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Passos N.145, Fevereiro 2013

ATUALIDADE - O Livro do Papa

Uma história real

por José Miguel García

Em seu novo livro, Bento XVI analisa “os Evangelhos da infância” e nos ajuda a descobrir a verdadeira face de Jesus. E mostra o que significa usar a razão diante do Mistério: surpreender-se

“Procurei interpretar, em diálogo com exegetas do passado e do presente, o que Mateus e Lucas relatam, no início de seus Evangelhos, sobre a infância de Jesus” (p. 5). Na breve premissa Bento XVI explica assim o modo que escolheu para escrever esse livro. É o terceiro da sua grande obra Jesus de Nazaré, mais breve do que os anteriores e intitulado A infância de Jesus. O Papa estuda as narrativas sobre a infância que encontramos nos Evangelhos canônicos nos capítulos 2 ao 4, enquanto no primeiro capítulo nos põe diante do Mistério da pessoa de Jesus partindo da pergunta de Pilatos: “De onde vens?” (Jo 19,9), e estudando a sua genealogia. Este livro retoma a grande preocupação que Bento XVI manifesta também na premissa do seu primeiro livro: mostrar o verdadeiro Jesus, apoiar a fé dos cristãos nEle: “Espero que o pequeno livro, apesar de seus limites, possa ajudar muitas pessoas em sua caminhada para ou com Jesus” (p. 6).
Bento XVI, portanto, escreve pensando em todos nós, não exclusivamente nos que se dedicam ao trabalho exegético. Sua grande preocupação é aproximar a pessoa de Jesus dos homens de hoje. Na realidade, esse deveria ser o objetivo de todos os trabalhos de exegese. Como afirma o padre Marie-Joseph Le Guillou: “A exegese ajuda a Igreja se nos colocar diante de Presença de Cristo”. Esse grande serviço só pode ser prestado pelo estudioso verdadeiramente apaixonado pelo protagonista dessas histórias evangélicas, e que por isso vive uma relação concreta e real com Ele. Sem dúvida, o Papa é um deles: deixa-se tocar pela excepcionalidade de Jesus testemunhada nos Evangelhos e se fica fascinado com a imponente beleza da Sua Presença. Há também a capacidade de comunicar os próprios conhecimentos e descobertas de um modo brilhante e agradável, facilitando enormemente o trabalho do leitor.

Além do MIDRASH. Bento XVI aborda corajosamente as grandes questões levantadas por esses primeiros capítulos de Mateus e de Lucas, chamados pelos estudiosos de “Evangelhos da infância”. No decorrer dos anos consolidou-se entre os exegetas a opinião de que esses relatos não narram uma história real. Nas publicações de investigação exegética e, naturalmente, nas obras e nos artigos de divulgação, frequentemente lemos a expressão “midrash haggàdico” para qualificá-los. Ou seja, essas passagens evangélicas seriam uma interpretação narrativa de citações ou histórias do Antigo Testamento que se aplicam a Jesus; por isso, são consideradas lendas inventadas para transmitir uma interpretação teológica de Jesus. Nesses livros e artigos não é raro lermos comentários ou explicações que colocam em dúvida, por exemplo, a historicidade da concepção virginal de Jesus, o seu nascimento em Belém, a visita dos Magos do Oriente, a chacina dos inocentes. Ou simplesmente se considera óbvio tratar-se de lendas ou narrativas lendárias, sem oferecer prova ou qualquer demonstração.
Várias vezes, no livro, o Papa defende o valor histórico desses relatos da infância de Jesus. Destaco duas citações: “Mateus e Lucas – cada um à sua maneira – queriam não tanto contar histórias, mas escrever história, história real, acontecida, certamente história interpretada e compreendida a partir da Palavra de Deus. Isso significa também que não havia a intenção de narrar de modo completo, mas de anotar o que, à luz da Palavra e para a comunidade nascente da fé, parecia importante. As narrativas da infância são história interpretada e, a partir da interpretação, escrita e condensada” (p. 25). “Os dois capítulos da narrativa da infância em Mateus não são uma meditação expressa em forma de histórias. Ao contrário: Mateus nos conta a verdadeira história, que foi meditada e interpretada teologicamente, e assim ele nos ajuda a compreender mais a fundo o mistério de Jesus” (p. 138).
Bento XVI chega a essa conclusão depois de ter abordado os eventos narrados do ponto de vista histórico e com a ajuda da pesquisa exegética, levando em conta também a verossimilhança do relato. Seu modo de raciocinar não só está isento de preconceitos de uma certa exegese, mas se serve também de uma razão aberta, não reduzida por um racionalismo raquítico. Assim, respondendo à pergunta relativa à origem desses relatos da infância, indica como fontes as tradições familiares que são utilizadas pelos evangelistas para escrevê-las e reconhece como fonte principal para o Evangelho de Lucas a própria Mãe de Jesus. E comenta: “Naturalmente, a exegese `crítica´ moderna considerará como ingênuas ligações desse tipo. Mas por que não deveria existir tal tradição, conservada e ao mesmo tempo teologicamente modelada, no círculo mais íntimo? Por que Lucas teria inventado a afirmação de que Maria guardava no coração as palavras e os eventos, se sobre isso não havia nenhuma referência concreta? Por que afirmou que Maria “meditava” as palavras (2,19; cf. 1,29) se a respeito nada se soubesse?” (p. 25).
Certamente, sendo um livro escrito como teólogo e não como autoridade magistral, nem todas as interpretações oferecidas por Bento XVI serão aceitas por outros estudiosos. Algumas delas serão avaliadas positivamente; outras serão refutadas, porque consideradas inadequadas ou incompletas. É inegável, porém, que com a publicação desse livro o autor prestou um grande serviço para a comunidade dos crentes, oferecendo uma introdução ao conhecimento de Jesus, mostrando-lhes a racionalidade da fé e as bases seguras sobre as quais se apoia. Sublinhar o valor histórico desses relatos e pôr em evidência a fragilidade de certas posições consideradas definitivas será muito útil também para o mundo acadêmico.
Os episódios dos “Evangelhos da infância” revelam o mistério da pessoa de Jesus, a sua natureza divina. Sem dúvida, um dos episódios mais explícitos é aquele que fecha os dois primeiros capítulos lucanos: Jesus perdido e reencontrado no Templo. Bento XVI conclui o seu livro comentado-o brevemente.

Humildade e grandeza. O evangelista nota a perplexidade que suscitou em seus pais esse comportamento de Jesus e a resposta misteriosa que deu a sua mãe quando esta lhe questionou, com dor: “Meu filho, por que agiste assim conosco?”. Partindo dessa cena, o Papa indica sutilmente o modo adequado de ler essa passagem e o resto do Evangelho que transmite as palavras e as ações de Jesus: “Como sempre, e novamente aqui, as palavras de Jesus são muito maiores do que a nossa razão. Como sempre, superam a nossa inteligência. A tentação de reduzi-las, de manipulá-las para fazê-las adequadas à nossa medida, é compreensível. Faz parte da exegese correta justamente a humildade de respeitar essa grandeza, que, com as suas exigências, frequentemente nos supera, bem como não reduzir as palavras de Jesus a partir do questionamento acerca daquilo que o `julgamos capaz´. Ele nos considera capazes de grandes coisas. Crer significa submeter-se a essa grandeza e crescer passo a passo na direção dela” (p. 144).
Acolher a excepcionalidade de Jesus tal como é testemunhada nas Sagradas Escrituras e contemplá-la com insistência permite que façamos a caminhada da fé.


LIVRO DO MÊS
A infância de Jesus de Bento XVI (Ed. Planeta, São Paulo, 2012) é o “livro do mês” proposto pelo Movimento Comunhão e Libertação para dezembro e janeiro.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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