Pequena antologia de trechos de "El Jesuita", o volume onde Bergoglio se dá a conhecer de coração aberto
Para quem quer conhecer melhor o Papa Francisco, El Jesuita (Edições Vergara, 2010, no prelo em Portugal com o título Papa Francisco) é um documento muito útil. É um livro-entrevista assinado por Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin, jornalistas que dialogaram longamente com o então arcebispo de Buenos Aires. Bergoglio dá-se a conhecer de coração aberto. Fala de tudo: da família italiana imigrada do Piemonte e da sua ligação à avó, da pneumonia que aos 21 anos quase o matou e da paixão pelas poesias em dialeto de Nino Costa (uma acima de todas, Rassa nostrana) e dos filmes com Ana Magnani e Aldo Fabrizi, do amor pelo tango e da relação com a política.
Contudo, fala sobretudo de fé. Partindo daquela a que chama “a minha primavera”. Desde aquele dia 21 de setembro em que um rapaz de dezessete anos, Jorge, antes de festejar o Dia do Estudante com os amigos, foi rapidamente à paróquia de São José de Flores, para se confessar. Estava lá um sacerdote que não conhecia. “Foi uma surpresa, a maravilha de um encontro. Parecia-me que estavam à minha espera. Esta é a experiência religiosa: a maravilha de encontrar alguém que está à nossa espera. A partir daquele momento, para mim, Deus é aquilo que ‘vem antes’. Você O procura, mas Ele lhe procura em primeiro lugar”.
Assim, de alguma forma, a história do Papa Francisco começa ali, com aquele encontro. E se desenvolve através de fatos e juízos que propomos nesta pequena antologia, retirada precisamente daquele livro (a tradução é nossa).
CRUZ. “A dor não é uma virtude em si, mas pode ser virtuoso o modo como esta é vivida. A nossa vocação é para a plenitude e a felicidade, nesta procura a dor é um limite. Por isso, só podemos compreender plenamente o sentido da dor através da dor de Deus feito homem, Cristo (…). A chave passa por entender a Cruz como semente da Ressurreição. Todas as tentativas para aliviar a dor chegam a resultados parciais, se não estão radicadas na transcendência. É um dom compreender e viver a dor nesta plenitude. Mas é viver em plenitude que é um presente”.
VOCAÇÃO. “A vocação religiosa é um chamado de Deus diante de um coração que está à espera dele, mais ou menos conscientemente. Sempre me impressionou uma leitura do breviário que diz que Jesus olhou para Mateus de um modo que, traduzido soa como “amando-o, escolheu-o”. É precisamente o modo como me senti olhado por Deus naquela confissão. E é o lema da minha consagração episcopal”.
ESTUPOR. “Ao profeta Jeremias, Deus apresenta-se com estas palavras: ‘Sou um ramo de amendoeira’. A amendoeira é a primeira árvore que floresce na primavera. ‘Tem a primazia’, sempre. João diz: ‘Deus amou-nos em primeiro lugar, nisto consiste o amor, que Deus nos amou em primeiro lugar’. Para mim toda a experiência religiosa se não tem esta dose de estupor, de surpresa pelo amor e pela misericórdia, permanece fria”.
MISERICÓRDIA. “A verdade é que sou um pecador que Deus ama de uma maneira privilegiada. O que mais me fere é não ter sido, muitas vezes, compreensivo e equânime. Na oração da manhã, primeiro peço para ser compreensivo e justo, e depois continuo a pedir um monte de coisas que têm a ver com os meus erros. Mas tenho que passar pela misericórdia”.
SOLIDÃO. “Não tenho todas as respostas. Nem sequer tenho todas as perguntas. Quanto mais descubro respostas, mais perguntas novas surgem. Contudo, as respostas devem encontrar-se diante de situações diferentes, por vezes deves esperá-las. Confesso que, em geral, do modo como sou feito, pelo meu temperamento, a primeira resposta que aflora em mim tem o risco de estar equivocada. Perante um problema, a primeira coisa que me acontece é pensar no que não devo fazer. É estranho, mas é assim. Por isso, aprendi a desconfiar da primeira reação. Depois, com calma, passando pelo crivo da solidão, aproximo-me do que devo fazer. Mas da solidão das decisões ninguém nos livra”.
ZONA DE RISCO. “Para educar é preciso considerar duas realidades: o perímetro de segurança e a zona de risco. Não podemos educar unicamente com base nos perímetros de segurança, nem tendo em vista só a zona de risco. Deve existir uma proporção. (…) Para educar deves caminhar tendo um pé no perímetro de segurança, ou seja, em tudo o que é apreendido pelo aluno, que é incorporado, nas coisas em que se sente seguro e cômodo. E com o outro pé deves experimentar as zonas de risco, que devem ser sempre proporcionais ao perímetro de segurança, às idiossincrasias do sujeito, ao contexto social. Assim, aos poucos e poucos, transforma-se esta zona de risco numa parte do perímetro de segurança, e a educação avança”.
POUCAS GRANDES COISAS. “Para termos certezas e transmitirmos segurança, é preciso partir das grandes certezas existenciais. Por exemplo: fazer o bem e evitar o mal, que é uma das certezas morais mais elementares. (…) Mas é preciso que também estas grandes certezas existenciais se tornem carne na coerência da vida. (…) Há pessoas que têm uma cultura limitada, mas que manuseiam bem três ou quatro certezas de fundo, são coerentes com elas, testemunham-nas. Estas pessoas conseguem educar muito bem os seus filhos”.
QUEM FAZ A HISTÓRIA. Um dia ele estava saindo às pressas da Catedral. Tinha que pegar um trem. Aproximou-se dele um jovem que pediu para se confessar. “Tinha 28 anos, falava como se estivesse embriagado, mas provavelmente estava sob a ação de drogas. Então eu, ‘testemunha do Evangelho e comprometido com o apostolado’, disse-lhe: espera aqui, que está chegando outro sacerdote. Estou ocupado. (…) Mas, à medida que me afastava, sentia uma vergonha tremenda. Voltei atrás e disse-lhe: o outro padre vai se atrasar, eu vou te confessar. Saindo dali, fui eu que fui à procura do meu confessor. Disse para mim mesmo: se não me confesso, não posso celebrar a missa. Foi um sinal do Senhor que me dizia: olha, a história seu eu que faço”.
MISSÃO. “A escolha fundamental da Igreja, hoje, não está em aliviar ou eliminar preceitos, ou tornar mais fáceis certas coisas: está em sair para as ruas e procurar as pessoas, conhecer as pessoas pelo nome. Não só porque anunciar o Evangelho é a sua missão, mas porque não o fazer causa um dano. A uma Igreja que se limita a gerenciar as atividades da paróquia, que vive fechada na sua comunidade, acontece a mesma coisa que acontece a uma pessoa fechada: fica atrofiada no corpo e na mente”.
ANÚNCIO. “O importante numa pregação é o anúncio de Cristo, que em teologia se chama kerygma. E que se resume ao fato de que Jesus Cristo se fez homem para nos salvar, viveu no mundo como qualquer um de nós, sofreu, morreu, foi sepultado e ressuscitou. Este é o anúncio que provoca surpresa e leva à contemplação e à fé. (…) Em geral, verifico em certas elites cristãs uma degradação do fato religioso por ausência de uma vida. Não se presta atenção ao kerygma e passa-se à catequese, preferencialmente na área moral. Assim, relegamos o tesouro de Jesus Cristo vivo, o tesouro do Espírito Santo, para os nossos corações (…). Deixamos de lado uma catequese riquíssima, com os mistérios da fé e o Credo, e acabamos por nos concentrar sobre fazer ou não fazer uma marcha contra um projeto-lei que permite o uso de preservativos”.
OS POBRES. “É preciso dividir com os nossos irmãos a alimentação, as roupas, a saúde, a educação. Alguém poderia dizer: é um padre comunista! Não, é o Evangelho no estado puro. Seremos julgados por isso. Quando Jesus vier nos julgar, dirá: porque tive fome e deste-me de comer, tive sede e deste-me de beber…E se lhe perguntarmos: quando, Senhor? Ele responderá: sempre que o fizeste a um pobre, fizeste-o a Mim”.
O TESTAMENTO. “As primeiras coisas que salvaria se houvesse um incêndio? A agenda e o breviário. Que é a primeira coisa que abro de manhã e a última que fecho à noite. Dentro, tenho o testamento da minha avó: Que estes meus netos, a quem dediquei o melhor do meu coração, tenham uma vida longa e feliz. Mas se algum dia a dor, a doença ou a perda de uma pessoa amada lhes trouxerem dor, que se lembrem que um suspiro diante do Sacrário, onde está o maior e o mais resplandecente Mártir, e um olhar para Maria aos pés da cruz podem deixar cair uma gota de bálsamo mesmo sobre as feridas mais profundas e dolorosas.”
A ORAÇÃO. No gabinete no arcebispado tinha uma folha com uma oração escrita por ele próprio, pouco antes da ordenação: “Quero acreditar em Deus Pai, que me ama como um filho, e em Jesus, o Senhor, que infundiu o seu Espírito na minha vida para me fazer sorrir e conduzir-me até ao reino eterno da vida. Creio na minha história, que foi transpassada pelo amor de Deus e que no dia da primavera, dia 21 de setembro, veio ao meu encontro, para me convidar a segui-lo. (…) Creio em Maria, minha mãe, que me ama e nunca me deixará sozinho. E espero a surpresa de cada dia, onde se manifesta o amor, a força, a traição, e o pecado, que me acompanharão até ao encontro definitivo com aquele rosto maravilhoso que não conheço ainda e do qual fujo continuamente, mas que desejo conhecer e amar. Amém”.
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