“Somos limitados pelo que podemos ver e tocar. Pois justamente isso nos diz que no universo há algo mais...”. Do beisebol à teologia (passando por Kant, a Bíblia e Moby Dick), um bate-papo com PAUL HARDING, ex-baterista que ganhou o Prêmio Pulitzer com seu primeiro romance
Paul Harding era o baterista do grupo Cold Water Flat. Nos anos 90 gravaram alguns discos e saíram em turnê pelos Estados Unidos e Europa. Depois Harding desistiu do rock e decidiu se tornar o que sempre quis ser: escritor. Matriculou-se num curso de redação criativa, em Nova York. Depois, ele mesmo se tornou professor de redação em Harvard e na Universidade do Iowa. Publicou um romance em 2009. Os grandes editores o esnobaram e a publicação foi feita por uma pequena editora. O romance “Tinkers” ( “A restauração das horas”. ), foi um sucesso, o que lhe valeu o Prêmio Pulitzer 2010 de Literatura. O livro conta a aventura de George Washington Crosby, que trabalha consertando relógios (um tinker,) o qual, no leito de morte, repassa a história da própria vida e do difícil relacionamento com o pai Howard, doente de epilepsia. Quando conta como nascem as suas histórias, Harding diz que é como se recebesse uma aparição da versão perfeita do conto. “É um pouco a ideia platônica. E a redação é a tentativa de dar corpo a essa espécie de obra de arte perfeita. Porém, é um processo que não funciona nunca. O resultado é imperfeito. Mas acho que é justamente a imperfeição do resultado que faz tremer e sobressaltar o coração do leitor”. É isto, a imperfeição. É estranho que com um dos escritores mais lidos dos Estados Unidos se termine concordando justamente sobre isso.
Essa relação com a perfeição é algo que diz respeito só à arte ou também à vida?
Provavelmente diz respeito também à vida. Claro, o meu modo de expressão é a redação, que é sobre o que eu posso falar melhor. Mas no esporte americano, no beisebol, por exemplo, se fala de perfect game, a partida perfeita. A cada âmbito da vida corresponde uma ideia de perfeição. Não é uma exclusividade da arte.
Lendo o seu livro e ouvindo-o falar, parece que o senhor confia muito nas coisas tais como elas são. É estranho, porque hoje predomina o medo e a incerteza sobre o que pode acontecer. De onde vem essa confiança?
Eu sou muito influenciado pela teologia. É estranho, porque não nasci num contexto religioso. Porém, acho que a teologia é uma espécie de forma narrativa de filosofia. Em especial, a judaico-cristã. A teologia se coloca o problema da transcendência e da sua relação com as coisas imanentes. Eu me interesso, sobretudo, pelo problema da imanência e pela ideia de que somos chamados a tomar consciência da vida que levamos. Penso que não há tentação maior para o homem do que olhar a partir de outro lado, fora da vida como ela é. Sim, a vida é dura e gostaríamos que fosse melhor. À custa de fugir das coisas que acontecem conosco. Mas o princípio estético que persigo é o de ir dentro das coisas, cada vez mais a fundo.
Não lhe parece um processo oposto ao teológico?
Claro, é uma espécie de paradoxo. Deus é transcendente, mas o modo que usa para demonstrar a sua transcendência é o de se tornar imanente. Que, aliás, é a ideia de fundo do cristianismo. É a ideia pela qual nós somos imanentes e, ao mesmo tempo, transcendentes. E em nós há uma espécie de dialética que nos faz oscilar entre dois polos. Mas cada polo não tem significado fora da relação com o outro.
O New York Times escreveu que o senhor é um apaixonado leitor de Karl Barth. Como um ex-baterista de um grupo de rock tornou-se leitor de um autor como ele?
Bem, eu já lia livros quando era baterista... As duas coisas não se excluem (risos). Mas para isso preciso remontar à minha amizade com Marilynne Robinson (Prêmio Pulitzer 2005), minha primeira professora de redação criativa. Ela é profundamente religiosa. Quanto mais a conhecia, mais a admirava. Então lhe perguntei qual era a fonte da sua inspiração. Ela me fez entender que era a religião. Assim comecei a ler livros de teologia. No início, era um modo de conhecer melhor Marilynne. Mas depois a coisa tomou conta de mim. Tem um encanto sem fim.
Por quê?
Penso que a Bíblia, o Velho Testamento em especial, é como um romance. Acredito também que a melhor teologia é lida como se lê um conto. Isso não para diminuir a Bíblia, mas para reconhecer a natureza sagrada da narrativa. Assim a teologia ou a cosmologia são um modo narrativo de se interrogar sobre o que significa estar no universo. Eu não leio a Bíblia em sentido literal. No entanto, acho que diz coisas verdadeiras. Como penso que Moby Dick diz a verdade ao nosso coração. Na literatura, os grandes romances não precisam reportar a “verdade factual” para serem verdadeiros. Eu leio a Bíblia como uma coletânea de poesias e contos. É um grande modelo para a economia da narrativa, no sentido da compressão e refinamento da redação. Acho que as histórias da Bíblia estão entre as mais profundas pesquisas sobre a condição humana.
O que quer dizer quando fala de “verdadeiro para o coração”?
É o que não precisa ser factual para ser verdadeiro. Acho que com muita frequência as pessoas confundem a realidade factual com a verdade. Guerra e Paz pode não relatar fatos reais, mas o que diz é verdade: eu reconheço ali a minha experiência humana. Repercute em mim. “Soa” verdadeiro. E o mesmo acontece com Moby Dick e todos os meus romances preferidos.
“Howard tirou a casca da batata com o garfo. Em seguida, inseriu dentro dela duas vagens de feijão e presunto. Levou o alimento à boca, mas parou antes de mordê-lo. Os músculos da mandíbula se afrouxaram. Arquejou e começou a piscar”. O que busca quando persegue essa precisão ao narrar as coisas?
A precisão e a exatidão são, a meu ver, as virtudes de uma boa redação. Mas o que acontece comigo é que, quanto mais fundo eu vou atrás dos detalhes, através da exatidão e da precisão, mais alcanço um ponto pelo qual as coisas se transformam e mostram o seu lado transcendente. Percebo que quando as descrições chegam ao máximo grau de exatidão, abrem um reino de metáforas e de símbolos. Penetrar fundo na imanência nos leva a perceber o transcendente.
O senhor ensina redação criativa. À parte as técnicas da função, como se pode transmitir o desejo de perfeição de que o senhor fala?
É difícil. Os professores com os quais mais aprendi foram aqueles que me ajudaram a modelar a vida da mente. Os melhores professores de redação não transmitem o que observar, mas como observar. Só se pode ensinar por meio de exemplos. Eu posso mostrar aos meus alunos o quanto eu estou apaixonado e qual é o resultado dessa minha paixão.
Hoje muitos romances contam a história de um pai que morre. Penso em As Correções, de Jonathan Franzen, Extremamente alto e incrivelmente perto, de Jonathan Safran Foer, A estrada, de McCarthy. Também o seu, de certo modo. É só uma coincidência?
Provavelmente é uma coincidência. Mas, por outro lado, cada geração de escritores termina por se confrontar com os temas eternos da literatura: a pessoa perde o pai, casa-se, tem filhos... Ou seja, as grandes passagens da vida humana. Na realidade, não me ocorre de procurar um tema sobre o qual eu deveria escrever. O meu não é um livro “sobre os pais”. Escrevi um livro sobre determinados personagens. E quando o termino e o releio, percebo que carrega dentro de si certos temas. Não escrevo por temas. São os personagens que comandam.
Que relação o senhor teve com seu pai?
Tive um grande relacionamento com meu pai! Há poucos dias fui pescar com ele, junto com meu irmão e com meus filhos. No caso desse livro, porém, tudo nasceu do fascínio pela a vida do meu avô. Ele foi abandonado pelo pai quando tinha doze anos. Então, pensei como deve ser essa realidade de ser abandonado pelo próprio pai e, ao mesmo tempo, como deve ser abandonar a própria família. Reconstruí e dei vida aos mitos familiares. Mas, de fato, foi um puro ato criativo.
Voltando à questão da imperfeição, o senhor falava de uma espécie de visão platônica. Mas o seu interesse pelas coisas, pela imanência, não é muito platônico...
Mais do que em Platão, penso em Kant, que fala de númeno e fenômeno. Lembra? O númeno é a intuição de que nas coisas há algo mais, há algo perfeito ao qual nós, que somos feitos de carne e sangue, não temos acesso. Nós só temos acesso ao fenômeno, ao que a gente vê. É isso que entendo por imanência: nós somos limitados ao que podemos perceber com a nossa experiência. No entanto, a nossa experiência nos diz também que no universo há mais do que podemos ver e tocar. Sempre há a ideia de que lá fora há algo perfeito.
Kant diz que não podemos conhecer o númeno. Mas lendo o seu romance, às vezes, se tem a impressão de que não é bem assim...
Não, dia após dia, instante após instante, faço a experiência de me encontrar na presença de um grande significado último, ao qual, porém, eu não tenho acesso. Sinto como se estivesse imerso nesse significado, que é maior do que eu. Mas esse significado não é acessível, embora eu não deixe de procurá-lo. Quando escrevo, não me canso de procurar o númeno, a ideia perfeita, para trazê-la para o mundo sensível. Mas sei que vou fracassar. A obra de arte é bela justamente porque reproduz o desejo humano do númeno, da perfeição, à qual nunca poderá chegar. Mas não há razão para interromper a busca.
MULTIPREMIADO
Paul Harding nasceu em 1967 em Wenham Massachussetts (EUA). Em 2009, publicou seu primeiro romance, Tinkers, publicado no Brasil com o título de A restauração das horas (Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2011). O livro ganhou, em 2010, o Prêmio Pulitzer de Literatura e o PEN/Robert Bingham Fellowship for Writers. Harding está trabalhando no seu segundo romance, que retomará alguns personagens de Tinkers.
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