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Passos N.142, Outubro 2012

DESTAQUE - Meeting 2012 / A natureza do homem

O ponto de fuga

por Ubaldo Casotto

Nestas páginas vocês encontram um percurso entre os incontáveis (e imprevisíveis) instantes da semana de eventos em Rímini. Onde “o total é mais do que a soma”... Incluindo os hóspedes internacionais, a vida dos voluntários, as exposições, os comentários e os fatos “nos bastidores”: a feira testemunhou que a religiosidade “não é um mundo virtual”. Aliás, é tão concreta que qualquer poder tenta reduzi-la. As próximas páginas apresentam relances de uma vida que quer ser livre de “falsos infinitos”

Nassir Abdulaziz Al-Nasser, presidente da Assembleia Geral da ONU, chega à exposição “O imprevisível instante, jovens pelo crescimento”. A voluntária italiana que o irá acompanhá-lo na visita cumprimenta-o em árabe. É a primeira surpresa para Al-Nasser, cujo maravilhamento pelos testemunhos dos jovens se transforma em comoção com a leitura da poesia de Pirandello que encerra a exposição. Eugenio Mazzarella é um filósofo e político conhecido dos leitores da Passos,. Levou ao Meeting a mulher e a filha. Quer encontrar-se com o amigo jornalista por dez minutos, o tempo de um refresco no bar Alcamo. E, contando-me sobre os encontros que teve, vai intercalando a análise política com silêncios deslumbrados em que se percebe que a voz ficou presa na garganta. Luis é mexicano, doutorando em Engenharia Sísmica em Pavia. Está no Meeting a convite de uma colega, que lhe pergunta: “Te ha gustado? ” Resposta: “Fiquei impressionado com a variedade de temas: música, filosofia, história, política, ciência, economia... Tudo coisas tão diferentes entre si. Mas descobri que existe aqui uma unidade profunda”.
Isso foi visível e audível. Repensamos nesta semana plena (foram 98 encontros e 271 intervenções, 9 exposições, 21 espetáculos, 4000 voluntários, 800 mil visitantes), e pensamos que no fundo o coração é mesmo aquilo que Luis nos disse: uma “unidade profunda”.
“Que o Meeting não é unicamente a soma do que se vê é algo que todos os convidados dizem”, conta Emilia Guarnieri, presidente do evento: “Do Bispo de Malta ao arqueólogo Giorgio Buccellati, do ministro canadense aos bailarinos libaneses, todos repetem: Aqui tem uma outra coisa”. Ok, o total é mais do que a soma, mas se tivesse de listar os elementos? “Antes de tudo os voluntários, depois a abertura que encontram, tanto em termos de temáticas como em termos de interlocutores, e a beleza... Em tudo isso percebem uma possibilidade de bem para eles. Tanto que muitos dizem: Vamos fazer também no nosso país”.

A coisa mais concreta que existe. Ao jornal Quotidiano Meeting padre Julián Carrón, responsável de CL, explicou nestes termos este interesse: “O infinito não é uma abstração, mas algo concretíssimo, que tem a ver com o modo como cada um se relaciona com o real. Se não entendermos que o senso religioso tem a ver com tudo, reduziremos a religiosidade a um mundo virtual. Mas é a coisa mais concreta que existe!”.
De tal maneira concreta que todo o poder tendencialmente hegemônico procura eliminá-la. Como dizem duas exposições heterogêneas, bem colocadas lado a lado: a primeira explora o drama religioso da experiência musical mais viva do século XX, o rock. A segunda reconstrói a tragédia de um país de onde a religiosidade foi erradicada com violência, a Albânia. Ambas trazem à luz algo que tem sido mantido à sombra. Para os albaneses as raízes cristãs do povo e da nação, condensadas em uma comovente fotografia de Madre Teresa de Calcutá quando jovem: “Sou albanesa de sangue, indiana de nacionalidade, de fé católica. Segundo a minha vocação, pertenço ao mundo”. Do rock’n’roll, John Waters, o jornalista irlandês curador da mostra, quis pôr a nu a experiência fundamental de quem ouve música: o encontro com o grito de quem a compôs. “A música nasce como um grito do coração do homem e o rock, na sua melhor expressão, continua a fornecer um canal para este grito, que se converte em comunicação de coração a coração”. Obviamente negócios, estrelato, narcisismo e degenerações: Waters não é nenhum simplório, sabe do que está falando. “Mas quisemos mostrar que esta redução não teve sucesso, que a comunicação de coração a coração resiste, que dentro do rock se conserva e alimenta o Grito”. Encontra-se na liberdade de Waters (“audácia ingênua”?) diante da complexidade, da força cultural, econômica e política do fenômeno musicalmente hegemônico dos nossos dias toda a decisiva alternativa que atravessou o Meeting, infiltrada: a presença como hegemonia, justamente, ou como testemunho.

O primeiro impacto. Alberto Savorana, porta-voz de CL, conta que chegou a Rímini com “um certo receio de que alguns fatos pudessem fracassar a semana. Alusões, polêmicas… Na Feira, a primeira pessoa que encontrei foi o Waters e, ao vê-lo, toda a onda de preocupações desapareceu. Ele estava livre de todos os lugares-comuns sobre o rock, de todos os preconceitos, e se expôs colocando às claras a experiência do seu encontro com aqueles personagens. Foi o primeiro impacto que senti. Sobre a exposição dele, um convidado comentou comigo: ‘Vocês vão pensar que é a menos religiosa; para mim é a mais religiosa’. Depois chegou a mensagem autografada pelo Papa e me fez reviver o título do Meeting, que podia ficar como uma frase vazia”.
As palavras de Bento XVI estão aqui ao lado, aqui basta uma citação: “Não devemos ter medo daquilo que Deus nos pede através das circunstâncias da vida”; porque nos voltam à memória ao ouvir um dos testemunhos da exposição sobre os jovens e a crise que impressionaram Mario Monti, o Presidente do Conselho de Ministros da Itália. Giovanni Muscarà sofre de gaguez, supera a sua dificuldade, estuda arduamente, entra no mundo da finança internacional e, depois, decide deixá-lo para fundar em Londres uma escola para gagos que desenvolveu uma técnica inovadora. Diz que encontrou na família os seus primeiros patrocinadores. “Aos sete anos, na praia, perguntei à minha mãe: ‘Por que logo eu tinha de ser gago?’ Imagino que ela terá sentido um aperto no coração. Podia ter me abraçado, mas fez mais do que isso: Giovanni, nunca te atrevas a se queixar da maneira como Deus te fez”.
Também para Giorgio Vittadini, presidente da Fundação para a Subsidiariedade, “viver as circunstâncias” é decisivo na opção entre hegemonia e testemunho: “A alternativa é uma vida sempre em fuga. Diante da crise, as posições ideológicas e políticas não se aguentaram. A exposição que fizemos fala, ao contrário, do “imprevisível instante”, da iniciativa de um homem sem que nenhum antecedente histórico possa explicar a riqueza que se gera. No Meeting procuramos não analisar, mas sim falar destes inúmeros imprevisíveis instantes. E as pessoas mais distantes perceberam, perceberam o nosso mesmo estupor”.
Foi percebido por Marco Alfieri, jornalista do Stampa, que diz ter encontrado aqui um “frenesi positivo”. Ou Silvia Truzzi, do Fatto Quotidiano – um jornal que não é propriamente indulgente com CL –, fascinada pela mostra sobre o budismo Shingon e pelo encontro com o astronauta Paolo Nespoli (“infelizmente o meu jornal não se ocupa com estes temas”). Foi percebido por quem visitou a exposição da Companhia das Obras sobre a Catedral de Milão, que documentou, com os dados à mostra, que as catedrais são obra de um povo e não de mecenas ricos. Os donativos de Giangaleazzo Visconti cobriram apenas 16% dos custos, o restante foi conseguido com o pouco de muitos: comerciantes, prostitutas, operários, idosos…
Foi percebido também pelo socialista Pietro Nenni, que em 1959, no seu discurso ao Parlamento sobre o espírito para enfrentar a reconstrução da Itália, contou uma anedota: “Dois operários estão empilhando tijolos ao longo de uma rua. Passa um transeunte que se informa sobre o trabalho deles. Um responde modestamente: ‘Estou empilhando tijolos’. E o outro: ‘Estou levantando uma catedral’”.

A carta e a escolha. É deste espírito, “cheio de realismo e grande audácia”, como diz Bernhard Scholz, presidente da Companhia das Obras (CdO), que precisa o empenho de cada dia: “Respirava-se este clima em Rímini. Encontrei muitos que enfrentaram a crise sem se lamentar, com grande compreensão das dificuldades e sobretudo procurando com espírito criativo a melhor maneira para sair dela. Dentre todos, impressionou-me um empresário que se debate com graves dificuldades. No final da semana me disse: ‘Reencontrei a esperança para enfrentar a situação’. Isto quer dizer que o título do Meeting já é uma experiência e, portanto, um sinal para o país”.
Seria esta a “opção religiosa do CL” que muitos gostariam de ver em prática com a famosa carta do padre Carrón ao Repubblica em maio passado? Aquela em que diz: “Só assim poderemos ser no mundo uma presença diferente, como muitos de nós já testemunham nos seus ambientes de trabalho, nas universidades, na vida social e na política ou com os amigos, pelo desejo de que a fé não fique reduzida ao privado…”. Silvia Truzzi comenta: “Era bom que tivesse havido um encontro público sobre a carta do padre Carrón”. Mas o Meeting foi um grande encontro público sobre a carta de Carrón.

Um grito que se liberta. Padre Stefano Alberto, encerrando o encontro sobre o “Homo religious” com o cardeal Julien Ries e o monge budista Shodo Habukawa, recordou igualmente “o imprevisível instante em que o homem entra em contato com um evento que lhe mostra a transcendência”. E acrescentou, citando o “vocês não têm pátria” de João Paulo II ao povo de CL em 1982: “A novidade introduzida por Cristo torna definitiva esta relação com o Mistério e irredutíveis a qualquer projeto aqueles que a vivem. Por isso nos persegue os que falam da ‘opção religiosa de CL’”. Se opção houve, repetiu Carrón em Rímini, foi na adesão ao convite de Bento XVI a “não sucumbir aos ‘falsos infinitos’ que nos aprisionam e não nos deixam respirar. A minha carta era um grito para nos libertarmos destes falsos infinitos para viver o alento para que fomos feitos”.
O problema – explicou o teólogo Javier Prades na intervenção central do evento (ver pp. 12-13) – é se esta novidade na relação com o infinito que o cristianismo pretende ser, retomando e relançando a sua nostalgia presente também na cultura contemporânea, é capaz de suportar o desafio das conquistas da ciência e do pensamento naturalista que confinam a questão religiosa na esfera privada. Após o encontro, um estudante de 14 anos fez este comentário em relação à Prades: “Difícil, mas percebi duas coisas. Gostei muito que citasse um grupo pop (Los Secretos), quer dizer que não vive fechado na igreja. E depois a questão do ‘ponto de fuga’: antes estava fora das coisas, agora entrou na minha experiência. Isso é realmente interessante”. Prades citou Dom Giussani: “Cristo ressuscitado é o primeiro e fundamental acontecimento em que o ponto de fuga se tornou experiência do homem”, e perguntou-se se este cristianismo “convém realmente a todos os homens”, mesmo a quem do alto da sua ciência nos explica que somos tão somente “um aglomerado de neurônios” e não seres únicos e irrepetíveis e invioláveis, “criaturas”, como diz o Papa na sua mensagem, “em referência essencial a outra coisa, ou melhor, a Outro – não administrável pelo homem”.
Quem se aventurou por entre os painéis da exposição sobre Jérôme Lejeune ou quem conseguiu entrar na sala onde Elvira Parravicini dava o seu testemunho como neonatologista em Nova York, sabe que as palavras de Prades serão tudo menos abstratas. Lejeune é o geneticista que descobriu a causa cromossômica da síndrome de Down, e quando viu concretizar-se aquilo que temia, o uso da sua descoberta para a seleção e não para o tratamento das crianças Down, fez frente à comunidade científica: “Matar ou não matar, é esse o problema. (…) O nosso dever não é impor uma sentença, mas aliviar o sofrimento”. Na própria noite dessa intervenção em São Francisco, em agosto de 1969, escreveu à mulher: “Hoje perdi o prêmio Nobel”. Assim foi.

Nada de conclusões. Quando Elvira Parravicini explica o resultado do diagnóstico pré-natal, não oferece opções como o aborto, mas um acompanhamento terapêutico: “Não é verdade que não haja mais nada a fazer, o recém-nascido precisa ser acolhido, se manter quente, não deve sofrer sede e fome, não deve sentir dor”. Antes do parto encontra-se com os pais dos bebês, que se sabe que viverão poucas horas, e lhes pergunta: “É um menino, é uma menina, já escolheram o nome? Assim eles sentem que eu estou à espera dele. E desencadeia-se uma competição afetiva porque há pais que não concebem que alguém ame os seus filhos mais do que eles mesmos”. Ao ouvi-la, uma professora volta-se para a vizinha: “Também é assim com os meus alunos, não posso considerá-los com outros critérios; muitos pais olham para eles de maneira diferente quando veem o meu interesse pelos seus filhos”.
Este relato poderia estender-se ainda por muitas outras páginas, pois metade das anotações ficaram no bloco do cronista. Conclusões? Nada de conclusões, um artigo termina quando se põe o ponto final. Uma vida não. E o Meeting é uma vida. Ponto final.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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