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Passos N.157, Abril 2014

RUBRICAS

Cartas

Eu e Margherita, diante daquele coração que gritava
Tempo atrás, uma aluna minha do primeiro colegial, me disse: “Professora, preciso de um adulto a quem possa dizer coisas que não posso dizer a minha mãe”. Margherita encontrou o grupo dos colegiais de CL há pouco tempo e vem de uma família distante da experiência da fé. Chorando, mas lúcida e em alguns momentos com frieza, me conta a história de seu pai. Freak Antoni, vocalista dos Skiantos, que foi definido como “o rebelde”, pelas canções e letras provocativas. “Meu pai é deprimido, usou drogas e nunca se importou comigo. Agora está morrendo. Tenho medo. Tenho medo da morte, tenho medo da sua morte”. Eu olhava para ela e pensava no peso que essa menina de quatorze anos devia carregar nos ombros. A certo ponto, lhe digo: “Margherita, você precisa perdoar seu pai”. “Impossível, não quero nem vê-lo”. “Eu vou ao hospital com você”. Não se pode mentir a uma jovem de quatorze anos cujo pai está para morrer, mesmo um pai tão ausente. No hospital, diante dela, de seu pai, de seus avós e de sua mãe, vi que não basta ser uma professora, ser adulta, “responsável pelos colegiais” para ter esperança. Onde está a minha esperança? Eu, assim tão cheia de dúvidas e temores, que certeza tenho? E ali, diante de seu pai, que chorou ao ver a filha, e de Margherita, que começou a acariciar a mão do pai com ternura, pedi a ajuda de Deus. Freak Antoni foi para o céu. Fui ao velório, numa sala oferecida pela Câmara Municipal da cidade. Margherita ficou lá o dia todo. Assim que entrei, ouvi um rumor muito alto: uma sala cheia de pessoas de todos os tipos, dos mais desesperados a celebridades e amigos; um telão gigante exibia fotos, frases e concertos de Freak, muita saudade, afeto e palavras que celebravam um homem que o mundo não entendeu. Beijos e abraços, em meio a uma confusão de palavras e música alta, e alguns que cumprimentavam Margherita. Num determinado momento, ela me disse: “Professora, daqui a pouco o prefeito virá aqui e fará um discurso, eu também quero falar”. O prefeito falou, comovido, para uma sala lotada. Margherita pega o microfone com decisão e, sob o olhar perplexo de todos, começa a ler o que escreveu durante a noite: “Olá. Eu me chamo Margherita. Como muitos de vocês sabem, sou filha de Freak. Antes de mais nada, quero agradecê-los por terem vindo prestar uma homenagem a meu pai, e agradeço por todas as mensagens que escreveram para ele no Facebook. Vocês foram a vida dele. Ele vivia no palco, vivia para o seu trabalho. Passou muitos Natais longe da família porque tinha algum concerto ou alguma entrevista. Eu o odiei um pouco por isso. Pensava que estava me deixando de lado, pensava que ele não se interessasse por mim porque não passava o Natal com sua família, comigo. Agora, talvez, eu entendo. Não sei se alguma vez vocês já se sentiram tristes, mas tão tristes a ponto de se perguntarem sobre o sentido da vida, sobre o porquê das coisas. Comigo, às vezes acontece. Com meu pai, acontecia sempre. Ficamos tristes porque nos falta alguma coisa. Não é? Senão estaríamos contentes e satisfeitos. Mas, o que falta? Talvez esteja triste porque eu não tenho o novo iPhone. Ou talvez porque não tenho um namorado e hoje é dia de São Valentin... E cada um procura, a seu modo, preencher o vazio que sente. Meu pai o preenchia com a droga, com os concertos, com histórias de amor irrealizáveis. Meu pai era uma pessoa triste, alguém sem ‘esperança’ (no bom sentido), um infeliz, um irrequieto. Outro dia, encontrei em sua carteira uma frase que ele escreveu, quem sabe em que circunstância. Dizia: ‘Por isso não reprimirei a minha língua, falarei na angústia do meu espírito, queixar-me-ei na tristeza da minha alma’ ( 7,11). Meu pai era um grande homem, porque gritava, porque não se contentava, porque o seu desejo de felicidade era maior do que qualquer concerto, droga ou história de amor. Cito uma frase sua: ‘Deus nos deve explicações’. Esperemos realmente que agora Ele lhe dê. Obrigada a todos”. Aplausos e embaraço de muitos que, no final, foram cumprimentá-la balbuciando palavras confusas. Eu, comovida pelo modo como Deus a tomou, olhei para ela e, quase sem acreditar, disse: “Sabe, Margherita, o que seria preciso fazer agora? Dizer uma oração por seu pai”. Ela me olhou e, com decisão, disse: “Sim, mas não sei bem como se faz”. Pega novamente o microfone, e diz: “Desculpem, gostaria de dizer outra coisa. Eu, agora, faço uma oração por meu pai. Quem quiser, reze comigo. Ave Maria...”.
Sabrina, Bolonha (Itália)

Sempre em busca do amor da minha alma

Quando o Bracco me disse “quero marcar um encontro com os colegiais e o Carrón”, que estaria em São Paulo apenas no final de semana, a primeira coisa que eu perguntei foi “ele é legal?”, porque não é fácil conversar sobre coisas tão sérias com alguém que não é familiar... Após confirmar que sim, começaram as provocações: o que você vai falar para ele? Quando chegou o dia, assim que cheguei na PUC percebi um nervoso geral, principalmente das pessoas que queriam fazer colocações, como eu... Após ouvir as perguntas de alguns dos meus amigos, que eram respondidas pelo Carrón com muita atenção e detalhes, com um sorriso que ia de uma orelha à outra, tomei coragem e fiz a minha: “Como você encontrou o amor da sua alma, do qual tanto fala Maria Madalena?”. Ele me respondeu uma série de coisas belas que eu provavelmente já tinha ouvido antes e então eu resolvi complementar a minha pergunta: “Eu sinto que quanto mais eu encontro o amor da minha alma, menos eu o tenho... Como eu posso viver feliz mesmo com essa saudade tão grande no coração, assim como faz o Bracco, que sempre que o vejo está feliz?”. Nesse momento eu entendi pela primeira vez o que minha mãe me falava desde pequena: “Precisamos seguir alguém, se não a gente se perde”. Carrón me disse que eu precisava encontrar alguém que eu realmente desejasse seguir e que quanto mais perto eu chegasse maior seria essa saudade, que era um sinal positivo de que eu já havia encontrado o amor da minha alma. Disse-me também que essa saudade era humana, dando o exemplo: “Se você pudesse colocar em um quarto todas as coisas que você gosta, o que mais você iria querer?” E a primeira coisa que pensei foi: “sair do quarto”, comprovando o que ele mesmo havia falado há alguns minutos: quanto mais perto maior o desejo.
Isabel Machado, São Paulo (SP)

Sair de casa em Caracas para uma aula de música

Na quarta-feira, dia 12 de fevereiro, estava em minha nova casa no Parque Carabobo, a alguns quarteirões de onde estava acontecendo uma manifestação contra o Governo do presidente Nicolás Maduro. Lá, não tenho acesso à internet, e as janelas do apartamento ficam na direção oposta à praça. Não tinha ideia do que estava acontecendo a algumas ruas dali, porque só tinha a televisão – que não fala dos fatos do dia –; mas recebia continuamente mensagens avisando-me para não sair porque a situação estava tensa. Estava a poucos metros do que acontecia naquele dia, a poucos metros do lugar onde pessoas morreriam, e eu não sabia de nada. No fim, saí para pedir informações aos vizinhos do andar de baixo, e percebi um pouco a gravidade da situação. Mas, o que mais me marcou, naquele momento, foi um pensamento: o que eu posso fazer diante de tudo isso? Fiz essa pergunta a uma amiga do Movimento. Comentamos que “as forças que mudam a história são as mesmas que mudam o coração do homem”, e que este é um momento no qual somos chamados a ser protagonistas. Mas como? Tenho a graça de ter sido tocado pelo carisma do Movimento e de poder dar-me conta de que, quer eu sinta muito ou pouco medo, tenho um coração que tem um desejo de infinito que não pode ser definido por nenhuma circunstância, boa ou ruim. Por isso eu podia e devia fazer algo diferente de descer às ruas e jogar pedras, quebrar e destruir. Então, anoiteceu. Meu aluno de violão da quinta-feira – um senhor de sessenta e poucos anos – me telefonou insistindo para que não mudássemos o dia da aula. A situação estava mais serena, mas mesmo assim eu ainda tinha muitas dúvidas se devia sair ou não. No fim, como a manhã parecia tranquila e eu não precisaria levar o meu violão porque ele tinha um em casa, fui. Em uma pausa da aula, começamos a falar sobre a situação geral, e lhe contei o que tinha me acontecido no dia anterior. Sua resposta me surpreendeu: disse-me que exatamente por isso tinha insistido tanto para fazer aula. Porque a música o ajuda a permanecer ligado à realidade, a olhar para si e para aquilo que acontece nesse momento. Esse homem sempre quis aprender a tocar, mas só agora tem tempo e condições para isso. Depois dessas palavras, com as quais me fez ver o valor daquela aula, meu estado de ânimo era completamente diferente. No final da aula, ele me agradeceu pelo trabalho. E eu pensei comigo: “Aí está, este sou eu. Francisco, em ação”. No dia seguinte, tinha três alunos em uma escola, e as aulas começavam às duas e meia da tarde, hora em que é melhor começar a voltar para casa para não correr o risco de se ver envolvido nas manifestações. Tinha certeza de que ninguém viria. Mas fui do mesmo jeito, porque tenho um contrato com a escola. Quando cheguei, por volta das duas e vinte, o primeiro aluno já estava lá. Estava sentado e se exercitando. Este fato me desarmou completamente. Fizemos a aula inteira. O aluno seguinte (que vinha da região que estava mais agitada naquele dia) não podia vir porque tinha sofrido um acidente de carro. Mas sua mãe ligou para a escola para avisar. Isso também me impressionou muito: nunca teria esperado que, em uma situação assim, se preocupariam em avisar. A última aluna a quem eu devia dar aula era uma menina (estes alunos têm todos entre 11 e 16 anos) que vem de uma região fora de Caracas. Pensava que naturalmente ela não enfrentaria a viagem naquelas circunstâncias para fazer uma aula de violão. Quando chegou a hora, de fato, ela não apareceu. Mas, logo depois, ligou para a escola para avisar que estava atrasada por causa do trânsito. Estava chegando. Perguntou se eu poderia esperá-la. Estava de novo desarmado. Eu a esperei. Fizemos a aula inteira. No fim, para mim, foi impossível não me perguntar: o que levou esses jovens a virem à aula? Será que precisaram discutir com os pais para que os deixassem vir, em uma situação tão incerta e perigosa? Pensei em muitas coisas. Mas, depois dessas aulas, não tive mais dúvidas de que, em meio a esse caos que circunda a cidade, valia a pena sair de casa e ser eu mesmo, e dar aquilo que sou. Claro que vale a pena. Porque tenho certeza de quem eu sou e a quem pertenço.
José Francisco, Caracas (Venezuela)

A minha resposta à pergunta: “Quem é Jesus?”

Oi, Julián. “A primeira vez que morri”, foi em 1998, quando – pouco antes do nascimento – minha filha foi diagnosticada com uma má-formação na espinha dorsal, e os médicos sugeriram enfaticamente um aborto. No decorrer destes anos (agora minha filha tem quinze anos) morri outras vezes; a última foi na sexta-feira, 24 de janeiro, quando minha filha foi internada para passar pela enésima cirurgia, programada, mas estranhamente longa. No fim, tudo correu bem, a não ser por algumas complicações sem gravidade. Este episódio trouxe duas consequências: a primeira foi o grande testemunho que os jovens dos colegiais foram para mim no período de reabilitação, antes e depois da cirurgia. O frescor do encontro com Cristo sem preconceitos levou a uma infinidade de mensagens e encontros com minha filha. Cito apenas uma das mensagens que ela leu para mim: “Não se preocupe, nós rezamos por você e fique certa de que Jesus estará ao seu lado e saberá ajudá-la e cuidar de você”. A segunda consequência diz respeito a mim, à enorme dificuldade que tinha de enfrentar o que estava acontecendo: não tanto e só a dificuldade de um pai que vê sua filha sofrer outra vez, mas algo que vai além e que entra no coração. Tanto que, pela primeira vez, pedi de maneira explícita aos meus amigos para rezarem não só por minha filha, mas também por mim. Será possível, me perguntei, que entre todas as pessoas que têm o mesmo problema de minha filha só ela tenha que passar por essas cirurgias? Ela não se ofereceu voluntariamente a Jesus! Não disse, como qualquer grande santo: “Jesus, faça-me provar um pouco dos teus sofrimentos para salvar o mundo”. No entanto, Deus a preferiu e a prefere também agora. Eu não entendo essa “preferência de Deus” e provavelmente nunca a entenderei. Não consigo agradecer a Deus pelo que aconteceu à minha filha (não seria humano), mas sinto que devo agradecê-lo por essas duas consequências que aquele fato inicial provocou, isto, sim. Minha resposta à pergunta “Quem é Jesus?” é: é uma Pessoa que, neste primeiro período do ano mostrou-me o Seu rosto sofredor no olhar de minha filha assim que acordou da anestesia, mas que (este ainda é um pedido vivo) me revelará também o rosto bom.
Adelino, Verona (Itália)

O encontro face a face de dois mendicantes

Enquanto atravessava o distrito financeiro em direção à Estátua da Liberdade, passei por um morador de rua que lia um livro. Pensei: “Ele também gosta de ler, exatamente como eu”. Continuei o caminho meio distraído, imerso nesse pensamento, e decidi voltar. Deitado sobre um cobertor me falou qual livro estava lendo, dizendo que não era o seu preferido. Então, me inclinei e perguntei como se chamava. “Maximus”, respondeu. Ainda não tinha percebido meu colarinho e ficou atônito quando eu disse: “Sou padre John”. Aquele homem vinha de uma família católica muito devota, inclinou a cabeça e me pediu para rezar. Ajoelhei-me na calçada, e algo mudou improvisamente. Ele desatou a chorar convulsivamente e começou a perguntar: “Por quê? Por que me acontece isso?”. Não parecia estar falando comigo ou esperar uma resposta. O que era bom, porque eu me sentia impotente como ele. Cada pensamento moralista que eu tinha me deixava vazio e pobre. Sabia que aquele não era o lugar nem o momento para fazer catequese, para frases religiosas ou respostas simplistas, porque estava diante de uma necessidade muito profunda. Ele me falou de muitas coisas, insistindo sobretudo naquilo que tinha feito de errado na vida. Estava cheio de dor pelos seus pecados. Ele os contava a mim chorando, pedindo misericórdia. No fim, do fundo da sua alma, gritou: “Pai, me perdoa!”. Não se dirigia a mim, mas eu sentia que o Pai tinha me enviado naquele momento. Por isso, estendi as mãos e continuei a obra de Cristo. “Deus, pai de misericórdia...”. Ali, entre seus cobertores, suas tralhas e aquele livro, sua alma tinha se unido a Deus. Sua surpresa ao ouvir a fórmula “...eu lhe absolvo dos seus pecados” podia ser comparada somente à minha, uma hora depois, durante a missa, quando, proclamando o Evangelho, li as palavras de Jesus ao paralítico; “Teus pecados te são perdoados”. Alguns dias depois, padre Carrón encerrou o New York Encounter citando o Evangelho do paralítico, e padre Peter John Cameron perguntou retoricamente: “Tudo isso aconteceu no passado. Agora não pode acontecer mais, ou pode?”. Vieram-me lágrimas aos olhos. Levantei os olhos e disse: “Sim, pode!”. Aconteceu em Wall Street. No fim das contas, não consegui ver a Estátua da Liberdade, mas fiz experiência de uma liberdade maior: um encontro entre dois mendicantes que trouxe liberdade a ambos.
Padre John, Yankton (USA)

“Alguém me quer bem”

Uma carta da edição passada de Passos sobre o tema da difícil procura de trabalho me levou a tomar uma posição. Fui despedido duas vezes e em ambos os casos a demissão, minha e de meus colaboradores, não aconteceu devido a razões ligadas com a crise empresarial, mas por motivos de ordem financeira alheios à própria atividade laboral. Depois de dois longos períodos de desemprego, comecei há um mês a trabalhar com um contrato por tempo determinado. Durante o período turbulento do desemprego e agora, numa situação “instável”, pude aprender com maior certeza a reconhecer-me filho, a encarar qualquer circunstância da vida certo do fato de que ali tem algo que é para mim; e este "algo para mim", nas dificuldades de trabalho, foi um crescer da consciência, cheia de gratidão serena, de ser filho, ou seja, de estar acompanhado, em qualquer momento turbulento, por Alguém que não deseja senão o meu bem. A trama de relações em que me encontrei inserido não é senão o emergir, discreto e concreto, desta ternura da qual, agora mais do que nunca, me sinto objeto.
André, Milão (Itália)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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