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Passos N.154, Dezembro 2013

DIÁLOGOS / FÉ E RAZÃO

A viva verdade

por Martino Cervo

Não é “absoluta”. Mas sempre “uma relação”. Assim se manifestou o Papa sobre a “verdade”, no diálogo com o jornalista Eugenio Scalfari, há alguns meses. Mas o que isso quer dizer para quem sempre indaga (como pessoa não crente) sobre certeza e conhecimento? Eis a resposta do filósofo SALVATORE VECA, que parte de um ponto que muito o instiga: “A importância da experiência”

“Para começar”, escreveu o Papa Francisco no último dia 11 de setembro, no jornal italiano Repubblica, “eu não falaria, nem mesmo para quem crê, de verdade absoluta, no sentido de que absoluto é o que está desligado, que está desprovido de qualquer relação. Ora, a verdade, segundo a fé cristã, é o amor de Deus por nós em Jesus Cristo. Portanto, a verdade é uma relação! [...] O que não significa que a verdade seja variável e subjetiva”.
Para começar, escreveu ele; e talvez nem podia prever aonde isso terminaria; qual onda de reações, pensamentos, raciocínios, impulso missionário e, talvez, também algumas instrumentalizações, essa flecha poderia gerar quando jogada numa “periferia” afastada do pensamento cristão, como o jornal la Repubblica, fundado por Eugenio Scalfari.
Uma das ramificações dessa onda chegou à praia de um dos mais importantes filósofos italianos, Salvatore Veca, docente de Filosofia Política em Pavia, que há décadas reflete – de uma posição não religiosa – sobre verdade e certeza. A convite de Passos, aceitou confrontar-se com a “pedra” lançada por Bergoglio.

O que sentiu ao ouvir o Papa falar de verdade como relação?
Fiquei muito impressionado com esse realce: o Papa fala de verdade como de alguma coisa que não pode ser viva a não ser em função de uma relação. Para ele é uma verdade que se coloca no âmbito da fé: mas o que impressiona é o destaque dado à dimensão da experiência. É muito coerente com aquilo que funda o modo de esse Pontífice se envolver com as questões das ideias e do diálogo. As razões com as quais Bergoglio aceita esse confronto não são independentes da sua experiência. Há a superação em relação à defesa de razões ligadas à interpretação, institucionalmente autorizada, de uma doutrina. Acredito que todo o método como Francisco se dirige aos outros implica o colocar em questão a própria experiência sobre o sentido da vida. O tom da sua carta generosa e sincera torna natural insistir no fato de que a verdade é algo que só tem sentido se “encarnada”.

Como se coloca essa concepção da verdade em relação à trajetória da filosofia contemporânea?
É difícil tentar uma resposta rápida. A filosofia contemporânea aborda o tema da verdade a partir de proposições e enunciados: estabelece nexos de verdade com aquilo que se diz. “Agora chove” é verdade ou não dependendo de quando se pronuncia a frase. É fácil experimentar que, na realidade, nos relacionamos com a verdade também em termos de interpretações: por exemplo, a “verdadeira” moeda, entendendo como “não falsa”. Enfim, dependendo de qual campo abordamos, o método através do qual atribuímos valor de veracidade varia. O Papa coloca a si próprio em questão ao ligar o conteúdo da sua mensagem à sua dimensão experiencial, isto é, colocando o problema da verdade de Deus como crucial para a vida do homem. Numa das últimas conversações que tive a honra de manter com Ronald Dworkin [1931-2013], grande filósofo que faleceu há alguns meses, ele me antecipou o sentido do seu livro, que saiu postumamente, Religion without God (Religião sem Deus; não publicado em português). Sustentava que existe um “temperamento religioso” que não requer o encontro com o divino. Essa profunda diferença entre ele e Bergoglio me questiona muito. Aliás, sou fã de um outro jesuíta, Matteo Ricci [1552-1610]: noto uma grande sintonia no confronto. Na China, num contexto totalmente diferente, soube encontrar o modo de falar, explorando até a iconografia, mas permanecendo atento e leal consigo mesmo e, justamente por isso, era ouvido. No prefácio de Feng Yingjing a De Amicitia, do jesuíta, Ricci é chamado de “aquele que vem de muito longe”: uma expressão semelhante a “o Papa que veio quase do fim do mundo”, usada pelo próprio Francisco na noite da eleição...

Mas a verdade como relação pode ser um método válido também fora das certezas da fé? Não se cairia no relativismo?
Para mim é válido. Não significa ocultar as diferenças de grau, mas sim conhecer que não se pode defender nem “dizer” a verdade sem relação com o outro. Para capturar aquilo que conta, o elemento da relação é fundamental, e a verdade mesma se oferece ao reconhecimento de um outro sujeito. Essa dinâmica é estranha ao relativismo: o fato de os homens fazerem experiências diferentes e viverem ênfases diferentes de verdade é uma simples constatação da variedade. Relativismo ou niilismo determinam-se quando o mero gosto se torna critério. Mas a existência dessas diversidades é o pressuposto que livra o confronto do ser puramente diplomático.

No entanto, às vezes são negados os próprios pressupostos desse confronto. O teólogo protestante Reinhold Niebuhr escreveu que “não há resposta mais absurda do que aquela que se põe como resposta a uma pergunta não feita”. Não ocorre de a própria verdade ser considerada não necessária, não apetecível, portanto não alcançável?
Sem generalizar, sim: há um senso difuso segundo o qual a realidade não importa, como se a sua consistência não fosse um valor intrínseco. Isso, no homem contemporâneo, convive com uma fome absoluta de veracidade que eu chamaria “de controle”. Pensemos na importância que damos à verdade de um diagnóstico médico, ou sobre as características de um carro, ou sobre as cláusulas de um contrato. É um tema que fica suspenso entre a obsessão pela veracidade e o descrédito da verdade. O escritor Oscar Wilde dizia que a vida é o que acontece enquanto estamos preocupados com outras coisas. E é verdade que as pessoas se colocam o problema do sentido da vida quando acontece alguma coisa. Seria necessário mais treinamento “reflexivo” para despertar essa dinâmica.

Hoje Bergoglio vive sendo atacado pela “direita”, sobretudo dentro da Igreja, e protegido pela “esquerda”, não só na Igreja. O senhor percebe um salto real em relação a Ratzinger, a quem coube uma sorte oposta?
Não é uma descontinuidade doutrinária. Vejo em Bergoglio a predominância de uma ideia de movimento na Igreja, percebida como uma realidade em contínua reforma, e uma forte e plena realização e reelaboração do Concílio. As interpretações e muitas críticas vistas até aqui me parecem de curto alcance, e não me estimulam a tomar partido. É mais interessante ver o que acontecerá depois disso, pois estamos apenas no início do Pontificado.

O senhor dedicou décadas de estudos ao tema da certeza-incerteza e, portanto, da verdade. Como se coloca em relação ao problema da verdade da pretensão de Cristo, isto é, de ser filho de Deus, morto e ressuscitado?
A minha pesquisa é sobre a fronteira móvel entre o certo e o incerto. O cristianismo situa esse confim na vertigem da metànoia, da conversão, de que Saulo/Paulo é o protagonista mais impressionante. Para mim, o problema Cristo tem a ver, antes de tudo, com a verdade e com a identidade. A pergunta milenarista, sobre a qual nasce a única religião que prevê a encarnação – “E para vós, quem eu sou?” –, é toda centrada na identidade. Jesus não disse: “Eu conheço a verdade”, mas “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Estamos diante de um salto que, para ser entendido, precisa que o homem confie numa relação. Sem esta, o significado da verdade sobre Ele muda. Para mim, que não creio, a origem de Cristo e da sua pergunta soa como uma trilha sonora, um fundo musical da vida.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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