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Passos N.149, Junho 2013

RUBRICAS

As cartas

“SENHOR, QUEM ÉS TU
PARA ME AMAR ASSIM?”

Caríssimo padre Julián, cheguei aos Exercícios da Fraternidade com a bateria um pouco fraca, também por causa de um “distúrbio” causado por um mal-estar psicofísico que há algum tempo me condiciona e me “quebra as pernas”, para citar Pavese. Mas também cheguei carregando um grande pedido, pedido de paz e de letícia, pedido d’Ele: “Vinde, ó Deus, em meu auxílio”. Evidentemente, embora algumas vezes tenha essa pretensão, sozinho não sou capaz e Ele está ali me lembrando que “os meus caminhos não são os seus caminhos e os meus pensamentos não são os seus pensamentos”. Algo nada fácil de aceitar. Que mistério profundo é o homem e como toquei isso com as mãos nestes dias em que passou de tudo por meu coração. Espera e desejo, a misericórdia de Deus e, de novo, ansiedade, resistência e inclinação sobre mim mesmo. Uma contradição grande, estranha, mas real e carregando sempre uma certeza mais forte do que toda aquela confusão: “Senhor, quem és tu para me amar assim, para me preferir mais uma vez?”. “E quem sou eu para Ti?”. Sei que a Sua paciente Misericórdia e a Sua Graça cheia de preferência transbordante estão comigo, ao meu lado e, então, como dizia o canto final: “Aqui, perto de Ti, quero ficar”. A sua tenaz e fecunda paternidade e a simples e discreta companhia de alguns amigos, foram mais uma vez naqueles momentos, potente e consolador chamado. No final da última missa, depois das simples palavras do padre: “Senhor, por que me amas assim?”, o amigo que estava ao meu lado sussurrou: “Aí está a letícia”. Então, entendi que aquela exasperada tensão para gritar o Seu nome, da qual você falava, mas que eu tinha dificuldade de entender, era simplesmente o grito, nem sempre consciente, mas certo, vivo e verdadeiro de que Tu, Senhor, me falta. Talvez minha voz ainda seja rouca, trêmula, muitas vezes muda, mas cresce cada vez mais a certeza de que o meu mal-estar, qualquer que seja ele, é vencido em Cristo Ressuscitado, agora. Desse modo, cresce o maravilhamento e a gratidão, porque realmente nada pode me separar do amor presente de Cristo.
Maurizio, Fidenza (Itália)

UM CORO DE ANJOS
Quase duas semanas já se passaram e ainda tenho diante dos olhos a maravilha que experimentei nos três dias dos Exercícios da Fraternidade de CL, em Mariapólis, ou seja, as palavras sempre provocadoras do Carrón, o relato do grandíssimo testemunho que foi a vida de Jamily para todos nós, da Vitória de Cristo nela; e por último a apresentação dos cantos. Faço parte do coro do Rio de Janeiro e quero contar como foi para mim a participação no canto Bogoroditze Dievo Raduisia apresentado na missa do sábado. Na verdade não era para ser cantado visto que o ensaio não foi muito bom e chegou a ser dito que dessa vez iríamos descansar na missa. Qual foi a minha surpresa quando logo após a comunhão, depois de já estar sentada, vi o coro perfilado lá na frente. Perguntei a uma amiga: é o “Borgorô”? Assim que ela confirmou, levantei-me rapidamente, com o coração disparado, pensando: “que o Senhor nos ajude”. O nosso regente, o Luan, costuma nos arrumar em linha curvas, de forma que eu fique numa das pontas, quase de costas para a assembleia. Essa posição me proporcionou ser também espectadora daquilo que estava por vir. Quando o canto começou, eu, pela primeira vez nessa música, ouvia e distinguia nitidamente todas as vozes dos naipes como se estivesse na plateia, e à medida que o canto avançava, era uma beleza que se seguia à outra, uma beleza que se sobrepunha à outra. Assim que chegamos a última palavra (nashi) o “na” parecia interminável, não acabava nunca e então pensei que não sustentaria, mas consegui e ainda tive fôlego de sobra para sustentar o “shi”. Ao término, voltando para o meu assento, disse para mim mesma: foi tão lindo! Como podemos ter feito isso? Cada um de nós sabe das suas limitações técnicas, somos amadores e não profissionais. Mais tarde, algumas pessoas que nos encontravam falavam do canto que haviam escutado. Conto apenas o que disse uma delas: “Eu estava lá no cantinho quando de repente ouvi aquelas vozes, me levantei perguntando ‘mas o que é isso?’. Fiquei comovida”. E a pessoa continuou perguntando: “quanto tempo vocês levaram para aprender? Puxa, só vocês do Rio cantando sozinhos”. Respondi-lhe que as outras comunidades ainda não sabiam a música, mas depois me dei conta que, de fato, não havíamos cantado sozinhos. Tanta beleza assim não era fruto de nossas capacidades. Penso que o Senhor manifestou a sua Beleza através de nós enviando anjos para cantar conosco. Certamente foi um presente, um grande carinho de Deus para nós.
Helena, Rio de Janeiro (RJ)

A VERDADEIRA MUDANÇA
É SER SI MESMO

Caro Julián, organizando uma gaveta encontrei as anotações daquilo que você me disse antes que eu me mudasse para a África. Já se passaram seis anos. A experiência aqui não foi um “passeio”. No entanto, aceitando o seu desafio, hoje me vejo mudado e, sobretudo, capaz de poder estar diante da realidade, e dos meus medos, de maneira totalmente nova. Entendo que a verdadeira mudança é ser verdadeiramente si mesmos. Chego a agradecer pelas dificuldades que precisei passar e que me levaram a uma consciência diferente de mim e da realidade. Houve um momento em que, no trabalho, aconteceram problemas sérios, a tal ponto em que eu me via apenas como um derrotado. Estava esgotado. Queria dizer que estava sozinho, mas não era verdade. Queria dizer que estava desesperado, mas não era verdade. Ao culpar as circunstâncias, me afundava cada vez mais, insistindo em querer ter razão, com um lamento que endurecia meu coração. Tinha chegado ao fundo. Estava contra a parede, não havia mais nenhum espaço para jogar ou continuar a “sinfonia” de lamentações. Precisava decidir. Ouvia você repetir o desafio sobre como estar diante da realidade: era bonito e eu concordava, mas, no fundo, não cedia. Precisava decidir se pertencia ao lamento, ou se eu era de Cristo. Precisava ceder a Alguém presente que estava me esperando. Entendi que Cristo tem tanto respeito por minha liberdade que não pode preencher meu coração e mudar minha vida se eu não lhe abro as portas com o meu “sim”. Basta lhe dar espaço e a vida assume outra densidade: até as pessoas que estão ao meu redor perceberam. Foi como se a realidade se tornasse um escancarar-se de janelas. Descobri que podia caminhar com as minhas pernas e que não estava mais condenado pela aprovação ou não das pessoas. Um gosto diferente, uma capacidade de amar do outro mundo. Dentro desse grande abraço de Cristo, que me comunica uma força inacreditável, vi com clareza também todas as minhas misérias. Percebo que é grande o risco de estar muito empenhado em fazer coisas por Cristo, até com boa vontade, para depois descobrir que nos perdemos porque nunca temos tempo para Ele. Ajudo na secretaria do Movimento e todas as vezes que preparo a sala para a Assembleia de Escola de Comunidade, enquanto arrumo as cadeiras, repito que ali vai se sentar Jesus. Durante as Assembleias me comovo pelo modo com que nossos amigos se comparam com o texto. Muitas vezes, para nós europeus, os séculos de história e cultura, em vez de ser uma riqueza que podemos oferecer, tornam-se uma superestrutura para dizer: “Sim, mas, porém...”. Como não me comover diante de Cyprian, quando diz que todos os meses percorre 350 Km para vir a Nairobi “para respirar”? Sempre olho para nossos amigos e me pergunto por que estão aqui. Estão aqui porque têm o mesmo desejo que eu de conhecer mais Cristo, de crescer na certeza da Sua amizade. Depois, penso na resistência que tenho quando, por exemplo, precisamos vender Passos na frente da St. Francis e, no entanto, todas às vezes fico tocado em ver como as pessoas esperam isso. Cristo é outra coisa: é uma contínua surpresa, por isso, o caminho é simples. Como Rose sempre me diz: “O fazer, fazer, fazer, cansa: é preciso se comover!”. Quando me levanto de manhã e, depois de um tempo, lembro de tudo o que há para fazer, repito: “Nunca conseguiremos!”. É então que entendo que no início das Laudes já está expressa a minha necessidade. Começar invocando “Vinde, ó Deus, em meu auxílio”, não é mais uma frase retórica.
Masu, Nairóbi (Quênia)

O MISTÉRIO DE UM SÓ MORRER
PARA QUE TODOS TENHAM VIDA

Primeiro comprei numa mercearia do centro dois pacotes de biscoitos que se encontram mais em Minas: o papa-ovo, parecido com biscoito de polvilho. Era uma noite em que estava aborrecido, embora tivesse acabado de oferecer tudo ao Senhor na Missa de que havia participado na Sé: a derrota do Corinthians da noite anterior, as conversas fúteis no trabalho, as muitas faltas de respeito e delicadeza, a minha tolice e a minha tristeza. Depois da Páscoa, ninguém, em sã consciência, poderia estar triste, muito menos depois de receber na Eucaristia o Motivo da nossa alegria, e como alimento ainda! Passava pela milionésima vez no viaduto do Chá e reparei que uma moça punha de lado sua mochila com rodinhas e pousava um dos pés sobre o parapeito do viaduto e com a outra continha o rosto, que parecia turbado por muita dor ou dúvida, ou pelas duas coisas. Ela chorava, não um choro largado, mas silencioso e contido, bem escondido. Eu, quando passo sobre o viaduto, sempre reparo se não há alguém que possa estar sofrendo a tentação de se matar. É que a morte, para mim, é uma amiga, e eu a espero em paz. Mas, de todas as mortes, a morte por suicídio me incomoda demais. Ninguém devia morrer por tirar a própria vida: é doloroso e cruel, e parece uma vitória do mal. Só parece, mas não é! Santa Catarina de Gênova, quando perguntou a Jesus o que havia acontecido a Judas Iscariotes, o Senhor respondeu a ela, no meio de um sorriso: “Você logo vai ver o que eu guardei para ele!” Então, eu passei pela moça e seguia meu caminho, mas não ficava em paz: tinha que encontrar uma maneira de trazer uma pontinha de luz para aquele semblante que parecia carregado de trevas. Voltei para trás, rezando uma Ave Maria por ela e por tudo que a incomodava (para dizer menos). Nestas horas, sempre aparece o respeito humano querendo vencer a caridade cristã, esta sim uma bandoleira revolucionária. E o respeito humano me soprava com o hálito de satanás: “ora, ela tem lá seus problemas que você nem sabe nem deve saber, vai que ela se apaixona por você na sua carência afetiva, mesmo você sendo tão feio e já velho..., vai lá, vai sim, e ela vai te alugar o resto da noite com conversa fiada, quando for amanhã, aí sim, ela se mata direitinho!”. Mas, veio logo a ideia: eu tinha o papa-ovo. Botei um na boca, para me dar o álibi de que precisava. Passei por ela mastigando e olhando para ela. Ela não olhou para mim, mas mesmo assim, a audácia que o Senhor dá venceu e eu dirigi a palavra a ela: “A senhora aceita um biscoito?” Seu semblante, então, se iluminou com aquela luzinha que eu queria poder lhe dar, quando ela me respondeu: “Não, mas muito obrigada pela gentileza!” E eu fui embora feliz. Os céticos hão de dizer, como satanás, que me inspirava, ao invés da caridade cristã, o respeito humano: é seguro que ela tenha se matado logo depois, ou nos dias seguintes, ou daqui a uns anos, quando porei mais ingredientes para aumentar sua aflição, e talvez, com sorte (para o inimigo) torná-la em desespero. Mas eu ouvia anjos que cantavam louvores ao Senhor enquanto me dirigia ao ponto de meu ônibus. E veio à minha mente, enquanto ria do meu gesto patético, mas bonito, o telefonema que o Cardeal Jorge Mario Bergoglio fez, desde Roma, já eleito Papa, ao seu jornaleiro, dizendo que não precisava guardar seus jornais, que ele não passaria mais na banca para buscar. Era um gesto, do ponto de vista humano, desnecessário: todos sabiam que ele havia sido feito Papa. Mas fez o filho do jornaleiro, que atendeu ao telefone, chorar de comoção, enquanto chamava, aos gritos, o pai, depois de ver que não era um trote: era mesmo o amigo Dom Bergoglio, que agora era também o Papa. E me fez lembrar também o mistério da nossa Redenção: como, pelo sofrimento expiatório de um só homem, o Justo Filho de Deus, todos os outros homens, pecadores, ficaram justificados. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
Toninho, São Paulo (SP)

“COMO É GRANDE O SENHOR, QUE ME TOMA POR INTEIRO”
Há alguns anos moro na Itália e, exatamente nos dias dos Exercícios da Fraternidade, houve a posse do novo bispo de Atyrau, padre Adelio Dell’Oro, que conheci em Karaganda, em 1997. O encontro com ele e outros padres italianos me fez renascer. Foi uma mudança vital. Quando soube que a posse do meu caro amigo coincidiria com os Exercícios, não sabia o que fazer. O telefonema de um amigo, padre Giuseppe, perguntando se eu pretendia ir, me ajudou muito. Eu disse simplesmente que sim. E mantive este sim até o fim. Essa decisão me desafiou muitas vezes até o momento de partir, e amadureceu com uma certeza inacreditável. Meu segundo filho, por exemplo, foi para o hospital com minha mulher. Com quem ficaria minha outra filha? Alguns amigos se ofereceram para cuidar dela. A atitude de minha mulher foi muito importante e decisiva. Eu a via cansada, mas sempre com um sorriso. Todos esses fatos me “prepararam” para uma grande e inesquecível experiência. A primeira coisa que me tocou na viagem foi a grande amizade entre padre Eugenio, padre Giuseppe e Enrico. De manhã até à noite, no avião ou no bar, na estrada ou no hotel, conversamos sobre a coisa essencial, isto é, a vida. A visita em Atyrau começou com um jantar na única paróquia da cidade, que tem meio milhão de habitantes, com os primeiros amigos e com alguns bispos. O segundo dia começou com as Laudes e uma breve discussão sobre o tema dos Exercícios de Rímini: “Quem nos separará do amor de Cristo?”. Depois, fomos à igreja onde cinco bispos celebraram uma missa muito bonita, em latim. Além deles, outros quinze padres, enquanto nos bancos éramos apenas cinco pessoas. Senti arrepios e entendi como é grande o Senhor, que chega também na estepe perdida do Cazaquistão e me toma por inteiro. À tarde, chegaram outros amigos de todas as partes do país. Alternaram-se encontros lindíssimos. Alguns viajaram 36 horas de trem para chegar ali e ir embora sete horas depois. Outros voltaram a sorrir depois de dez anos longe dessa grande amizade. Dez anos passados em um instante: estavam felizes por voltarem à origem. Ou ainda, a história de uma amiga que tinha saído sozinha de Karaganda por causa do trabalho e conservou essa amizade levando-a para todos os lugares, na igreja, no trabalho, convidando outras pessoas para verem o que há de surpreendente nas férias, nos Exercícios, na Escola de Comunidade. Histórias nascidas a partir do sim de um padre e, depois, de outro sim e de outro ainda. Depois da cerimônia de posse, foi o momento dos cantos. Vi um povo verdadeiro e feliz com seus bispos que cantavam e tocavam violão. Padre Adelio estava feliz por essa festa e curioso pelo que o esperava no dia seguinte, quando retomaria o quotidiano. Essa é a grandeza da fé. “Quem nos separará do amor de Cristo?”. Estes foram, para mim, os Exercícios Espirituais. Agora, de volta para casa, estou com meus filhos e torço para que minha mulher encontre Jesus. Desejo que todos busquem esta beleza nos rostos encontrados. Em qualquer lugar.
Igor, Atyrau (Cazaquistão)

DEFESA DE TESE
Caríssimo Julián, quero lhe agradecer pela carta que enviou ao jornal La Repubblica (“O outro é um bem, também na política”). Estudo Filosofia na Universidade Católica de Milão e há mais de um mês estou em Washington para preparar uma tese sobre Eric Voegelin. Estou estudando as consequências políticas da modernidade, quando se passa da concepção relacional de pessoa à de indivíduo fechado em si mesmo e, em última instância, escravo de suas paixões. Agradeço, porque a sua carta esclareceu muito a minha confusão sobre tudo o que foi dito e escrito. Agora está claro que a chave de leitura para a compreensão desse momento histórico fundamental que estou estudando é um olhar sobre a minha experiência. De fato, se olho para aquilo que foram esses anos na universidade, entendo que tudo – o fato de ter sido representante dos estudantes, os relacionamentos com os professores que nem sempre gostavam de nós – se joga nesse olhar positivo sobre o outro, pelo fato de que a sua presença é ineliminável e, em última instância, irredutível a todas as nossas tentativas de eliminá-la e controlá-la. Vejo que só esse olhar pode gerar uma sociedade e não um grupo de indivíduos mantidos juntos pelo medo dos outros. Sempre intuí isso, mas graças à sua carta, hoje puder vê-lo na experiência, e isto dá um valor cientificamente mais relevante para as minhas intuições.
Francesco, Washington (EUA)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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