Pouco conhecida, mas presente há pouco mais de quarenta anos no país, o Método APAC é um sistema carcerário que “dignifica o homem, que olha de verdade para o coração daqueles que estão privados de sua liberdade, com a atenção voltada a sua reinserção na sociedade”. Em Minas Gerais, um exemplo do que este olhar novo está gerando na vida de milhares de homens que vivem no cárcere, e também de quem os encontra
Nos últimos meses, novamente, o sistema penitenciário tem sido matéria frequente na mídia. E como sempre, é para demonstrar que ainda continua falido, caótico, sem qualquer melhoria que possa ser significativa e, acima de tudo, demonstrando a ineficácia do Estado na manutenção desse sistema que, “a priori”, deveria atingir inúmeras finalidades, entre as quais a mais esperada é a reintegração social da pessoa que cumpre pena.
A crise do sistema penitenciário brasileiro não é nova e de qualquer ângulo que se observe, verificam-se falhas, quer em tempos mais recentes ou ainda considerando as últimas décadas. Por mais espantoso que possa parecer, a resposta para esse caos não é uma questão complexa, antes, a resposta é racional e simplista, decorrente da ausência eficaz do aparato estatal no cumprimento da pena, quer seja pela falta de treinamento dos servidores, quer seja pela falta de políticas públicas eficazes ou ainda pela falta de investimentos num sistema que, embora esquecido pelos gestores, continua ativo, organizado e capaz de abalar a paz social.
O caótico sistema penitenciário brasileiro também é decorrente do desrespeito com os direitos humanos, do descaso do Estado que puniu, da passividade dos órgãos envolvidos na administração e, porque não dizer, do medo de que esse sistema mostre a força que tem da pior forma possível.
Estudos demonstram que o Brasil é o quarto país do mundo em número de encarcerados e que a população carcerária aumentou 112% em uma década. Os números foram obtidos do Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil (USP, 2012), que analisaram o período de 2000 a 2010. Atualmente temos mais de 500 mil presos, numa clara demonstração de que o ritmo de crescimento da população carcerária ainda é alto e os investimentos e as políticas não conseguem acompanhá-la, razão pela qual as dificuldades do sistema se tornam ainda piores.
Quando se observa a questão carcerária, é preciso tentar entender que há muito mais que muros e grades em uma penitenciária. Há vidas, histórias e, claro, penas a cumprir, com um custo elevado e um resultado, muitas vezes, nulo dentro de sua finalidade. Mas se a nossa Constituição prevê que não haverá pena perpétua e a Lei de Execução Penal afirma que todos os direitos não afetados pela pena devem ser resguardados, porque tanta insistência num sistema falido?
Essa resposta não é tão simples de ser respondida e encontra diversos argumentos, que vão desde uma visão que vê no encarceramento a solução ideal, ou a melhor solução, mesmo com tantos argumentos em seu desfavor. Os adeptos dessa ideia têm a visão simplista de que “a exclusão social é a melhor alternativa”, passando pelo desejo de pena perpétua para casos de cometimento de crimes hediondos. De outro extremo, há aqueles que defendam o fim do encarceramento como forma de punição, propondo a utilização de um controle social que seja focado em outras formas de punição, tais como multas, liberdade assistida ou qualquer outro modelo que permita evitar o encarceramento em situações onde o ato praticado seja relativamente sem violência ou esteja relacionado a crimes onde o dano causado seja pequeno. Essa visão decorre da afirmação de que o cárcere não corrige ninguém e o encarceramento indevido pode gerar outras consequências piores. Desse modo, a tese que o Estado, em tais casos, deve intervir minimamente tem ganhado força em diversos países.
No sistema de intervenção mínima, não se fala em falta de punição, mas sim em sistemas alternativos que permitam colocar em prática ações do Estado visando à recuperação daquele que se marginalizou, afinal essa é a essência da Execução Penal no Brasil, ou deveria ser. Nesse modelo, a sociedade é ouvida e participa, o que permite uma interação social de maior amplitude visando à correção do modelo atual.
Um outro olhar. Neste contexto, há vários anos se desenvolve o modelo prisional APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), principalmente no Estado de Minas Gerais. Este modelo tem despertado a atenção – nacional e internacional – da sociedade civil e do mundo empresarial, devido ao novo olhar sobre o processo de reintegração social da pessoa encarcerada, sem perder a finalidade punitiva da pena.
O método APAC nasceu em 1972, em São José dos Campos/SP, favorecido por um grupo de voluntários, liderados pelo advogado e jornalista Dr. Mário Ottoboni, ligado à Pastoral Carcerária definido por Ottoboni “como uma entidade que dispõe de um método de valorização humana, para oferecer ao condenado condições de recuperar-se e com o propósito de proteger a sociedade, socorrer as vítimas e promover a justiça”.
A APAC é uma expressão da sociedade civil que se mobilizou para responder a realidade caótica do sistema prisional brasileiro, que desde a década de 1970, já sofria com as rebeliões e a superlotação. Essa triste realidade, infelizmente, ainda é atual. Vemos nos noticiários seres humanos vivendo em celas superlotadas, sem qualquer perspectiva de mudança real quando cumprirem a sua pena e retornarem a sociedade. Desse triste cenário resulta o alto índice de reincidência criminal do país, que chega a 80% no regime prisional comum.
Dentro desse caótico sistema penitenciário brasileiro, a APAC investe num modelo prisional – nos regimes fechado, semi-aberto e aberto – no qual é oferecido para o detento (que começa a ser chamado de recuperando e pelo próprio nome), um verdadeiro percurso de recuperação que desperte a vontade de mudança e a consciência da própria dignidade humana, possibilitando a inserção de uma pessoa realmente mudada na sociedade. Esse percurso é feito por meio da disciplina rígida, da educação, da formação para o trabalho, da cultura, da participação da comunidade, da família e de voluntários.
Nestas unidades prisionais não existem armas e nem policiais, pois elas são geridas por civis em estreito contato com o poder judiciário e os próprios detentos/recuperandos colaboram na organização da estrutura chegando a ter, em alguns casos, até as chaves das celas e dos portões para receber os visitantes. Eles são corresponsáveis pelo seu próprio processo de reintegração social. Nesse novo cenário, o índice de reincidência criminal é baixo, de apenas 8,5%. Com esse resultado, a APAC mostra para a sociedade como é possível a ressocialização por meio da valorização do ser humano, em todos os seus aspectos, e que o recuperando não pode ser somente definido pelo seu erro, mas pelo conjunto de fatores essenciais que constituem todo homem, em qualquer condição, como o desejo de beleza, de justiça, de felicidade, de amor, de paz.
Assim nasce um novo olhar no sistema penitenciário, entre os presos e entre aqueles que buscam promover a ressocialização, como podemos constatar na experiência da APAC em Minas Gerais. No Estado há cerca de 54.000 presos, sendo que 2.400 encontram-se nas 34 unidades prisionais/APAC. Ali, há vários anos o Tribunal de Justiça do Estado, a Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), o Governo do Estado, o Instituto Minas pela Paz, a Federação das Indústrias, a Associação dos Magistrados Mineiros (AMAGIS), a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC – Minas) e a sociedade civil organizada amadurecem o método APAC. Neste favorável cenário, houve o encontro com a Fundação AVSI que, desafiada pelo presidente da Fiat/Chrysler, há três anos começou a desenvolver, junto com a União Europeia de Direitos Humanos, um programa de assistência técnica com a formação e a profissionalização dos diretores destas unidades prisionais/APAC; um trabalho de formação profissional dos recuperandos; e um programa de crescimento e de melhorias do potencial das unidades produtivas presentes. Assim, valorizando a dignidade do ser humano e enxergando caminhos possíveis para que os presos se tornem cidadãos, as APACs promovem ações que mostram a beleza de apostar na liberdade do outro e no seu desejo de felicidade. Neste percurso – que não esquece as penas a serem cumpridas ou os crimes cometidos – se insere a descoberta de quem eu sou e como posso ser o protagonista de mudança da minha própria história.
Novas possibilidades. Uma prova clara disso foram algumas iniciativas desenvolvidas pela AVSI que, junto aos preciosos parceiros mineiros, apoia e auxilia a experiência da APAC. Entre essas iniciativas, destacamos o “Jogo da Paz” e o encontro “Muros e Viola”.
No Jogo da Paz, um grupo de adolescentes, pertencentes a comunidades com alta vulnerabilidade social, encontram-se com presos da APAC que estão em regime fechado para uma partida de futebol. Ali novas possibilidades se abrem, na relação com o outro acontece uma experiência de encontro, de respeito, de companheirismo, de aprendizado, de testemunhos. Os recuperandos vão além dos muros, no horizonte surgem novas possibilidades, e os adolescentes também vislumbram outros caminhos distintos daquele da criminalidade.
O encontro “Muros e Viola”, como nos relata Gianfranco Commodaro, diretor da AVSI em Minas Gerais, nasceu de uma provocação feita a alguns amigos durante um jantar. O amigo Chico Lobo, violeiro, cantador, compositor, aceitou o desafio. Gianfranco viu, na proposta aceita, a “amizade que surpreende também nas pequenas coisas”. Com a presença dos amigos Tomaz de Aquino, Valdeci, Rosetta, Marquinho, Padre Giovanni, dos magistrados e de todos os recuperandos do presídio, realizou-se um belo dia de cantoria e de beleza, desvelando um novo olhar entre os corredores e as celas.
Concluímos com o relato de Chico Lobo sobre aquele dia tão marcante: “Quando fui convidado pelo querido amigo Gianfranco, da AVSI, para encabeçar e dar vida a uma ação na proposta ‘Muros e Viola’ na APAC, um sistema carcerário que dignifica o homem, que olha de verdade para o coração daqueles que estão privados de sua liberdade, com a atenção voltada a sua reinserção na sociedade, me deparei com a pergunta: o que fazer? Escolhi, então, fazer uma Folia de Reis, como a caminhada dos três Reis Magos para encontrar o menino Deus nascido, por reconhecerem Nele o filho de Deus que se fez carne para nos salvar. Assim saímos em cortejo, em folia, pelos corredores e celas da APAC, cantando versos sagrados, numa cantoria certeira, para abraçar aquelas pessoas e levar a elas um pouco de atenção, de afetividade, de esperança. De cela em cela, cantamos e entramos com a bandeira santa da folia, que por muitos era beijada! Olhares atentos, olhares marejados de lágrimas por se sentirem abraçados. Uma experiência incrível de amizade, de acolhimento e, também, de fé. Depois, num momento final, todos os recuperandos (modo maravilhoso de chamar aqueles detentos que cumprem suas penas) se juntaram e cantaram para nós que os visitávamos: juízes, autoridades, imprensa, convidados. Todos muito provocados por aqueles momentos carregados de verdade, de alegria, de esperança, de dignidade. No final, eu me juntei aos recuperandos e os convidei para juntos terminarmos cantando ‘Cálix Bento’, retomando o valor daquela visita, daqueles momentos onde o objetivo era nada mais do que estar ao lado deles numa companhia sagrada! Como Deus é grande quando coloca junto as pessoas que, no agir, testemunham a fé! Sei que esse momento é uma gota no oceano da vida e dos anseios daquelas pessoas tão necessitadas de serem abraçadas, de serem amadas. Mas, que muitos momentos possam vir e que cada um de nós, pequeninos ou não, possamos sempre testemunhar a grandeza de um Deus vivo!”.
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