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Passos N.153, Novembro 2013

SOCIEDADE - BRASIL

Os protestos nas ruas e a presença cristã

por Francisco Borba Ribeiro Neto

O “junho de manifestações” que aconteceu neste ano no Brasil deflagrou uma onda de protestos nas ruas cada vez mais frequentes e mais violentos. A opinião pública oscila entre a aprovação destes movimentos, na medida em que se reconhece a justiça de grande parte das reivindicações, e a condenação das ações violentas que caracterizam alguns dos grupos mais ativos.
Muitas vezes ficamos indecisos e divididos, procurando entender e nos posicionar diante do que está acontecendo. Mas grande parte do problema reside em procurarmos nos jornais e nas análises dos especialistas respostas que só podem nascer, de forma justa e adequada, de nosso próprio coração.
Sem dúvida devemos procurar informações e análises que nos ajudem a compreender o que se passa. Mas um juízo seguro, que satisfaça a nós mesmos e a nossos amigos, só pode nascer de um “eu” desperto, que se deixa impactar pela realidade e se põe em marcha a partir deste impacto – não de forma reativa, mas a partir de sua própria identidade, como uma “presença original”. A seguir, procuramos refletir sobre esta onda de protestos que acontece no Brasil a partir de uma palestra proferida no final de setembro pelo padre Julián Carrón, responsável mundial de Comunhão e Libertação (Como nasce uma presença; texto central desta edição).

As manifestações de junho. Podemos compreender a onda de manifestações de junho como a implosão de um processo de desenvolvimento econômico e social de alcance e valor inegáveis, mas que não é integral, e por isso acaba não atendendo ao desejo de realização humana que existe em cada pessoa, nem é capaz de se tornar autossustentado ao longo do tempo. Uma crise nascida da carência de um desenvolvimento humano integral, tal como aquele proposto pela doutrina social da Igreja.
Para a juventude inserida na economia globalizada e embalada por um período de desenvolvimento e crescimento econômico, a crise mundial de 2008 levou à dolorosa percepção do caráter ilusório de um modelo de realização pessoal centrado no crescimento irrefreável da economia, no consumismo e no individualismo apolítico. A mão invisível do mercado (com sua oferta de uma satisfação que se revelava inalcançável) e a visível do Estado (incapaz de encontrar caminhos para a construção do bem comum neste contexto) traíram a juventude e a população em geral.
No Brasil, a política social centrada no aumento do poder aquisitivo das categorias de baixa renda trouxe ganhos sociais inegáveis, mas não responde ao desejo de um desenvolvimento integral da pessoa, representado pelo acesso mais efetivo aos direitos inerentes à cidadania moderna: serviços públicos adequados (saúde, educação, segurança, transporte), respeito à própria dignidade pessoal e participação na vida pública. Os ganhos sociais da população de baixa renda garantiram um sucesso eleitoral em nível federal que tornou irrelevante qualquer aspecto dissonante, mas isto não resolveu o problema – que só cresce com o avizinhar-se da crise internacional. O processo de desenvolvimento brasileiro não teve a necessária universalidade e integralidade porque se supunha que o desenvolvimento institucional e socioeconômico gradativamente incluiria os mais pobres (o que é verdade, mas acontece muito lentamente) ou que o simples aumento do poder aquisitivo atenderia à população, tornando secundária uma política global eficiente de efetivação da cidadania.
A dolorosa fricção entre uma sociedade precariamente atendida em seu direito à cidadania integral e um sistema político que se ufana de seus êxitos, se autoproclama voltado para o povo, mas chafurda em escândalos de corrupção e favorecimentos, mal uso de verbas públicas e incapacidade operacional, levantou as faíscas que incendiaram particularmente a classe média urbana a partir daquele mês.

Um problema que não para de crescer. As tentativas da maior parte do governo, nas esferas federal, estadual e municipal, para responder à população objetivamente foram pouco eficazes. Em curto prazo, não existem soluções viáveis e eficientes para as reivindicações da sociedade. A manutenção do preço da passagem de ônibus não resolverá o problema do transporte urbano, um aumento de salário para os professores ou uma eleição direta para reitor não resolverão o problema da educação – e assim por diante. Mas o problema é que os governantes, ao apresentarem suas soluções de médio e longo prazo, não gozam da confiabilidade necessária para que a população aceite a situação atual e os eventuais sacrifícios que devem ser feitos. Além disso, a polícia, por falta de treinamento adequado, por decisões erradas da cúpula da segurança ou por qualquer outra razão, não tem conseguido controlar com eficiência as manifestações, que frequentemente se transformam em atos de vandalismo.
A vida democrática exige um diálogo eficiente entre as diferentes forças políticas e entre a população que reivindica e o governo que administra as políticas públicas. Quando este diálogo não produz seus frutos, como está acontecendo neste momento, cresce a tendência de se tentar conseguir as coisas a força, através da pressão direta exercida pelos manifestantes. A solução ideal seria que o diálogo se tornasse mais eficiente, gerando novas posturas em ambos os lados, e que as forças de segurança controlassem os ânimos mais exaltados – que não se predispõem ao diálogo. Contudo, o que se vê atualmente no Brasil é um diálogo feito de demagogia, que não convence os interlocutores, e ações policiais que são truculentas em alguns casos, como nos episódios de jornalistas feridos por balas de borracha, e omissas em outros, como nos casos dos atos de vandalismo que chegaram a ser fotografados e divulgados pela imprensa sem que nada fosse feito pela polícia.

A provocação das circunstâncias. As circunstâncias da vida são sempre provocações para as pessoas – e quanto mais difíceis ou desafiadoras mais provocadoras. “Contudo, nós muitas vezes somos feridos de tal maneira pelo embate das circunstâncias que se bloqueia o caminho do conhecimento, e então tudo se torna verdadeiramente sufocante, porque é como se víssemos a realidade apenas pelo buraco da ferida” (J. Carrón, op. cit.). A provocação nascida das circunstâncias difíceis pode ser reduzida a adversidade ou ofensa que nos bloqueia e impede o caminho ou pode ser vivida como sinal de um caminho a seguir, como chamado a uma realização mais plena da própria caminhada, como convite a reconhecer a própria vocação humana.
Diante das circunstâncias socioeconômicas e políticas de nosso momento atual, das dificuldades para encontrar caminhos de diálogo ou ter os direitos reconhecidos, a incapacidade de reconhecer a positividade do real gera o comodismo cínico de quem prefere não ver os problemas para não ter que se comprometer ou a violência crescente daqueles que querem que seu projeto se imponha à realidade a todo custo. Mas nenhuma das posições gera um caminho. Só aquele que percebe a positividade do real consegue se colocar numa postura justa, que leva ao compromisso e permite a construção, sem prepotência ou violência.
Mas de onde pode nascer esta capacidade de ver a positividade do real, de construir mesmo na dificuldade? Somente a pessoa que faz a experiência de um amor integral e gratuito é capaz de ver tal positividade. É o amor que nos abre para as circunstâncias, que nos dá força para superar as adversidades. Mas o amor humano é frágil, incompleto e até egoísta. Ele precisa do encontro com o amor de Deus, na pessoa de Cristo, para ser realmente capaz de trazer às nossas vidas uma novidade capaz de superar qualquer adversidade.
A violência, a frequência e a aparente falta de uma postura realmente construtiva que se vê na atual onda de protestos mostra o drama de uma cultura que é incapaz de mostrar à pessoa aquele amor pelo qual ela busca, aquela liberdade e aquele compromisso que só nascem com a experiência de uma amor integral e gratuito, que se torna presente aqui e agora.

Uma presença original. Uma presença original, capaz de portar a todos uma novidade real e construtiva, é aquela que testemunha este amor de Deus em nossa vida concreta. “Para ser de todos é preciso ser de Alguém, porque só Ele nos pode dar aquela satisfação [...] que nos torna livres para sermos verdadeiramente nós mesmos, para sermos uma presença original e não reativa”, diz padre Carrón. Quem faz a experiência deste amor se torna capaz de um amor ao outro que é impensável para nossas medidas humanas, um amor que nos fascina, nos abre à positividade do real, nos chama à conversão – como o papa Francisco nos tem demonstrado de forma veemente com seus atos e posturas nestes meses. Por isso, Dom Giussani dizia que “o homem de hoje espera talvez inconscientemente a experiência do encontro com pessoas para quem o acontecimento de Cristo é realidade tão presente que a vida delas mudou” (L. Giussani, L’avvenimento cristiano, Milão, Bur, 2003).
Não se trata, como lembra padre Carrón, de criar um projeto para responder a esta ou aquela dificuldade encontrada na vida, mas em ser uma presença que desvela ao mundo uma nova perspectiva e um novo modo de ser. Como ser esta presença no contexto dos protestos atuais? A alegria (letícia) que enfrenta as dificuldades, o amor desinteressado pelo outro (caridade), a paixão pelo real, a capacidade de encontrar a beleza são alguns sinais que tornam essa presença perceptível e geram uma amizade operativa capaz de construir caminhos alternativos diante das circunstâncias.
Mas estes sinais não nascem de forma moralista. São o reflexo de uma vida mudada na relação com Cristo, não o resultado de um esforço de alguém que tenta se adequar a certas normas e ideais. Vêm, como que por osmose, na amizade com outros que já vivem este dinamismo novo, que já se jogam na realidade como uma presença original, e que testemunham para nós este amor de Deus no mundo. “O método com que a comunidade se converte em lugar de construção de maturidade da fé para a pessoa é [...]: ‘seguir’. [...] Seguir quer dizer identificar-se com pessoas que vivem com mais maturidade a fé, envolver-se numa experiência viva” (L Giussani, Dall’utopia alla presenza, Milão, Bur, 2003).
Em seu cerne, o juízo cristão sobre os protestos políticos atuais não é nem uma condenação, nem uma adesão acrítica, mas sim “gestos de humanidade real, ou seja, de caridade”, que nos permitem “trabalhar mais, incidir mais na realidade, e com uma letícia cada vez maior, não com um desânimo e uma amargura que nos dividem uns dos outros” (L. Giussani, op. cit.).



Educar: sempre uma batalha

Estávamos, eu e minha esposa, 15 de outubro, na Praça Sete, em Belo Horizonte, para participar do protesto “Um milhão pela Educação”. Não fomos um milhão. Também não era de professores a maioria dos jovens que lá estavam. Mas não nos julguem antecipadamente. Não estávamos em greve como no Rio e, além disso, era a semana do professor, normalmente recesso escolar.
Os jovens, cheios de energia, mesmo sendo poucos, paralisaram as duas faixas do cruzamento. O que pensam sobre educação? O que querem? E nós, professores, o que queremos?
Não é fácil conversar sobre o que queremos entre nós. Salário, plano de carreira, respeito, dentre outras, é consenso. Mas quando nos colocamos diante de uma tentativa de diálogo com o governo, parece que a criatividade, qual vejo em sala, com propostas de ensino inovadoras, se resumem em dizer: “sou a favor da greve”; “sou contra”. A ação política e educativa se resume a esses condicionamentos. Por outro lado, o sindicato, as pessoas que o regem, às vezes, simplificam a discussão por vislumbrar resultados mais rápidos e, portanto, menos educativos ou pela pressão do momento político.

Eu não tenho respostas definitivas e soluções mágicas. Este ano resolvi não participar da greve deflagrada no início do ano em Belo Horizonte. As reivindicações eram justas, mas o que me incomodava nos debates era acreditar que a situação na educação mudaria sem se colocar o que significa isso para a nossa vida pessoal e profissional. Não como um individualismo, mas uma atitude que mudasse a maneira como nos relacionamos com as pessoas, com a direção da escola, com os estudantes, com a família. Isso não é um detalhe. Se as decisões políticas que tomamos não passarem por essas questões, são alienantes e, no final, como já aconteceu antes, voltamos para a sala derrotados. Isso já ocorreu comigo, não porque o resultado da greve foi insatisfatório, mas pelo fato de não estar inteiro naquele ato. Depois tudo se torna um resultado imediato e, portanto, frustrante. Toda ação política em relação à educação levará tempo para mudar, pois, sendo educativa, deve contar com a liberdade. A minha liberdade, a sua liberdade, a liberdade dos pais... Ultimamente, a minha decisão política é a de ensinar bem. Isso não significa necessariamente não participar de greves, mas como estarei participando de qualquer ação política que envolva melhorar a educação de meu povo.
Trabalhar para que a sala de aula se torne um ambiente em que se deseje aprender, para onde eu vou esperando que algo aconteça, é a revolução! Isso me fez ir à Praça Sete no dia 15 de outubro. Isso me fez construir um projeto junto com a professora de Educação Física sobre o futebol e os gêneros literários. Um professor que ensine bem: este é o desejo dele próprio e dos alunos. É preciso ter condições. Isso passa também pelo salário. Mas eu tenho quinze anos de sala de aula na educação pública das periferias de minha cidade. A falta de recursos atrapalha, mas nunca me impediu de ensinar bem!

Algumas coisas estou aprendendo a partir dessa perspectiva:
- um professor que trabalha 36h semanais (ou mais) em sala, não conseguirá se preparar bem. Algo ficará para trás;
- participar politicamente não significa eleger algum ou alguns partidos para nos apoiar; temos que nos comunicar com todos; sempre há pessoas com boas propostas em qualquer partido;
- greve não é o único recurso, mas o último, pois se trata de uma possibilidade violenta de protesto; meu filho estuda em escola pública e sei como é um processo violento tanto para os profissionais da educação quanto para ele;
- para educar precisa-se de ritmo, portanto a interrupção contínua dessa “melodia” atrapalha o professor no seu trabalho, ainda mais nas condições sociais das periferias;
- um educador não pode ficar sozinho; é preciso encontrar-se com outros para compartilhar os recursos e as necessidades.

Boa batalha!

Marcelo Belga
(Professor da Rede Pública Municipal de Belo Horizonte)


 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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