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Passos N.147, Abril 2013

SOCIEDADE - Guerra e paz

O homem atrás do fuzil

por Luca Fiore

Combater no Iraque e no Afeganistão. Ver os próprios amigos morrerem. Perguntar-se como é possível continuar vivendo depois de ter matado. Questões de um dos duzentos voluntários que trabalharam no New York Encounter e tem uma história única para contar. A da sua batalha com Deus. A única da qual não pode tirar licença

“Por que estou aqui? Não sei. Talvez para me recuperar do tempo perdido na minha batalha com Deus. Sempre pensei que num determinado momento Ele teria assumido tudo. Sei que pode. Acredito que pode”. Nós o chamaremos de John. Nós o encontramos na cozinha do New York Encounter. Era um dos duzentos voluntários. Calças com bolsos laterais, boné de beisebol e medalha de metal do exército americano no peito. Tem 27 anos e nasceu em uma família cristã batista. O pai e o avô morreram na guerra. Em 2003 ele também entra em um Centro de Alistamento. Dali, depois de atingir a maioridade, foi enviado para o Iraque, depois, para o Afeganistão e para a Colômbia. Hoje, está em serviço no território americano. Uma noite, no final do turno, sentou-se em uma mesa e diante de alguns novos amigos aceitou contar a sua história. Com uma condição: “Sem nomes”. Diz: “Quem me trouxe ao Encounter foi minha namorada, nos conhecemos há pouco tempo quando pensei em me tornar católico”.

NOS MEUS BRAÇOS. A narração é severa, sem ênfase. É um soldado e sua universidade foram os campos de batalha. Não faz rodeios com palavras, nem saberia fazê-lo. Depois de poucas frases, vai logo ao coração do problema: “Cheguei a maldizer Deus. Eu lhe perguntava: “Se você é o Onipotente, Aquele que pode tudo, porque continua a me tratar assim? Porque continua deixando meus companheiros morrerem?”. Seu melhor amigo morreu no Iraque em janeiro de 2007, em seus braços. “Estávamos em missão. Eu estava no primeiro caminhão, ele no terceiro. Escutava música com fones de ouvido. Pareceu-me ouvir uma explosão. Não sabia o que era. Virei e vi uma revoada de pássaros subir da terra. Perguntei ao artilheiro o que tinha acontecido. Ele me respondeu: “It’s bad! It’s bad!”. O terceiro caminhão tinha passado em cima de uma mina. O artilheiro foi lançado para fora do veículo. O médico que estava no banco traseiro foi cortado em dois. O motorista voou pelo para-brisa. O motor caiu em cima dele. O passageiro que estava ao seu lado, se afogou num canal na beira da estrada. A primeira reação é tentar socorrer os sobreviventes. Depois, de uma casa, alguém começa a atirar contra eles. Naquele momento John apenas pensa que quer matar alguém. Corre em direção à casa. Pega uma granada. Entra. Vê dois jovens armados e a joga. Quando volta ao comboio, encontra o amigo no fim da vida. Tem feridas por todo o corpo, mas ainda respira. “Eu o segurei nos braços. E lhe disse: “Vou rezar por você. Sei que não acredita e não sei o que isso poderá fazer por você”. Eu continuava falando com ele, dizendo que iria encontrar sua mãe. Num determinado momento, fechei meus olhos e ajudei-o a fechar os seus. Quando os reabri, ele tossiu sangue e morreu. “Era o quadragésimo amigo que eu perdia na guerra”.
Depois disso, voltou para casa para um período de licença. Dentro dele muita inquietude. Sofre do que chamam de “distúrbios causados por stress pós-traumático”. Insônia, pesadelo, medo de ruídos inesperados. Mas é a raiva que o consome. Raiva dos homens e de Deus. Sua fé vacila. Para que serve? O que muda? Até que encontra Chris Kyle, o melhor atirador da história americana. Não morreu na guerra, mas na terra natal, no dia 2 de fevereiro. Não foi morto pelos talibãs, mas por um camarada com tiros de fuzil pelas costas. Sobre ele, John diz: “Havia duas coisas que sabia fazer bem: espaguete e matar. Normalmente os atiradores miram, erram, ajustam o foco, atiram novamente e acertam. Para ele, ao contrário, sempre bastava um tiro. One shot, one kill (Um tiro, uma morte). No entanto, era um cristão evangélico, uma das pessoas mais religiosas que já conheci”.

AQUELE TÊNIS PUMA ROSA. A pergunta que John fez é a mais humana: “Como é possível matar ou ver um amigo morrer e continuar vivendo?”. A resposta é simples. E hoje John a repete assim como a ouviu. Mas é uma resposta que abre outras mil perguntas. “Disseram-me: quando perdemos um amigo não podemos ficar com raiva e odiar o inimigo. Quer você acredite ou não, no campo de batalha, há soldados como você. Você luta por aquilo que acredita e eles também. Não há razão para odiar. Há o código de combate: eu mato você antes que você me mate. Mas não há razão para que você odeie quem vai matar”. No início, essas palavras não significaram nada. Fecha os olhos e vê o rosto das pessoas que queria mortas. “Só hoje começo a entender. Mais, quando penso nos meus inimigos, agora realmente tenho orgulho deles”. Orgulho? “Os talibãs andam com sandálias e fuzis anos setenta. Gostaria de encontrá-los, um dia, no Paraíso e, compartilhando uma cerveja, perguntar a eles: ‘Rapazes, como vocês conseguiram?’ Hoje repenso em todas as coisas terríveis que disse contra Deus. Quero uma chance para me redimir e voltar àquilo que abandonei”.
Todos escutam sem respirar. Muitos questionamentos, diante do fluxo de consciência que parece atormentá-lo. “Estou cansado das manchetes. ‘Soldado mata este, fuzileiro mata aquele’, ‘Massacre no Iraque, Massacre no Afeganistão’. Os jornais e a televisão se fixam apenas nas coisas negativas. Porém, eu mesmo não sei quantas vezes estive em missão com o único objetivo de supervisionar a reconstrução de escolas e hospitais para crianças. Mas isso não interessa às pessoas. Só despertamos interesse se cometemos erros”. John conta sobre quando esteve em um vilarejo no Afeganistão. O território é seco, rochoso. Viu crianças andarem sem sapatos e sem meias, e à noite seus pés sangravam. Pede, então, à mãe para fazer uma coleta de sapatos em sua igreja batista. Os sapatos chegam e os soldados os distribuem no dia de Páscoa. Num determinado momento, percebi que um menino calçava um Puma rosa. Era um tênis feminino. Peguei um par masculino e fui andando em sua direção. Mas enquanto me aproximava, olhei para o seu rosto. Pensei: ‘Não posso fazer isso. Talvez seja o primeiro par de sapatos da sua vida. E o que eu estou fazendo? Indo até ele e para dizer que não são adequados?’. Ele corria pelas ruas com um largo sorriso. “Deixei que ficasse com o tênis”. No vilarejo, conta John, havia muitos que apoiavam os talibãs. Mas depois da distribuição dos sapatos, apontavam para eles os terroristas. Prenderam uns quarenta. Alguns revelaram até a localização de minas anti-carro. “Salvaram a nossa vida”.
John tem apenas 27 anos, mas para ele já chegou o momento do balanço da vida. Pensa nas pessoas que matou e nas que salvou. Pensa no por que acabou virando soldado. “Deus dá os talentos. Há quem sabe falar bem e provavelmente se tornará advogado. Outro gosta de cozinhar e, provavelmente se tornará cozinheiro. Eu sou bom em combater, gosto de liderar soldados, estar no fronte... É por isso que sou soldado. Mas as pessoas não sabem o que isso quer dizer, realmente. Fala-se sobre o Navy Seals, (o corpo especial dos fuzileiros navais), mas ou se sabe exatamente o que são, ou não se tem a mínima ideia. Não há um meio termo. Para alguns, são heróis, para outros, apenas cowboys sedentos por sangue. Não são nem uma coisa, nem outra”.

VOLTAR AO FRONTE. No pelotão de John eles têm o hábito de, quando voltam à base depois de uma missão, sentar-se em volta do fogo e ficarem olhando um para o outro. Fizeram isso também depois do ataque mais devastador: uma emboscada que durou quatro dias durante os quais, por milagre, ninguém foi ferido. Projéteis vinham de todas as direções. Tiros de lança-bombas manuais. Dois ataques suicidas. Um pesadelo. Quando voltaram à base, sentaram-se em círculo como sempre. Passaram 45 minutos sem dizer uma palavra. O primeiro que falou, disse apenas: “Rapazes, que coisa”. “Foi o confronto mais selvagem que já vi”, conta John: “Foi como se Deus tivesse nos protegido com seu escudo de ferro... Mas nem sempre é assim. Dos companheiros com quem me alistei, agora somos apenas dez. Quer dizer, nove. Um morreu no ano passado”.
Outro silêncio interrompe a narração. Alguém toma a palavra e pergunta aquilo que todos queriam perguntar: você voltaria ao fronte, John? “Sim, se fosse para ajudar apenas uma pessoa, valeria a pena. Como aquele menino do tênis rosa. Se pudesse, não digo matar alguém, mas tirar algum perigo da estrada. Se fosse para melhorar a vida de uma pessoa, valeria a pena”. Outra pergunta: qual o verdadeiro motivo pelo qual alguém trabalha nisso? “Pode perguntar a 90 por cento dos soldados e tenho certeza de que dirão a mesma coisa: quando a pessoa está no fronte e arrisca a vida o primeiro pensamento nunca é ‘estou morrendo pelos Estados Unidos’. Pensa no companheiro que tem ao lado. Não interessa a política, não interessa o que as pessoas dizem, o que escrevem, não interessa nem mesmo a liberdade. A maior parte de nós sequer está de acordo com o motivo pelo qual combatemos. É uma guerra absurda, mas é o nosso trabalho. Não é uma escolha”. Nunca desejou outra vida? “Absolutamente não. Às vezes, queria ser um campeão de bambolê ou um toureiro, mas ainda tenho tempo... (sorri). Ser soldado tornou-me aquilo que sou e, sobretudo, tornou-me grato pelas circunstâncias da vida. Não me arrependo, voltaria ao mesmo Centro de Alistamento em que entrei em 2003”.

“NÃO SOU O ÚNICO”. Antes de chegar ao New York Encounter, John foi cinco ou seis vezes à Escola de Comunidade. Quando perguntam como é, ele responde: “Segunda-feira passada uma menina contou sobre o seu trabalho e disse que estava triste. Fiquei mais tranquilo por descobrir que não sou o único que diz que a vida é dura. Muitas vezes me vejo dizendo isso. Fico encorajado em saber que não sou o único que se sente derrotado”. Depois do fim de semana em Nova York, John voltará outra vez aos amigos de CL. Tem vontade de falar sobre as coisas, a necessidade de ser escutado. Deseja estar com os amigos de sua namorada. Ver que há outra pessoa que se faz as mesmas perguntas que ele. Ou fazer perguntas que os outros nunca fizeram a si mesmos. É possível que tenha encontrado o seu lugar. Diz que provavelmente não voltará mais ao fronte. Mas sua batalha com Deus ainda está em curso. Não sabemos como vai terminar. Nem ele sabe.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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