alberto precisa arrumar as suas coisas, Pietro lava a roupa”. Há Claudio “Cip”, o pintor-poeta. Explica que acabou de escrever a poesia O Eternauta, e mostra um desenho com um campo. “Já tem preço?”, pergunta Mauro. “Bem, este sim. Cem reais”. Há também Alberto, de Milão. Ama a sua cidade, mas não quer voltar para lá, mesmo podendo, pois estaria só.
Na comunidade terapêutica de tóxicodependentes a cena é a mesma. Vinte rapazes, em círculo, em uma sala, sentados no chão. Leem a vida dos santos. “Porque devemos olhar para eles todos os dias”, dizem. Depois, rezam o Angelus. Nas paredes, fotos e recordações daqueles que passaram por ali e já saíram. Depois, fazem a leitura do diário, daquilo que aconteceu no dia anterior. A dificuldade de Nicola no trabalho, ou a discussão entre Roberto e um operador: “Para que tudo o que acontece não se perca”, diz Walter. Em seguida, as tarefas são distribuídas. Alguns irão para a fábrica de artigos de papel, outros para a marcenaria, ou para a vinícola.

O único critério. Acolhida, reabilitação e reinserção na sociedade. “No fim de seu percurso, os jovens são contratados para trabalhar em nossas cooperativas, até adquirirem autonomia profissional e habitacional”, explica Sabattoli.
Será suficiente? Os jovens à mesa falam de outras descobertas. Sobre o que quer dizer amizade, família. “O que eu realmente tinha necessidade quando me drogava é que eu queria estar à altura daqueles com quem eu convivia. Ser alguém. Mas, depois, a vida começou a girar em torno da droga, desde o início do dia. Tudo. Inclusive os relacionamentos. Você os destrói e o único critério é se drogar”, explica Giuseppe, 31 anos, de Bergamo, na comunidade há mais de um ano. Depois, contou que hoje também reencontrou a fé. E que se sente salvo. Frederico tem 36 anos. Trabalha na cozinha, com Michel. “O que eu fazia antes? Era delinquente. O que estou descobrindo aqui?”. Alguns segundos de silêncio. “Olha, tenho um filho de cinco anos. Deram-me permissão para encontrá-lo. Não o via desde que tinha dois anos. Fiquei pensando se ele me reconheceria. Ele correu ao meu encontro dizendo ‘Papai!’. Eu era o seu papai!”. Em suma, aqui começam a descobrir o que seus corações desejam. E que o desejo de felicidade que têm, no fundo, nunca foi errado.
Eles nos inundam com suas histórias, Aziz, Roberto, Nicola. Somos apresentados a Giuseppe, de 23 anos, que chegou há poucos dias. E Alan, de 19 anos, adotado, apaixonado por mountain bike. E Fabrizio, estudante do primeiro ano de Letras em Brescia, que está estudando para as provas.

O campo dos milagres. Alguns trabalham com Luigi Galluzzi, dos Memores Domini, nas vinícolas de Merlot e Groppello, que encherão as garrafas com a etiqueta “Campo dos Milagres”. Gianni, por exemplo, viajava do sul à área metropolitana milanesa, para trabalhar com comércio. Algo cansativo. Recorre às drogas. Depois, conheceu uma menina e veio o sonho de viver juntos. Mas ela vai embora, e na solidão, volta à “substância”. “Hoje estou me tornando livre. Até disse aos meus pais que sou um drogado. E eles me abraçaram...”
Um outro Gianni também teve a vida mudada quando encontrou a comunidade Pinóquio. Agora, dirige a fábrica de papel, onde montam catálogos, cortam cartões de visita, fazem pastas dobrando e colando. Tudo serviço terceirizado. “Na empresa em que trabalhava, era eu que passava os serviços à comunidade...” Viu que aqueles rostos eram alegres, felizes. E queria isso para si. Assim, deixou o trabalho, “um bom trabalho”, e foi conversar com Walter: “Quero ficar com vocês”. Agora ele está ali no barracão capitaneando um grupo de dez jovens. “Os velhos colegas ainda me perguntam se eu estou louco. Não, não estou louco”.
No andar de cima, está a marcenaria, onde são feitos objetos de madeira trabalhados com o torno: relógios, cabideiros, brinquedos. Cinco jovens fazem a montagem com pincéis e cola. “Vendemos os objetos nas feiras”, diz um outro Walter, ex-interno da comunidade, que hoje é o responsável por essa atividade. “Eu era pizzaiolo. Agora quero ficar aqui a vida toda”, afirma enquanto trabalha com as varetas pintadas.
“Esta é a unidade mais recente, já está pronta”, diz Sabattoli entrando na nova estrutura que hospedará a comunidade psiquiátrica. Uma construção de dois andares, com dezenas de quartos, salas. Até um teatro. “Toda ecológica, com autonomia energética”, explica. “A inauguração será no dia 6 de outubro. Um fruto inesperado. Apresentamos o projeto e, embora o empréstimo fosse substancial, o banco nos concedeu. E também tivemos a ajuda de muitos amigos ligados à Companhia das Obras, no projeto, na realização...”. A garantia para os bancos? Uma gestão da cooperativa muito cuidada, balanços sempre no ativo, a capacidade de se manter com as entradas ordinárias, usando o extraordinário, recolhidos de fundos ou doações, para os investimentos.
Uma grande parte da renda provém da atividade de cuidado dos canteiros públicos em Brescia. Cerca de vinte homens, quase todos saídos da comunidade ou indicados pelos serviços sociais, são divididos em equipes e limpam canteiros, aparam o mato na beira das estradas. Ou cuidam dos parques, como o da Montagnola, no centro de Brescia. O responsável por eles há anos é Gianluigi, vestido com uniforme de trabalho e óculos de ciclista. “Um pai”, dizem os meninos no fim do dia durante uma brincadeira, no depósito de ferramentas.

Nenhum projeto. “A inserção no mercado de trabalho é uma parte fundamental da nossa missão”, explica Massimo Piva, hoje responsável pela seção de trabalho da comunidade Pinóquio: “Não só porque os ajuda a sair de seus problemas, mas porque os responsabiliza e os faz trabalharem juntos. Precisam cuidar do dinheiro e estar atentos às regras, trabalhar bem, e um chama a atenção do outro. São trabalhos em que, se um faz mal, os outros precisarão trabalhar o dobro”.
“A liberdade e o desejo se jogam na carne, todos os dias. Para eles, diante daquilo que precisam fazer, e para nós, que somos os orientadores, diante de cada rosto que encontramos assim que chegamos pela manhã”, diz Sabattoli diante dos membros da direção da Pinóquio.
“Aqui ninguém levanta uma bandeira: o carisma da obra é o mesmo da companhia que a gerou”, diz Mario Montesano, diretor geral que chegou em Rodengo Saiano depois de anos de trabalho no serviço social. “É verdade”, diz Sabattoli: “Vinte seis anos se passaram para a cooperativa, não para mim. E isso só é possível por causa de um trabalho sobre si mesmo todos os dias, não por causa de uma vontade de fazer”. Quer dizer, se fosse um problema de capacidade, provavelmente não teria sido criado nada tão durável. “De fato, nasceram coisas impensáveis. E também há a disposição de ceder espaço para quem faz as coisas melhor que você”, continua Walter. Como Matteo Olerhead, 25 anos, chamado para trabalhar como administrador. Ou Giovanna Lobba, a mulher de Mauro, nomeada presidente da cooperativa. “Isso é possível porque o problema não é salvar ninguém, mas a si mesmo. É Jesus que me interessa, aquela origem da qual tudo isso começou. E diante dos meninos percebemos que eles têm no coração o mesmo que nós. Ainda que não o saibam”. É preciso ser confiável: eles olham para tudo em nós, e precisamos “manter” aquilo que somos diante deles: “Não querem pietismo, procuram algo que lhes interesse”. Questão de coerência? De função? Não. Se prevalece a função, eles jogam isso na sua cara”, responde Sabattoli. “O cotidiano é duro, mas nunca é a última palavra. Nisto se manifesta o ponto de origem de tudo. O meu relacionamento com Jesus se joga ali, na comunidade. Isso animou a realização do sonho com o qual começamos, não grandes projetos”.
Hoje, ele acontece através de rostos diferentes. “E continua a mudar nossa vida. A nossa e a dos jovens”, diz Walter olhando um grupo que está no pátio conversando e fumando um cigarro, enquanto esperam o jantar. Depois entram e se reúnem na grande mesa. E tem aquele de quem é a vez de servir os outros. Ali, olhamos para eles, pensamos que a comunidade Pinóquio não é uma fábula. Temos ainda tempo de dizer obrigado a Walter “por aquilo que você faz”. “Nós fazemos pouco. E esse pouco, ainda estamos aprendendo a fazer”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página