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Passos N.148, Maio 2013

PÁGINA UM

“Ubi fides, ibi libertas”

por Julián Carrón

“Ubi fides, ibi libertas” ("Onde há fé, há liberdade") - Santo Ambrósio

Notas da Assembleia com os Responsáveis de Comunhão e Libertação da Itália. Pacengo di Lazise (Verona), 3 de março de 2013


1. Uma postura problemática verdadeira
Como os resultados das eleições [italianas] e a situação na qual nos encontramos nos desafiam? Para além de todas as análises possíveis, o que dizem a cada um de nós e a nós enquanto comunidade cristã?
Parece-me que, ainda que só observando os resultados e sem que seja necessária uma genialidade particular, podemos ver distintamente uma fragmentação e uma confusão gerais: as ideologias que vencem, de um lado, e o desconcerto de tantas pessoas, de outro. Como esses dados nos questionam? O que nos diz o fato de que muitos, com um ímpeto de mudança tantas vezes confuso e ambíguo, estejam em busca de algo diferente e votem de acordo com esse ímpeto? Somente se levarmos em conta a gravidade de tal situação, poderemos avaliar a credibilidade de propostas e tentativas de solução. Será que é suficiente “levar para casa” algo para si? Mudar a palavra de ordem? Serão suficientes novas instruções de uso? Em outros termos, um moralismo será capaz de mudar substancialmente a situação? Deixo aberta a questão. Não pensemos que seja óbvia a sua compreensão. Espero que possamos continuar nos ajudando, ficando atentos a todos os sinais, a entender a natureza do desafio que temos diante de nós.
Qual é a origem da situação na qual nos encontramos? Dom Giussani nos vem em socorro mostrando-nos como a situação está radicada em algo que começou há muito tempo. Se não percebermos qual é a origem da fragmentação atual, correremos o risco de propor soluções que são parte do problema, as quais o agravam, complicam-no, ao invés de oferecer uma alternativa real. Por isso, permito-me reler alguns trechos de Dom Giussani que me parecem significativos – se alguém tiver uma interpretação melhor, proponha-a e a verifique. Ele sustenta que a confusão na qual nos encontramos, óbvia para todos, pode ser surpreendida na nossa atitude de homens modernos, no fato de que participamos de uma posição humana à qual falta problematicidade: “a nossa postura de homens modernos em face do fato religioso carece de problematicidade; não é, normalmente, uma postura problemática verdadeira” (L. Giussani, Por que a Igreja? Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 63). Agora que temos uma pergunta clara – por tudo aquilo que aconteceu este ano –, podemos perceber melhor, entender melhor a resposta que Dom Giussani nos dá. Mesmo sendo conhecida, é como se, agora, pudéssemos entendê-la em todo o seu alcance.
O que quer dizer que não temos uma atitude problemática verdadeira? Quer dizer que nós “já sabemos”, que não há em nós uma verdadeira necessidade de entender, que reduzimos a necessidade, que não temos a curiosidade necessária para entender. Às vezes – e aconteceu também diante das eleições –, os jogos são encerrados antes mesmo de começar a partida: cada um já tem uma imagem, uma explicação para tudo o que acontece. Dom Giussani diz: “A vida é uma trama de acontecimentos e de encontros que provocam a consciência gerando nela problemas em variada medida. O problema é a expressão dinâmica de uma reação diante dos encontros provocantes” (Idem). Tudo está na origem, no contragolpe inicial, na reação diante daquilo que acontece, no contragolpe diante do real, no início de cada evento (não depois, quando teorizamos): se aceitamos que, no encontro com as circunstâncias, emerja a pergunta, o problema, ou se “já sabemos”. Se “já sabemos”, o problema nem mesmo surgirá. E, então, por que deverei me empenhar, por que deverei fazer algo? Contudo, a coisa mais grave é que sem problematicidade, sem atitude problemática verdadeira, sem aceitar os desafios que a realidade nos coloca, não poderemos captar o significado das coisas e do viver, porque “o significado da vida – ou das coisas mais pertinentes e importantes da vida – é uma meta possível somente para quem está empenhado na problemática total da própria vida” (Idem). O adjetivo “total” é fundamental. Estou certo de que todos nós nos empenhamos de um modo ou de outro, do contrário não estaríamos aqui, mas a verdadeira questão é a totalidade, tanto é verdade que, mesmo por trás de tanta agitação, o centro do eu pode estar parado, bloqueado, há anos. Depois, a pessoa relata as coisas concretas que fez e, com isto, pensa estar demonstrando que se move. Mas, a agitação pode esconder o fato de que, em tantas ocasiões, a pessoa não se move no fundo do seu ser. Os fariseus faziam muitas coisas a mais do que os publicanos, mas o centro de seu eu não se movia. E a pessoa que não se move no fundo do seu ser nunca descobrirá o significado da vida, que é uma meta possível apenas para quem se deixa provocar e está comprometido “com a problemática total da vida mesma”. Do que depende o alcance do significado? Depende de um compromisso com a globalidade da vida. Dom Giussani coloca aqui a origem da nossa dificuldade.
De onde se vê que temos uma atitude problemática verdadeira, se estamos diante do real aceitando o desafio que ele nos lança? “O surgimento do problema implica, então, o nascimento de um interesse, despertando uma curiosidade intelectual, o que é diferente da dúvida [do ceticismo, do já sabido], cuja dinâmica existencial tende a corroer o dinamismo ativo do interesse, tornando-nos, aos poucos, estranhos ao objeto” (Idem). Interesse e curiosidade de um lado, estranheidade de outro, portanto. E o objeto ao qual, na ausência de problematicidade, nos tornamos estranhos pode ser o ambiente no qual vivemos, “o tecido de influxos” que sofremos, “a trama das circunstâncias” na qual estamos. A atitude problemática, pelo contrário, é a nossa disponibilidade em deixar-nos “provocar pelo problema” (Idem), pela totalidade da vida. De outra forma, o que veremos acontecer em nós? Uma “forma facciosa e unilateral” de estar no real, que é, hoje, evidente para todos, de forma que cada “problema se apresentará mal aos olhos, e o sujeito humano estará facilmente em desvantagem a seu respeito” (Idem). Parece ter sido escrita para hoje essa descrição da nossa desvantagem no movermo-nos na situação atual sem sermos arrastados por ela.
Giussani identifica o início desta dificuldade na verificação de um processo de desarticulação de uma mentalidade orgânica, unitária, capaz de captar o nexo entre a vida e o seu significado, e de, por isso, colocar adequadamente em questão cada passo individual. “A origem do enfraquecimento de uma mentalidade orgânica [...] está em uma possibilidade permanente da alma humana, em uma triste possibilidade de falta de empenho autêntico, de interesse e de curiosidade pelo real total” (Idem). Na semana passada, dando a primeira aula sobre O senso religioso na Universidade Católica [de Milão], saltou-me aos olhos a frase de Alexis Carrel que Dom Giussani utiliza no início do livro: “Na enervante comodidade da vida moderna, o conjunto das regras que dá consistência à vida se reduziu a mingau”. Por quê? Porque “a maior parte dos esforços que o mundo cósmico impunha desapareceu e com eles desapareceu também o esforço criativo da personalidade” (A. Carrel, O homem perante a vida. Porto: Educação Nacional, 1959, pp. 30ss). A frase de Carrel nos interessa não tanto por desejar que os esforços impostos pelo mundo cósmico retornem, mas por reafirmar que, sem o empenho no sentido de enfrentar a vida em todas as suas problemáticas, não surgirá o sujeito. Ou seja, se o indivíduo não se empenha com a vida na sua totalidade, não surgirá a personalidade e, portanto, se tornará como “minas vagantes”, como vemos ao nosso redor e, frequentemente, entre nós. Há, consequentemente, uma dificuldade a ser julgada: “A fronteira entre o bem e o mal se desvaneceu” (Idem), observa Carrel, a pessoa fica desconcertada, não sabe julgar e a divisão reina em toda parte. Podemos fotografar, assim, o resultado das eleições: a divisão reina em toda parte. O que é um sinal do desconcerto, da divisão, da fragmentação que vivemos na sociedade. Mas, atenção! Se isto induzisse a concluir “já que há esta dificuldade, é preciso dar às pessoas instruções de uso, porque é impossível que elas cheguem a um juízo”, seria o fim, o problema se agravaria de maneira definitiva. Em vez de convidar e de desafiar constantemente as pessoas a um empenho com o real total, para que a preguiça não vença, para que o centro do eu não fique parado e emerja a personalidade de cada um, damos as instruções de uso, tornando todos mais preguiçosos. Parabéns! Pensamos que, assim, resolvemos o problema? Na realidade, introduzimos somente uma desconfiança na capacidade de julgar do eu. E se, no modo de educar, insinuamos esta desconfiança, acabou! Nós nos tornaremos potencialmente vítimas da propaganda dos outros, todos. Quem assimila esta desconfiança na sua capacidade de julgar será esmagado por qualquer coisa e acabará à mercê das opiniões de quem grita mais forte.
No entanto, uma vez mais, Dom Giussani nos surpreende. A nós, com efeito, pareceria óbvio pensar que, quanto mais é fundamental, existencialmente decisiva a questão a ser enfrentada, tanto mais é difícil para o sujeito julgar. Não, não e não. É o contrário. “Quanto mais um valor é vital e elementar na sua importância [quais são os valores vitais e elementares na sua importância?] – destino, afeição, convivência [portanto, também a política] –, mais a natureza dá a cada um a inteligência para conhecê-lo e julgá-lo” (L. Giussani, O senso religioso. Brasília: Universa, 2009, p. 54). Lendo Dom Giussani, descobre-se sempre algo de novo: tendo novas perguntas, nos surpreendemos com coisas que se nos haviam escapado. Não é, de fato, verdadeiro que quanto mais é vital uma questão, tanto mais estamos desarmados; não, não, não: tanto mais a natureza dá a cada um a inteligência para conhecer e para julgar. Por isso, como ele sublinha no terceiro capítulo de O senso religioso, “do exemplo de Pasteur [...] parece-me resultar com evidência que o coração do problema cognitivo do homem não esteja numa capacidade particular da inteligência” (Idem), mas numa posição justa, numa postura exata (como define pouco depois). A questão, então, é se nós, educativamente falando, confiamos nesta capacidade que a natureza nos deu ou introduzimos uma desconfiança, como faz o poder. Aqui, tocamos o ponto nevrálgico da educação: confiar na capacidade de julgar que o Mistério colocou dentro de cada um de nós para enfrentar os problemas mais elementares e fundamentais do viver, acordá-la e desafiá-la continuamente. O centro de todo o problema é despertar no outro a posição justa, a postura exata para permitir a ele enfrentar cada questão. Qual é o primeiro sinal de que nós queremos o bem do outro? O fato de que solicitamos a sua liberdade, isto é, lhe transmitimos esta confiança em si mesmo; do contrário, a afirmação do outro é apenas conversa fiada.
A certeza de que o Mistério colocou em cada um de nós liberdade e capacidade de juízo é o que consentirá entender até o fundo o que Cristo fez com o homem.

2. A missão de Cristo e da Igreja
O que Cristo veio fazer? Giussani escreve: “Jesus Cristo não veio ao mundo para se substituir ao trabalho humano, à liberdade humana ou para eliminar a provação humana, condição existencial da liberdade. Ele veio ao mundo para chamar a atenção do homem para o fundo de todas as questões, para sua estrutura fundamental e para sua situação real” (L. Giussani, Na origem da pretensão cristã: segundo volume do PerCurso. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2012, p. 145). Encarnando-Se, Cristo radicalizou o método usado pelo Mistério para acordar constantemente o eu, para suscitar aquela postura problemática e despertar aquele interesse que pode levar o homem a se empenhar com o real total, de modo a captar o significado do viver. Não veio para Se substituir a nós, para fazer de nós bonecos, fantoches, mas para criar homens. “Jesus Cristo veio chamar o homem para a verdadeira religiosidade, sem a qual toda pretensão de solução é uma mentira. O problema do conhecimento do sentido das coisas (verdade), o problema do uso das coisas (trabalho), o problema da consciência do que as coisas são (amor) e o problema da convivência humana (sociedade e política), não são direcionados de forma justa e, por isso, geram cada vez mais confusão [eis a origem da confusão] na história dos indivíduos e da humanidade, na medida em que não se fundamentam na religiosidade, na tentativa de solução” (Idem), quer dizer, são enfrentados sem a consciência da nossa necessidade, da nossa dependência original, isto é, daquilo que somos. “Não é tarefa de Jesus resolver os vários problemas [isso faria de nós ainda mais fantoches], mas chamar a atenção para a postura com a qual o homem, mais corretamente, pode procurar resolvê-los. Cabe a cada homem empenhar-se nesse trabalho, que existe exatamente em função daquela procura” (Idem).
Assim, podemos também nos ajudar a entender qual é o verdadeiro relacionamento entre o “eu” e o “nós”, o indivíduo e a comunidade. Aquilo para o que chamamos a atenção é, com efeito, a mesma tarefa da Igreja: “Se a Igreja proclamasse como seu objetivo o [de dar soluções,] de apresentar as soluções para o esforço humano de promoção, de expressão, de busca, faria [...] como aqueles pais que têm a ilusão de resolver os problemas dos filhos substituindo-se a eles” (Por que a Igreja?, op. cit., pp. 260-261). Há uma modalidade para dizer “nós”, há uma modalidade para nos tratarmos entre nós, para guiar uma comunidade, que é análoga à postura daqueles pais com os filhos. Giussani nos adverte que se trata de uma ilusão. “Seria também para a Igreja uma ilusão, uma vez que deste modo abandonaria a sua tarefa educativa” (Idem). Entender a tarefa educativa é decisivo, se quisermos gerar um sujeito capaz de estar diante da situação social, cultural, política, de maneira a não ser esmagado pela torrente das circunstâncias. “Além disso, por um lado, seria aviltar a história essencial própria do fenômeno cristão, por outro, seria empobrecer o caminho do homem” (Idem). Há uma modalidade de entender o cristianismo que é um empobrecimento do caminho humano. “A Igreja, portanto, não tem como tarefa direta fornecer ao homem a solução dos problemas que ele encontra ao longo do seu caminho. [...] A função que ela declara ser sua na história [como continuação da presença de Jesus na história] é a educação ao senso religioso da humanidade [isto é, à necessidade, à consciência do nosso ser], e vimos também como isto implica o chamado a uma postura certa do homem diante do real e das suas interrogações [dos seus problemas, porque esta postura] [...] constitui a melhor condição para encontrar respostas mais adequadas para essas interrogações” (Idem). Giussani insiste: “A série dos problemas humanos não poderia ser subtraída à liberdade e à criatividade do homem, quase como se a Igreja tivesse de lhe dar uma solução já confeccionada [precisamente: instruções de uso], porque deste modo ela deixaria a sua originária postura educativa e tiraria o valor do tempo” (Idem).
A tentação do homem de pedir a solução dos problemas não é nova. Giussani traz o exemplo dos dois irmãos que vão até Jesus: “dize a meu irmão que reparta comigo a herança”. É o mesmo que pedir: “Pode me dizer em quem votar? Por que não me diz?”. E Jesus responde: “Meu amigo, quem me constituiu juiz ou árbitro entre vós? Guardai-vos escrupulosamente de toda a avareza, porque a vida de um homem, ainda que ele esteja na abundância, não depende de suas riquezas” (Lc 12, 13-15). O episódio, comenta Giussani, “apesar de ser relatado apenas por Lucas, sugere-nos antes de mais nada que não devia ser incomum que alguém se referisse a Jesus, como muitas vezes se fazia com aqueles que eram reconhecidos mestres, para resolver litígios e controvérsias, de tanto que é instintivo no homem pensar ter encontrado a fonte da solução dos seus problemas! [Impressionante!] Jesus logo afasta este equívoco e, justamente Ele, que mais de uma vez se manifestara juiz, cheio de autoridade [não havia se subtraído a julgar em tantas outras questões] [...] desafiando a opinião pública [...], nesse caso, faz questão de declarar que não Lhe cabe arbitrar em tal questão. Com certeza, o seu interlocutor deve ter ficado desconcertado [como tantos de nós, diante do não dar as indicações para o voto, entendo bem], e Jesus não deixa de realizar logo aquilo que, ao contrário, cabe a Ele fazer” (Idem). Por isso, a Igreja, em continuidade com Jesus, diz que sobre essas coisas, para além de chamar a atenção para a postura para a qual Jesus chama a atenção, não tem nada a acrescentar. Isto não quer dizer que Jesus, pelo fato de não resolver o litígio, não diga nada, não faça nenhuma proposta. Vocês pensam que, talvez, se Ele tivesse dado a solução teriam parado de brigar? Teriam começado! E pensam que se tivéssemos dado as indicações para o voto, teriam acabado os problemas? Previsivelmente, se algum de nós tivesse se voltado para a autoridade do Movimento para receber uma clara indicação eleitoral, e ela tivesse dito em quem votar, essa mesma pessoa, se a indicação não tivesse coincidido com aquilo sobre o qual já tivesse pensado e decidido em seu coração, teria objetado imediatamente: “Ah, não! Justo aquele partido, não!”. Ora, Jesus, comportando-Se daquele modo com os dois irmãos, não é que não proponha nada, mas diz: se quiserem resolver a questão, não me peçam a solução, perguntem-me qual é a postura a assumir para enfrentar a questão de modo justo, ou seja, não se prendam àquilo de que não depende a vida de vocês. Jesus está, portanto, dizendo que se o critério de juízo deles não estiver centrado, se não estiverem na postura justa, não poderão resolver o litígio, não poderão chegar a uma solução adequada. “Cristo, assim como a Igreja [...], não veio para resolver os problemas da justiça, mas para colocar no coração do homem aquela condição sem a qual a justiça deste mundo poderia ter a mesma raiz da injustiça” (Idem). Tantas vezes isso nos parece pouco – vimos isso também nesses tempos: aquilo que Jesus diz nos parece pouco, não suficientemente concreto, comparado à necessidade que temos (de não errar o movimento um metro antes da meta). Entretanto Giussani, que nos conhece como se nos tivesse dado à luz, observa: atenção, “não é, todavia, igual a zero a função de Cristo e da Igreja no que diz respeito aos problemas dos homens [é uma contribuição real, é uma proposta essencial;] [...] [ela porém] não é a fórmula mágica para evitar mecanicamente tais delitos [quanto aos dois irmãos ou à injustiça], mas é o fundamento para que a solução seja mais facilmente humana” (Idem). Como se reconhece a humanidade da solução? “É preciso reafirmar que a liberdade é justamente o sintoma essencial de uma solução humana: a liberdade no seu sentido pleno, potente e completo, aquela para a qual Cristo e a Igreja convidam, a do homem vigilante, com o olhar atento e a alma escancarada diante da sua origem e do seu destino” (Idem).
Nestas palavras encontramos resposta completa para a pergunta sobre o relacionamento entre o “eu” e o “nós”. Há uma modalidade do relacionamento entre o eu e o nós que leva a uma exaltação do eu, a uma capacidade de julgar (como para os dois irmãos), e há outra (como para os pais, por exemplo) que se substitui ao eu, de forma que não emerge a personalidade, não se gera um sujeito capaz de juízo. O relacionamento entre o eu e o nós pode ser estabelecido de vários modos. Por isso, se nós não nos ajudarmos a entender o nexo, a estabelecer com clareza qual é o verdadeiro relacionamento entre o eu e o nós, voltaremos a tropeçar.
Estão emergindo questões decisivas para o nosso caminho, que é preciso esclarecer, e não para nos sentirmos culpados. Quando Giussani dizia que o que acontecera no início, o seguir a imponência de uma presença (“o Movimento nasceu de uma presença que se impunha e trazia para a vida a provocação de uma promessa a seguir”), havia se tornado “organização”, captava na nossa experiência algo de distorcido. Isto não queria dizer que não devesse mais existir o “nós”, mas que havia um modo do “nós” que não era adequado ao eu. A alternativa a um nós distorcido não é arrancar o nós para enfatizar o eu, mas é reencontrar as razões de um nós que seja adequado às exigências do eu. Afirmar o eu não é ir contra o nós. O problema é que imagem do “nós” temos no nosso modo de pensar a política, de enfrentar as eleições, de nos acompanhar, de viver a comunidade, de viver uma Fraternidade, de viver a amizade, de viver os relacionamentos em família. Qual é a natureza do nós? Por isso, quando alguém contrapõe o “eu” e o “nós” erra, porque ninguém quer tirar o “nós” da experiência: o problema é esclarecer de que “nós” estamos falando. Então, paremos de dizer que o “eu” se contrapõe ao “nós” para continuar a não mudar. Não se contrapõe nada. Contrapõe-se, isto sim, um “nós” a um outro “nós”. Quando Dom Giussani dizia que CL havia se tornado uma organização, não estava dizendo que, então, a comunidade deveria se tornar “líquida”, inconsistente, mas estava fazendo uma correção precisa: dizia que a comunidade não era mais um lugar de geração do eu, que não era um “nós” adequado às exigências do “eu”. Uma organização nunca responderá às exigêncais do eu – nunca. E se o “nós” não é um lugar adequado para o “eu”, a este “eu”, um “nós” assim não interessará mais, e ele buscará um outro lugar, querendo ou não; e não bastará defender o “nós” abstratamente, porque as pessoas não irão se importar com isso; o critério para julgar, com efeito, cada um de nós o possui dentro de si.
Então, a questão não é apenas afirmar um nós, mas que tipo de nós, que tipo de comunidade é necessária para fazer com que “eus” cresçam, para que seja adequada ao eu, para que reaconteça um acordar do eu. E se não reacontece este acordar, acabaremos todos na confusão. Ao invés, se surgem estes “eus”, é possível colocar na realidade um lugar de esperança. Por isso, na Nota sobre as eleições, recordando aquilo que Giussani nos dizia, chamamos a atenção para que “o primeiro nível de incidência política de uma comunidade cristã viva é a sua própria existência” (L. Giussani, Il Movimento di Comunione e Liberazione. Conversazioni con Robi Ronza. Milano: Jaca Book, 1987, p. 118). Mas, atenção ao que é dito ali, porque toda a questão está nos adjetivos (“comunidade cristã viva”): podem surgir lugares que são como organizações nas quais o eu se deteriora ou então se multiplicam, se dilatam comunidades cristãs “vitais e autênticas”, que acordam o eu, que interessam ao eu, que o atraem, e assim a comunidade cristã se torna um dos protagonistas da vida civil. Que tipo de lugares são essas comunidades nas quais o eu floresce, que são capazes de entender as necessidades originas do homem e oferecer a ele uma resposta adequada? Se não nos ajudarmos nisso, acabaremos mudando a palavra de ordem, mas nada mudará de fato. Gostaria que cada um advertisse a urgência disso.
Temos que amadurecer uma consciência plena daquilo que somos, para poder construir lugares adequados para o crescimento do eu, e para não perpetuar lugares que sejam apenas “organizações”. Para mim, a partida se joga neste nível, e é a isto que Dom Giussani nos chamou a atenção.
Em 1969, Joseph Ratzinger dizia: “Da crise de hoje, amanhã surgirá uma igreja, que terá perdido muito. Ela se tornará menor, terá que recomeçar do zero. Ela não poderá mais preencher muitos dos edifícios, que havia erigido no período da alta. Ela, mais do que perder membros numericamente, perderá também muitos de seus privilégios na sociedade. [...] Será uma igreja [...] que não se orgulha do seu mandato político e não flerta nem com a esquerda nem com a direita. [...] O processo, de fato, da cristalização e da clarificação custará a ela também algumas boas forças. Torna-la-á pobre, a fará se tornar uma igreja dos pequenos. [...] O processo será longo e difícil [...]. Mas, depois da provação, destas divisões sairá, de uma igreja [...] simplificada, uma grande força” (Ratzinger, J. Fede e futuro. Brescia: Queriniana, 1971, pp. 114-116). Foi o que aconteceu ao povo de Israel: quando foi despojado de tudo, surgiu aquele “resto” de que falava, nesses dias, Bento XVI, o resto de Israel. É o que Dom Giussani havia dito tantos anos atrás: “Realmente – não por assim dizer, não intencionalmente, mas realmente –, se ficássemos em dez, ao invés de todo o Movimento, esta vontade de verdade do Movimento nos deixaria dolorosamente intactos, dolorosamente na paz e dolorosamente vivazes para começar do zero, para retomar continuamente”. O que Giussani quer dizer com este exemplo extremo? Quer dizer que “a nossa postura não seria determinada como euforia ou como abatimento, como exaltação ou como tédio, ou como desilusão, pelo resultado das coisas, pelo resultado social das coisas” (Conselho Nacional de CL, Milão, 15 e 16 de janeiro de 1977). Por isso, é como se nós, por tudo o que estamos vivendo, tivéssemos que recomeçar com simplicidade propondo novamente gestos, lugares, nos quais possam nascer pessoas novas, diferentes. Isto nos introduz ao último ponto.

3. A pertinência da fé com as exigências da vida
Não basta um “nós” qualquer, não basta um lugar qualquer, porque podemos nos tornar uma associação ao invés de um movimento, e podemos recomeçar sem ter aprendido nada. É aqui onde se unem o desafio do Ano da Fé, o Sínodo com o seu chamado à conversão e o gesto da renúncia do Papa. Amigos, se nós não verificarmos, exatamente nesta situação pelo qual estamos passando, a pertinência da fé com as exigências do viver, a nossa fé não resistirá e nós não teremos as razões adequadas para sermos cristãos. Podemos não ir embora de CL, mas o nosso interesse se deslocará para outro lugar: não será mais Cristo o centro da nossa afeição, não será mais Cristo aquilo que temos de mais caro. O desafio de Dom Giussani estará sempre ali, diante dos nossos olhos: ou a fé é uma experiência presente confirmada por ela... e qual é a confirmação? Que é útil para responder às exigências da vida, da educação dos filhos à política, do problema da doença ao problema do trabalho, do problema mais pessoal ao social. Se não fosse por isso, não seria uma fé capaz de resistir num mundo onde tudo, tudo diz o contrário.
Se, para nós, a experiência da fé não é a descoberta constante da pertinência dela com as exigências da vida, por isso, com as exigências que temos no trabalho ou diante das eleições, se introduz o início do dualismo. É aqui onde se coloca o desafio: Cristo é tão real a ponto de responder às nossas exigências? É tão real – como nos testemunha Santo Ambrósio – a ponto de permitir que um homem desafie o imperador, capaz de torná-lo livre até a este ponto? A vida do homem é regida por uma satisfação, como nos lembrou São Tomás: “A vida do homem consiste no afeto que principalmente o sustenta e no qual encontra sua maior satisfação” (cf. Summa Theologiae, II, II, q. 179, a. 1). Então, ou fazemos experiência de uma real satisfação, porque Cristo não é abstrato, mas real – como o Papa nos testemunhou com o seu gesto – ou nós, não tendo esta satisfação, a buscaremos em outro lugar, nas migalhas do poder. Mas, as migalhas são muito pouco para a capacidade da alma. Se Cristo não é a experiência que nos satisfaz, dependeremos, como todos, do resultado das outras coisas: dos acontecimentos eleitorais, ou da própria carreira, ou dos próprios projetos. Somente se for levada a sério toda a nossa necessidade, poderemos entender que tipo de promessa a presença de Cristo faz à vida. Do contrário, seremos como todos: quando as coisas estiverem bem, estaremos contentes, e quando estiverem mal, estaremos desiludidos. Nunca seremos livres! Porque a liberdade do gesto do Papa está apoiada sobre um cheio, sobre aquela plenitude que vem do relacionamento com Cristo presente. Quando falta a consciência do que somos e não aceitamos a problematicidade da vida, de onde emerge a exigência de totalidade do nosso eu, não nos damos conta nem mesmo do que seja Cristo, de qual é o valor de Cristo para nós. Mas, então, a fé está em risco: o problema é que Cristo não é capaz de tomar o eu, e se não o toma nos tornamos minas flutuantes.
É o momento, por isso, de tomar as rédeas, isto é, que cada um olhe para si mesmo e diga: mas eu, de todo este período, deste ano, no qual fomos desafiados sem trégua, emerjo com mais certeza de Cristo ou não? Porque, do contrário, contentes ou abatidos, perdemos tempo. Agitamo-nos daqui e dali, mas fomos potencialmente desiludidos pela fé: a fé se esvazia porque não vemos na nossa experiência a pertinência dela com as exigências do viver. Não se recomeça simplesmente mudando a palavra de ordem ou a estratégia, mas apenas se convertendo. Se não nos convertermos, se não fizermos uma experiência real de Cristo presente, repetiremos reduções e erros já experimentados.
Este ano que passou é um chamado poderosíssimo de Deus à conversão e, por isso, àquela experiência de plenitude e de liberdade, gerada pela presença contemporânea de Cristo, que é a única capaz de desafiar a imagem que tantos têm de nós: um grupo político em busca de poder. Se não fizermos experiência desta realização, desta diversidade humana, não poderemos responder ao desafio da situação.
Que uma experiência assim seja possível, o Mistério nos colocou diante dos olhos com o gesto desarmante de Bento XVI, com o seu rosto cheio de certeza e de letícia. Cada um pode dizer o que quiser, mas atrás da porta de Castelgandolfo que se fechava, havia a face cheia de letícia de um homem. Que densidade assume, agora, ouvir de novo aquela frase famosa de Santo Ambrósio – Ubi fides, ibi libertas / Onde há fé, há liberdade (Ep. 65, 5). A fé é o reconhecimento de uma presença presente, tão real a ponto de tornar possível a liberdade, a letícia, a alegria. Este é o significado do gesto do Papa.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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