Vai para os conteúdos

Passos N.154, Dezembro 2013

LITERATURA / ALBERT CAMUS

“Ser um homem, isso me interessa”

por Fabrizio Sinisi

Viver não é uma condição, mas uma questão. Que leva o imperador Calígula a gritar: “Nada me cai bem. No entanto, tenho uma certeza: me bastaria o impossível”. Passados cem anos de seu nascimento, um jovem dramaturgo italiano relê o autor francês indo ao coração da sua obra

Há um fio sutil, mas resistente que liga duas frases dos dois mais importantes mestres do pensamento após o segundo pós-guerra, Jean-Paul Sartre e Albert Camus: se o primeiro, no breve manifesto de 1946 (O existencialismo é um humanismo), escreveu que “é absolutamente impossível ao homem não escolher”, o segundo colocará na boca de um dos protagonistas de A peste (1947) estas palavras: “Ser um homem, isso me interessa”.
Então, se existe hoje, no centenário do seu nascimento, a possibilidade de finalmente separar Albert Camus da corrente do existencialismo francês (ao qual com frequência e apressadamente ele é nomeado), isso está justamente na sua concepção eminentemente dramática da noção de humanidade. Ser humano, para Camus, não é uma condição: é uma questão.
Tudo ou nada. É um hábito comum ligar o nome de Camus, jornalista, escritor, autor de teatro, às suas tomadas de posição políticas: da militância na célula guerrilheira “Combat” [durante a ocupação nazista da França, na Segunda Guerra Mundial] à demissão da Unesco em protesto contra a entrada, na ONU, da Espanha franquista, das críticas aos sovietes às repetidas tomadas de posição contra a pena de morte. Mas há na origem do seu compromisso uma pessoa obstinada, para quem as obras são uma testemunha persistente: e é essa questão sobre o ser do homem, sobre os fundamentos do seu estar no mundo – questões que o oprimem antes mesmo de qualquer legitimidade sociopolítica. E é essa uma questão que o homem tem o dever de fazer antes de tudo a si mesmo, como em 1942 escreverá em Mito de Sisifo: “Há apenas um problema filosófico verdadeiramente sério: o do suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena de ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”.
A própria racionalidade é que pede, ou melhor, exige a superação de si mesma, implora um além que a história, tal como é, parece negar. “Quero que me seja explicado tudo ou nada. E a razão é impotente frente a esse grito do coração. (...) O homem se encontra diante do irracional e sente em si mesmo um desejo de felicidade e de razão. O absurdo nasce do confronto entre o clamor humano e o silêncio irracional do mundo”, para depois – significativamente – acrescentar, como ateu convicto, aos que, para bajular, rotulavam-no justamente como teórico do absurdo: “Absurdo é o pecado sem Deus”.
Por isso, à luz desses cem anos (nasceu dia 7 de novembro, na Argélia), que permitem ler Camus com o destaque que merece, ele nos aparece como o receptor de uma questão sobre o homem que não deixa saída. Se, como escreve em seus Cadernos, “a cultura é o grito dos homens diante do seu destino”, é justamente na cultura que será comprovada a insuficiência de um neopositivismo no qual Camus flagra, ao mesmo tempo, a catástrofe e a tentação: “Tenho a necessidade de sentir o meu ser na medida em que ele expressa o sentimento daquilo que me escapa. Preciso escrever coisas que, em parte, me escapam, mas que representam justamente uma prova daquilo que, em mim, é mais forte do que eu”. “Chamo de imbecil”, diz, “aquele que tem medo da alegria”: uma alegria para a qual o homem foi feito, pela qual vale a pena lutar. Aliás, fazer arte é, por si mesma, o estigma dessa luta: “Uma literatura desesperada é uma contradição nos próprios termos”, escreve em O Verão.
Há uma obra sobre a qual Camus se debruçou mais de uma vez, chegando a escrever três versões distintas dela: é o drama Calígula. O personagem do imperador louco se tornou, para ele, o lugar de comprovação de uma intuição fundamental: isto é, que o desespero pode ser uma possibilidade de conhecimento que a plena satisfação, ao invés, não permite. Calígula está imune a qualquer interpretação exuberante ou heroica do seu comportamento. É um sério, insistente e, poderíamos dizer, “leal” desesperado: depois da morte da amada irmã Drusila, a sua atitude e a sua gestão do poder parecem orientados ao único fim de sondar as paredes de uma liberdade tão ilimitada que resulta insignificante; uma liberdade tão virtual que assume as características de uma prisão: “Este mundo, tal como é, não é suportável. Os homens morrem e não são felizes. (...) Como cair fora dele? Fazer um contrato com a própria solidão, não? Fazer um acordo com a vida. Achar razões, escolher uma existência tranquila, consolar-se”. Mas o consolo não pode sufocar o desejo que parece ultrapassar as próprias formas do conhecido: “Eu sou animado por uma paixão por demais forte pela vida. A natureza não lhe bastará jamais”.

O assassino. Calígula concebe a si mesmo a partir da queima de um desejo insaciável, de um vazio em que se encontra, quase que apesar dele mesmo. E é aí, a partir desta constatação, que se verifica a divisão entre o Calígula imperador e o Calígula homem: o imperador esconde e põe à mostra toda a prepotente indiscrição de um eu que é ausência, abismo de nostalgia: “Eu não sou nada. (...) A ternura! Mas onde encontrá-la suficiente para saciar minha sede? Onde encontrar um coração profundo como um lago? Não há nada que me caia bem, nem neste mundo nem no outro. No entanto, estou certo, e também você está, de que me bastaria o impossível. O impossível! Eu o busquei nos confins do mundo e de mim mesmo. Estendi as mãos. Estendo as mãos e não encontro a não ser você, sempre você, como um cuspe sobre a minha face”.
O mesmo acontecerá com o outro grande personagem-mito de Camus, o doce assassino Meursault, protagonista de O estrangeiro: o homem estranho ao próprio desejo resulta estranho a si mesmo; o próprio eu está tão distante quanto a realidade mesma se torna distante e inalcançável. Sem colocar as raízes no clamor da própria ausência, o homem se torna como Meursault: um puro preenchimento do espaço, um subjetivo neutro e por isso não há nenhuma diferença entre um banho de mar e um homicídio.
Portanto, o desespero, segundo Camus, tem os termos da alternativa entre Calígula e Meursault: a alternativa entre um extremo sofrimento e a cegueira do torpor.

O homem não é uma ideia. Em seu extraordinário romance de 1947, A peste, Camus narra a chegada da peste bubônica na cidade argelina de Orã. Isolada do exterior para impedir a difusão da doença, a cidade fica prisioneira do seu mal. A peste se torna, paradoxalmente, um excepcional e dramático observatório para se interrogar a natureza do homem, colocá-lo numa condição de emergência permanente: como se reage à peste? O que é o homem, e como se comporta quando é colocado, catastroficamente, numa real intimidade com a morte?
Num panorama em que “a peste havia eliminado todo juízo de valor”, fica imediatamente claro que é insuficiente uma atitude puramente voluntarista: “Eu tenho muitas pessoas que morrem por uma ideia. Não creio no heroísmo, sei que é fácil e aprendi que era homicida. O que me interessa é que se viva e que se morra por aquilo que se ama. (...) O homem não é uma ideia, Rambert”.
E justamente o personagem de Rambert, um jornalista que chegou por acaso a Orã, e constrangido pela epidemia a não poder deixar a cidade, revela como uma doença pode fazer despertar no homem o que ele tem de mais forte e pessoal: embora tenha conseguido, depois de muitas tentativas, encontrar uma maneira de fugir de Orã, Rambert decide, enfim, não partir, permanecendo na cidade empesteada: “Rambert disse que se tivesse partido sentiria vergonha; e isso teria arruinado o seu amor por aquela que havia deixado para trás”. Ou como o culto jesuíta padre Paneloux, que primeiro acusa os seus concidadãos de terem merecido o castigo divino, e só depois de ter assistido à terrível morte de uma criança olhará a peste com olhos novos, sem concessões: passando significativamente do “vocês” para o “nós”, afirma a radicalidade da fé num momento tão definitivo e dramático: “Meus irmãos, é chegada a hora. É preciso ou tudo crer ou tudo negar”.
A peste vai passar. Mas o doutor Rieux, outro personagem capital, entende bem que, de fato, o ponto da questão não passou. Há algo que resiste, e que justamente a peste soube fazer emergir e tornar crucial: o motivo pelo qual vale a pena viver, um motivo válido para não morrer, o objeto de toda esperança humana a permanecer no mundo: “Sim, repousaria lá em cima. Por que não? Seria também um pretexto para a memória. Mas se isso era ganhar a partida, como deveria ser duro viver somente com o que se sabe e se recorda, desprovido do que se espera. (...) Não há paz sem esperança”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página