Texto publicado em Passos de março/2002
Thomas Howard lecionou Literatura Inglesa no St. John’s Seminary de Bringhton, em Massachusetts, até 1998. Convertido do protestantismo evangélico, foi amigo de C. S. Lewis e é especialista na obra de Charles Williams, ambos, ao lado de J. R. R. Tolkien, membros do círculo “The Inklings”. Thomas Howard ministrou recentemente um curso sobre O Senhor dos Anéis no International Theological Institute de Gaming (Áustria). Quando o teólogo Hans Urs Von Balthasar visitou os Estados Unidos pela primeira vez, quis conhecer Howard, autor de obras como Evangelical is not enough e The novels of Charles Williams.
Tem sentido falar de O Senhor dos Anéis como uma “obra-prima católica”? Ou, depois das tentativas da direita e da esquerda de se apropriarem dele, não corremos o risco, por assim dizer, de batizar algo que é fundamentalmente uma (belíssima) fábula?
Quer num nível superficial, quer num nível mais profundo, estamos autorizados a falar de O Senhor dos Anéis como “obra-prima católica”. Quem nos dá esse direito é o próprio Tolkien, que disse que jamais poderia ter escrito a saga se não fosse católico. Além disso, ele identificou, em muitos elementos da narração, uma específica analogia com categorias católicas (num diálogo com Clyde Kilby, disse que considerava Gandalf um anjo). Num nível mais profundo, naturalmente, descobrimos que toda a estrutura da Terra-média é absolutamente compreensível para qualquer católico sério. Por exemplo, o bem e o mal - tal como são entendidos pela Igreja - na Terra-média não são diferentes da experiência que fazemos deles. O mal age como parasita, e não tem outra função senão destruir a boa solidez e beleza que caracteriza a criação. Gollum é um exemplo significativo: criatura originalmente muito semelhante aos hobbits, o mal depois o reduziu a um sibilante, rosnante, ressecado fragmento do que é um hobbit. O mesmo vale para a paisagem de Mordor: o mal destruiu tudo o que era maravilhoso e fértil, e só deixou lá amontoados de cinzas e lama.
Também o sofrimento que se padece “no lugar de outra pessoa” é de fundamental importância na saga, como para o catolicismo: a Sociedade do Anel suporta o que suporta por amor à salvação do mundo, por assim dizer. Isso prenuncia o que é central para a nossa história, ou seja, os sofrimentos de Nosso Senhor, e os dos santos, em favor da humanidade pecadora. Uma advertência: Tolkien sempre demonstrou antipatia pela alegoria (considerava a Nárnia de Lewis alegórica demais), de forma que, de fato, existe o risco de “batizar” tudo com zelo excessivo. Frodo não é Cristo, e nem mesmo o é Aragorn (o desconhecido, mas legítimo, rei que está para voltar). Galadriel, por quanto possa ser pura e amável, não é uma alegoria de Nossa Senhora. Mas, nos fim das contas, podemos, com a aprovação de Tolkien, falar da saga como uma obra-prima católica. Como post-scriptum, seria lícito observar que nenhum protestante poderia plausivelmente ter escrito esta saga, uma vez que ela é profundamente “sacramental”. Ou seja: só se alcança a salvação por meios concretos, físicos (a Encarnação, o Gólgota, a Ressurreição e a Ascenção). E a história de Tolkien é cheia de “sacramentais” (o lembas, viático dos elfos, do originário lennmbass, “pão-de-viagem”; o frasco de luz de Galadriel; o mithril, que, em élfico, é a prata de Moria, a prata verdadeira; a athelas, planta medicinal conhecida por esse nome pelos elfos).
Mais que a comunicação de uma mensagem oculta, a principal qualidade do livro parece a de ser uma grande alegoria da vida. Como diz C. S. Lewis, “nenhum outro mundo é tão evidentemente objetivo” como o criado por Tolkien: os homens são homens de maneira mais verdadeira, os amigos são mais amigos do que normalmente experimentamos todos os dias. Enfim: a realidade em transparência. Como é possível que um mundo fantástico nos aproxime da natureza das coisas?
Repito, a palavra alegoria não agradaria a Tolkien. Agradaria muito mais o termo analogia. Os personagens, lugares e objetos de sua saga não são símbolos ou alegorias. São o que são, em primeiro lugar. Mas pode-se dizer também que são “casos exemplares” dessa ou daquela coisa de que nós fazemos experiência em nosso mundo “primário”. Mais ainda: Gollum não é símbolo de uma alma que se move velozmente para a danação final, mas um exemplo significativo, que pode ser reconhecido em nosso mundo, do que efetivamente o mal faz a uma criatura. A única diferença entre os dois mundos é que na Terra-média conseguimos perceber a diferença, ao passo que em nosso mundo a pessoa pode “sorrir e sorrir, e ser malvada” (Otelo). A maneira pela qual esse mundo “fantástico”, paradoxalmente, nos aproxima da verdadeira natureza das coisas do nosso mundo (enquanto, para um observador superficial, essa fantasia poderia parecer a mais imperturbável fuga da realidade) é que esse gênero de narração nos dá distância e perspectiva. Pega-nos de surpresa, quando nossa guarda está abaixada. Uma vez perguntei a Lewis por que a “Paixão de Aslan” me comovia mais que o relato da crucificação, quando eu sabia perfeitamente que Aslan é “apenas” uma fantasia (a “Paixão de Aslan” é um episódio do primeiro volume das Crônicas de Nárnia). Lewis respondeu-me que, quando leio o Evangelho, todas as minhas expectativas “religiosas” estão acesas (“Eu TENHO de reagir de uma certa forma, ou seja, ser grato e, provavelmente, sentir dor”); ao passo que, na “Paixão de Aslan”, sou pego de surpresa, e por isso posso até ser vencido. Da mesma forma, nós nos damos conta, para nossa surpresa, de que as próprias rochas, a água, as florestas e os vilarejos da Terra-média estimulam nossa capacidade de “ver” as rochas, a água e todo o resto de nosso mundo.
O feiticeiro Gandalf é certamente uma das figuras mais fascinantes, além de seguramente a mais poderosa, entre as que militam pelo bem na Terra-média. No fundo, é uma divindade que assumiu os limites da forma humana. Na primeira parte da trilogia morre (lutando com um ser demoníaco nas profundezas da terra), para depois ressurgir purificado. Por que Gandalf parece empregar suas energias sobretudo para que cada pessoa se empenhe livremente na luta contra o mal?
Gandalf emprega suas energias titânicas de maneira tão desinteressada porque, por assim dizer, “é assim que são as coisas”. Ou seja, um dos mistérios da natureza das coisas (tanto em nosso mundo quanto na Terra-média) é que o Bem deve ser escolhido, não imposto. Essa liberdade parece ser uma qualidade peculiar do Bem. A coerção nunca conduz, nem aos homens, nem aos elfos, ao bem. Gandalf sabe disso. Portanto, ele chega até certo ponto. Não pode agitar seu bastão para afastar o Anel, nem pode fazer Saruman voltar a ser bom. Ele é servidor do Bem, não o possui. Posso também fazer notar, com respeito à pergunta, que não podemos dizer que Gandalf “morra”. Sem dúvida, ele “escorrega para dentro do abismo” em seu combate com o balrog (criatura monstruosa e malvada, literalmente “demônio de poder”). E, mais tarde, em seu relato do episódio, ele faz referência sintética a essa experiência. Mas Tolkien evita dizer que Gandalf morre.
Frodo recebeu o Anel. Cabe portanto a ele fazer com que seja destruído. Gandalf, que seria certamente mais qualificado, nunca procura substituí-lo, mas exorta-o a levar até o fim sua tarefa, como também aos outros membros da Sociedade do Anel. No trecho final da subida à Montanha da Perdição, Frodo não consegue mais prosseguir e Sam, não podendo carregar seu “fardo” em seu lugar nem por poucos metros, carrega o amigo nas costas. Amizade e tarefa: há uma ligação? Sem falar na terna amizade que liga os hobbits. O que é a amizade em O Senhor dos Anéis?
Certamente a amizade em O Senhor dos Anéis tem a ver com aquilo a que Lewis se refere em Os quatro amores, dentro da categoria phileo. É uma das manifestações do amor. Não poderia haver nenhum tipo de amizade entre os orcs, ou entre os Cavaleiros Negros. Sauron odeia seus servos. Mas o Bem depende, por assim dizer, desse laço desinteressado entre Frodo e Sam, ou entre todos os membros da Sociedade do Anel, uma vez que é uma característica da verdadeira felicidade (e deriva do Bem) o fato de que nós “suportemos os pesos uns dos outros e, assim, cumpramos a lei” de Cristo em nossa história e o Bem na Terra-média. O fato de ter de ser Frodo o portador do Anel é duplamente apropriado: 1) esse fato enganará Sauron, que se diverte só em pensar que meios-homens possam realizar uma tarefa tão espantosa; 2) Deus escolheu o que é fraco neste mundo para confundir os fortes (e poderíamos traduzir tudo isso em termos “tolkienianos” sem grandes dificuldades). O próprio poder de Gandalf seria perigoso se fosse ele o portador do Anel, e o feiticeiro sabe disso, como também são conscientes disso Galadriel e Elrond. Os hobbits, por natureza, não se interessam muito pelo poder. Há, portanto, um aspecto de sua natureza que “coopera com” a graça - ou com o que queremos chamar “graça” na saga.
Falemos do filme: um dos cortes mais relevantes feitos pelo diretor Peter Jackson diz respeito ao personagem Tom Bombadil, completamente eliminado da história. O que perde O Senhor dos Anéis sem essa espécie de homem primigênio, sem pecado original, que vive uma surpreendente relação com a natureza?
O filme perde muito eliminando a figura de Tom Bombadil. Mas, por outro lado, Tom fugiria de todos os expedientes cinematográficos, mesmo para o diretor mais genial. O resultado cinematográfico seria uma triste paródia da pura e simples alegria, da liberdade e da alegria de Tom.
Há qualidades que só se explicam de algumas formas (você pode captar certas emoções só quando o soprano atinge o lá bemol; certos aspectos do inefável só podem ser captados nos arcos da Catedral de Chartres, e de nenhuma outro modo; certos aspectos da dor revelam-se unicamente na Pietà). O cinema falharia - qualquer modalidade de representação visual talvez falhasse - ao representar Tom Bombadil. O que o filme perde, sem dúvida, é justamente a esplêndida e alegre inocência de Tom. Esse personagem tem algumas qualidades em comum com Adão antes da queda; por exemplo, ele é o “Senhor” da Floresta Velha, não seu proprietário. Tolkien achou que sua história precisava de um ícone como esse, de pura, simples e imaculada bondade, em forte contraste com todo o mal presente naquela terra. Por mais que Gandalf, Elrond, Galadriel e Barbárvore sejam bons, para não falar nos hobbits, temos em Bombadil uma particular epifania de pura bondade.
Boromir, Denethor, Saruman, Gollum são alguns exemplos de personagens corrompidos pelo Anel, em diferentes medidas. O poder do Anel parece agir sobre uma predisposição presente em todos, inclusive em Frodo, pervertendo um desejo cuja raiz é positiva. Qual é a tentação do Anel?
O Anel, na Terra-média, deve ser por certos aspectos análogo ao “fruto” do Éden. Sua promessa é tornar-nos sábios e poderosos, elevar-nos acima de nossa condição particular e fazer de nós deuses. O bem que pode existir na raiz dessa vulnerabilidade é a consciência que qualquer criatura inteligente - hobbit, homem ou elfo - tem da dignidade da sua pessoa. O problema é que essa consciência se transforma bem cedo em “ambição”, segundo o significado original de “desejar escalar de maneira ilegítima a escala hierárquica”, manifestando assim um descontentamento com a posição que lhe foi conferida. “É melhor reinar nos infernos que servir no céu”, diz o Satã de Milton; e o mesmo dizem Sauron, Saruman e até Gollum, mesmo que a imaginação deste último pareça ser miseravelmente insuficiente para uma coisa tão elevada como o poder. Ele deseja simplesmente o seu tesouro. Se Adão quer ser um deus, perde tragicamente a majestade que é própria do “homem”; presumivelmente, se um Arcanjo é devorado pela ambição de ser uma Dominação ou Principado, está em maus lençóis. Um Arcanjo ou um hobbit ou um Vala (literalmente, “aqueles que têm o poder”, chamados também Senhores do Oeste; ndr.) cumpre seu destino glorioso simplesmente sendo o que é, tal como um cão conserva a excelência singular própria dos cães e não das águias.
No romance, o elemento divino nunca participa da ação, e as referências a ele são obscuras para quem não leu O Silmarillion; além disso, os personagens não têm atitudes religiosas. No entanto, os mais sábios entre eles relutam a condenar sem apelação, pois todos podem ter “algo a fazer antes do fim”: o mundo parece ordenado segundo um desígnio. O que existe além do mar, a oeste, e que importância tem?
A aparente ausência de um ser supremo que disponha as coisas para o Bem é um fato naturalmente desconcertante para muitos leitores da Trilogia. “Deus” nunca intervém. Os personagens parecem largados a si mesmos, e fazem o que podem contra o Mal. Esse é um achado genial por parte de Tolkien. Nas fábulas normalmente há algum talismã que resolve tudo. Na Terra-média não existe nenhum. Isso porque o relato de Tolkien situa-se num nível infinitamente mais elevado e sério que os nossos abracadabras.
As fábulas são fascinantes: mas a história de Tolkien é tão séria quanto nossa própria história. E um dos aspectos desconcertantes de nossa história é “o silêncio de Deus”. A Sociedade do Anel (como nossos santos) se esforça, dá o melhor de si, com os recursos que tem, sem poder se dar ao luxo de usar algum hocus-pocus para dispersar os Cavaleiros Negros ou expulsar os orcs. Nossa história parece ser muito semelhante. Onde está Deus? E os personagens de Tolkien não são “religiosos”. Nenhum deles reza (há uma ocasião em que Faramir e seus companheiros fazem uma pausa antes de comer; mas creio que isso possa no máximo ser comparado ao momento em que nos preparamos para a oração, a menos que o grito “Ó Elbereth! Gilthoniel!” seja uma oração). Os leitores acharão a observação seguinte um pouco extravagante, mas, como convertido ao catolicismo eu também, vejo, nessa inexpressividade dos personagens - no que diz respeito à “fé” -, uma característica especificamente católica. Os católicos normalmente não conversam sobre a fé. Os protestantes, especialmente os evangélicos, ficam desconcertados com esse silêncio. Segundo eles, os católicos não têm fé se não são capazes de “balbuciar” ao menos alguma “prova” de sua fé. Mas Tolkien, católico desde a infância, não gostaria, ou melhor, não poderia fazer que seus personagens falassem sempre de Deus, tal como ele (o próprio Tolkien) jamais poderia participar de um encontro de testemunhos. As referências fugazes ao Ocidente, e a imagem dos elfos que “migram, migram, migram” (“passing, passing, passing”) para o Oeste tingem de glória toda a narração. Essa palavra parece dizer: “Não é aqui, não é aqui a tua morada definitiva”. Por mais que possam ser maravilhosos e atraentes lugares como o Condado, Rivendell ou Lothlórien, estes também não são a pátria definitiva da felicidade. Tudo tem de se mover para o Ocidente. Também neste caso vemos como Tolkien construiu sua história de maneira tal que ela virtualmente não é tão diferente da nossa, adquirindo por isso uma seriedade que de outro modo seria impossível.
Que papel teve Tolkien na literatura européia do século XX e, em particular, na literatura católica?
O papel exercido por Tolkien no panorama literário europeu - ou melhor, mundial - do século XX enfureceu os críticos. Ele simplesmente ignorou toda a tradição narrativa que reinava soberana desde o século XVIII, ou seja, a tradição do romance “realista” e “psicológico”. Voltou ao mais antigo e nobre gênero narrativo, a Épica. O homem cartesiano não tem as categorias necessárias para lidar com esse tipo de coisa, a não que as classifique, com ar de superioridade, como “primitivas” e “frívolas”. Para um católico, a obra de Tolkien chega como um rio de água fresca e limpa em meio a um pântano fétido e malsão, trazendo consigo todas as glórias que desapareceram com o advento da modernidade, como a majestade, a solenidade, a inefabilidade, o temor reverencial, a pureza, a santidade, o heroísmo e a própria glória. Descartes e Hume teriam dificuldades para explicar o que é a glória usando seu vocabulário, e seus sucessores, tristes, não têm a mínima idéia do que se perdeu. Tolkien talvez tenha re-introduzido à Glória os pobres filhos da modernidade.
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