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Passos N.159, Junho 2014

SOCIEDADE/ BRASIL

As obras rumo à periferia da existência

por Francisco Borba Ribeiro Neto

Um diálogo sobre o tema das obras sociais reunindo profissionais de diversas áreas. A partir de um protagonismo, contribuições significativas para o País, colaborando com o bem de muitas pessoas

Na tradição da Igreja, costuma-se designar por “obra” a qualquer iniciativa realizada pelos cristãos com a consciência clara do desejo de estar perto de Cristo e servindo ao próximo. Num período recente, essas obras passaram a se identificar com as chamadas organizações não governamentais (ONGs) e frequentemente são conhecidas como “obras sociais”. Elas são um sinal evidente de uma Igreja que está sempre indo em direção aos que se encontram nas periferias da existência das quais fala o Papa Francisco. Contudo, qualquer trabalho, qualquer empreendimento, pode ser considerado como uma obra, quando aquele que a faz tem esta consciência de pertencer a Cristo e de estar a serviço dos demais.
Para falar da relação entre obras, carisma de Dom Giussani e realidade brasileira, Passos reuniu o médico Benedito Scaranci Fernandes e a psicóloga Carolina Taqueti, de Belo Horizonte; a economista Silvia Caironi e a psicóloga Gisela Solymos de São Paulo.

É fácil perceber a importância de uma obra social, mas o que é a Companhia das Obras?
Benedito.
A CdO é uma organização sem fins lucrativos que tem como objetivo promover o espírito de colaboração e apoio mútuo para melhor valorização dos recursos econômicos e humanos no contexto das atividades empresariais, de cooperativismo, bem-estar, culturais e sociais, com especial ênfase nas empresas e obras que produzem serviços para as pessoas ou empresas. Em particular, a Associação tem como objetivo apoiar um modo de operação e gestão de empresas e obras de qualquer natureza, nas quais estejam constantemente presentes as dimensões da liberdade, da solidariedade e do serviço mútuo. Nasceu a partir da experiência de um movimento cristão, aberta à sociedade atual com todas as suas contradições, expectativas e necessidades.

O Papa Francisco nos chama a crescer na unidade com Cristo, para que a Igreja não se torne uma "ONG pietista". Como o caminho seguido por vocês e por suas obras ajuda a crescer na comunhão com Cristo? Como esta comunhão com Cristo se reflete no seu modo de fazer a obra?
Gisela.
A comunhão com Cristo é a comunhão com o seu Corpo, que é a Igreja, através do pertencer a esta realidade, compartilhando a vida com ela. O método de trabalho que usamos no CREN, e que lhe permitiu diferenciar-se de tantas outras obras, foi e é aprendido dentro da realidade do movimento Comunhão e Libertação (CL). Nele, aprendemos com Dom Giussani, a ter uma visão de pessoa e um modo de conhecer e de dar significado à realidade que não encontramos em nenhum outro lugar, e que nos permitiu e permite enfrentar, com nossos colaboradores e com as famílias que atendemos, os enormes desafios que nos são dados.

Dom Giussani sempre considerou que a pessoa tinha dentro de si um desejo de realização pessoal, de felicidade, beleza, justiça, amor, que ele denominava “experiência elementar” – e que estava na base daquele “senso religioso” que faz com que todos nós procuremos a Deus, mesmo não tendo clareza disso. Você está dizendo que olhar para essa experiência humana, para este desejo – que tantos consideram temas filosóficos e etéreos – é que lhes permitiu fazer uma obra social tão reconhecida e premiada?
Gisela.
Exato. Para fazermos uma intervenção, precisamos respeitar a pessoa por aquilo que ela é: desejo infinito de felicidade, de justiça, de beleza, de verdade, de amor, de vida! Essa é a chave de leitura, de compreensão de todo e qualquer movimento de qualquer ser humano em qualquer situação. Isso é afirmar a pessoa.
Carolina. Penso que o mais importante para mudar a realidade é a mudança do meu “Eu”. Não me lembro das palavras exatas, mas quando um entrevistador perguntou a Madre Teresa o que ela poderia fazer para mudar o mundo, ela respondeu mais ou menos assim: “Rezo pela conversão do meu coração e pela do seu”.

Realmente a Doutrina Social da Igreja sempre afirmou que qualquer mudança começa pela pessoa e não pelas estruturas sociais. E Dom Giussani lembrava que “as forças que movem a história são as mesmas que movem o coração do homem”.
Gisela. Se realmente olhamos dessa forma, todo o resto é consequência lógica disso. A partir daí, no CREN, conversamos com os pacientes, procuramos conhecê-los e responder às necessidades que apresentam; estruturamos o serviço e, por isso, criamos novas metodologias. Tornamo-nos inovadores, e influenciamos outras ONGs e até políticas públicas, pois temos algo inédito e útil a comunicar. No entanto, tudo isso não nasce só de “uma ideia”. Sem esta companhia concreta de Cristo através do Movimento CL, nós jamais teríamos sido capazes de construir esta obra da maneira como é hoje. Da mesma forma, colocarmo-nos diante da realidade, de peito aberto, desejando enfrentar o que é dado, faz-nos cada vez mais, como disse Carrón (presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação) no último retiro da Fraternidade, experimentar uma impotência diante do real. Tal impotência, ao invés de nos desanimar e corroer, nos ajuda a crescer cada vez mais na consciência da dependência de Cristo e, portanto, na experiência da oração e da busca por sua companhia concreta dentro da Igreja.
Carolina. Como padre Carrón nos diz, tudo começa com o desejo de seguir o que nos maravilhou naquele primeiro encontro que nos atraiu para Cristo, e fazer o caminho que começa aí, respondendo às circunstâncias que nos são dadas diariamente. Só assim o nosso “Eu” vai se tornando cada vez mais consistente e a nossa vida mais atraente, e isso suscita nos outros que nos encontram o desejo de viver assim. Para mim, este é um drama que acontece diariamente no trabalho, pois acompanhar as famílias exige estar aberta diante da liberdade do outro de aceitar ou não o que eu proponho. Quando penso na experiência que faço, vejo que minha presença faz diferença no relacionamento com as crianças, pois elas me pedem para ficar com elas, dar-lhes carinho, brincar com elas. A surpresa é que elas verbalizam isso agora, pois antes era só reação. Envolver-me com as crianças me faz me empenhar mais com as famílias e com as necessidades delas.

Está certo, mas o nosso caminho não é feito só de momentos iluminados pela beleza do encontro com Cristo. Imagino que o trabalho em obras sociais está cheio de momentos difíceis e de sombras. E aí, como fica o encontro com Cristo?
Silvia. Cada situação, fácil ou difícil, é uma oportunidade para aprofundar minha vocação – e isso me aproxima de Cristo. Por exemplo, quando começamos a Aventura de Construir tivemos que nos adaptar à realidade, entender o que as pessoas precisavam e como poderíamos ajudá-las, a partir do que estávamos encontrando e não do projeto inicial. Pensávamos em fazer um Banco de Microcrédito, mas percebemos que aquilo que as pessoas precisavam mais era ser acompanhadas e capacitadas para gerenciar o próprio negócio. Mas todo o período de indefinições e incertezas no qual procurávamos novos caminhos foi uma provocação para eu me perguntar “para quem e para que eu faço isso?”. Nisso vou compreendendo e descubro que a gratuidade é como uma ferida. Responder à realidade estando aberta e livre para aquilo que é necessário fazer pelo bem do outro, e não segundo o meu projeto, implica numa ferida que não pode ser vivida com alegria e positividade sem a relação com Cristo. Uma relação na qual colocamos perguntas, dúvidas, a própria existência. Quando a gente se coloca diante da realidade de forma verdadeira e aberta, percebemos que Cristo vem ao nosso encontro nas situações.

Mas muita gente vê nas dificuldades apenas dificuldades. O que a faz perceber essas dificuldades como provocações para encontrar Cristo?
Silvia.
Para isso precisamos dos amigos. São os verdadeiros amigos que podem nos ajudar neste nível profundo, misterioso e dramático de nossa experiência e da relação com Cristo. Neste período de dificuldades, percebia que precisava de pessoas que me ajudassem a dar sempre um passo além, a entender qual era o passo que eu devia dar, tanto na solução dos problemas, quanto no meu encontro com Cristo dentro deles. Diante das dificuldades, a gente tem sempre a tendência de ser uma presença reativa, de se deixar determinar pelas coisas, mas eu não quero ser determinada pelas dificuldades, quero ser uma presença original. Percebi que para isso temos que amar mais a verdade do que a afirmação do nosso projeto, mesmo que ele nos pareça justo e correto.

Isto é o contrário do que normalmente pensamos. Achamos que nossa presença é original quando afirmamos o nosso projeto diante da realidade.
Silvia.
Se uma pessoa realmente ama e procura a verdade, tem a disponibilidade, a coragem, a ousadia, de se perguntar o tempo todo o que realmente ajuda a construir, a realizar o bem, isso coloca você numa posição de estar sempre diante de Cristo e dos outros se deixando questionar. A pessoa do outro passa a interessar mais do que as opções políticas e ideológicas. Deixamos de agir reativamente, pois ficamos mais centrados naquilo que realmente importa. A presença original se pergunta constantemente qual é a relação entre as coisas que acontecem e Jesus, e ama a verdade mais que as coisas já sabidas e pré-definidas, ainda que estas pareçam justas.
Gisela. Comunicamos o que vivemos e o que vivemos está diretamente relacionado, é dado, pelo lugar ao qual pertencemos. A nossa originalidade é dada por nosso pertencer a Cristo através da Igreja. Então, sabendo quem somos e para onde vamos, ficamos menos sujeitos a posições reativas ou a influências culturais. Somos seres culturais, mas tornamo-nos capazes de julgar ou criticar essa cultura dentro do conceito paulino de crítica (avaliando tudo e ficando com o que é bom). O critério para julgar, decidir, mover-se, não está no poder dominante, no politicamente correto, mas no nosso pertencimento a esta realidade, que nos ensina como viver no real!

Qual é a contribuição que as obras podem dar à realidade brasileira?
Gisela.
As obras, servindo às necessidades concretas das pessoas, constroem um tecido social consistente e humano, criam realidades novas, trazem soluções novas e eficientes para velhos problemas, são locais de acolhimento e esperança, de novidade. Isso se chama solidariedade. Tornam-se um sinal de conforto e de esperança para todos os que se envolvem com elas. Depois, são também inspiradoras de políticas públicas e, se nossos governantes realmente pudessem entender sua importância, ao invés apenas de imitar (com muitas limitações!) as soluções que as entidades sociais criam, eles trabalhariam para ajudá-las a existir! Isso se chama subsidiariedade.

Solidariedade e subsidiariedade. Bento XVI, na Caritas in veritate, considera ambas fundamentais para o desenvolvimento humano integral. A subsidiariedade é pouco falada entre nós, mas é princípio que defende o protagonismo das pessoas e das associações na superação dos problemas da sociedade. No Brasil, existe hoje um assistencialismo muito grande que frequentemente parece eliminar este protagonismo. Estamos recriando as práticas assistencialistas do populismo nas quais o Estado aparecia como um “pai dos pobres”, que dá tudo para as pessoas, mas não as ajuda a ter um real protagonismo político e social. Mas isso parece ser uma consequência da situação das pessoas e até uma obrigação do Estado! Como as obras podem ajudar as pessoas a superarem seus problemas sem cair no assistencialismo?
Silvia.
Como as obras têm a preocupação de que a pessoa seja um protagonista, partindo de seus próprios desejos e exigências, elas podem dar uma contribuição muito significativa para este momento que o País vive. Este é um desafio que eu vejo todos os dias na relação com os microempresários. A contribuição das obras está em ser uma ajuda concreta para que o “Eu” da pessoa seja vivo, para que ela atue no mundo a partir de seus desejos e exigências, e isto é o contrário do assistencialismo. Em cada atividade tentamos fazer com que este protagonismo possa acontecer. Além disso, nas capacitações que fazemos tentamos sempre fazer com que as pessoas possam ter um relacionamento entre elas, crescer numa amizade solidária. É importante que as pessoas se compreendam protagonistas e unidas numa amizade. O assistencialismo não coloca as pessoas juntas para construir.
Benedito. É por isso que a Companhia das Obras se define como “uma amizade operativa”, um critério ideal. Uma amizade para ser duradoura de fato deve ter raízes que vão muito além de motivos e interesses imediatos, um critério ideal. Só assim pode ser realmente operativa, capaz de me colocar à disposição para colaborar na solução dos problemas do outro que está ao meu lado seja ele uma pessoa socialmente desfavorecida, ou meu colega de trabalho ou um colaborador da minha empresa. Isso é mais verdadeiro considerando que o nosso foco é a sociedade e o mundo do trabalho, em que uma das principais características é a competitividade, na qual o que nos une hoje pode nos desunir amanhã.



Benedito Scaranci Fernandes
Benedito Scaranci Fernandes, pediatra e professor universitário, é o presidente da Companhia das Obras (CdO), uma organização que congrega várias obras, tanto de caráter social quanto empresas e negócios privados.




Silvia Caironi
Silvia Caironi é italiana, com uma larga experiência internacional, trabalhou nos Estados Unidos, junto ao Banco Mundial, e no Peru, no qual foi administradora da Caritas nacional. No Brasil, é responsável pela Aventura de Construir, uma obra que presta serviços de microcrédito em parceria com o Banco do Estado de São Paulo, capacitação e assessoria a microempresários na periferia de São Paulo, que participam da experiência da Associação dos Trabalhadores Sem Terra.




Gisela Solymos
Gisela Solymos é coordenadora do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (CREN), uma organização destinada a combater a desnutrição e a obesidade infantil, que é referência nacional no setor, tendo recebido o Prêmio Nacional de Empreendedor Social em 2011 (pela Folha de São Paulo e Fundação Schwab) e 2012 (pela Ernst Young & Terco).





Carolina Taqueti
Carolina Taqueti é uma jovem psicóloga, formada há apenas 3 anos, que trabalha na Casa Novella, uma ONG dedicada à acolhida de crianças de 0 a 6 anos de idade que foram afastadas judicialmente de casa.




 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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