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Passos N.160, Julho 2014

EXPERIÊNCIA - Brasil

Agora que a Copa acabou

por Francisco Borba Ribeiro Neto

O Mundial de Futebol movimentou o País. No entanto, não dá para negar certo sentimento de desânimo e até uma perplexidade diante não só da Copa, mas de tudo que o está acontecendo no Brasil. Como encarar o futuro com esperança?

Terminada a Copa, os brasileiros voltam à sua vida cotidiana. Todos temos que voltar a enfrentar as dificuldades do dia a dia, os serviços públicos que não funcionam, a economia que desanda, enquanto o mundo inteiro parece se recuperar da crise, os escândalos de corrupção, a violência crescente... Neste contexto, como manter vivo o ânimo para enfrentar as dificuldades, para continuar construindo, para saborear a beleza da vida sem se abater?
Quando nos encontramos para escrever este artigo, a Copa ainda não havia terminado. Não sabíamos se somos hexacampeões eufóricos ou pentacampeões frustrados, mas sabemos que a vida continua depois da Copa. No início do mês de junho, às vésperas do início da Copa do Mundo, o jornal O Estado de São Paulo comentou uma pesquisa do Ibope segundo a qual apenas cerca de 30% dos brasileiros diziam-se “quentes” ou “muito quentes” com a Copa. O que aconteceu com “o País do Futebol”, com “a Pátria de Chuteiras”? No mesmo artigo, o jornal comentava que havia uma clara diferença em relação à Copa em função da intenção de voto: quem pretendia votar no Governo estava mais animado com a Copa, quem pretendia votar na oposição, mais desanimado... Quando o juiz apita o início da partida, a paixão pelo futebol acaba entusiasmando a maioria dos brasileiros – mas dessa vez ninguém esqueceu os problemas do dia a dia por causa do futebol, e as manifestações contra o Governo e contra a Copa continuaram, até mesmo durante os jogos.
Não dá para negar certo sentimento de desânimo e até uma perplexidade diante não só da Copa, mas de tudo que o está acontecendo no País. Escândalos de corrupção e mau uso do dinheiro público, greves, relatos de violência urbana. Diante desta situação, ressoa a frase de Dom Giussani – insistentemente retomada por padre Julián Carrón nos últimos meses: “Como se faz para viver?”. Ou numa versão, talvez menos dramática, mais facilmente compreensível por todos: “Como não se deixar levar pelo desânimo que paralisa, vivido por alguns, ou pela revolta que não constrói, vivida por outros?
Em momentos assim, a tendência é nos perguntarmos “quem tem razão?” ou “quem está certo?” ou ainda “quem é o culpado?”. Contudo, nenhuma dessas perguntas leva a uma resposta realmente construtiva, capaz de nos ajudar a manter viva (ou a recuperar) a paixão pela vida, o desejo de construir. Por isso, Passos reuniu cinco amigos para nos contarem como vivem, como veem este momento do País e como têm mantido seu desejo de construir e sua alegria. Eles são Gabriel Cruz, que mora no Rio de Janeiro, e é designer gráfico, animador 2D e ilustrador; Júlia Gebara, que também mora no Rio de Janeiro e é advogada; Olívio P. Oliveira, que mora em São Paulo, é engenheiro, com doutorado em tecnologia nuclear, e trabalha no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN-CNENSP); Angela Lobo, que mora em Belo Horizonte, é empresária e produtora da Viola Brasil Produções; e Cecília Canalle, que mora em São Paulo e é professora, com doutorado em Filosofia da Educação.

Gabriel. O Brasil sempre teve problemas sociais e políticos. Na Copa de 1970, por exemplo, passávamos pelos anos de chumbo da ditadura. Por que agora, em 2014, vivenciamos esse desânimo? Eu acredito que uma das razões é justamente por estarmos sediando a Copa e vendo como se gastou dinheiro público para não se ter praticamente nenhum retorno. Nem naquilo que o povo brasileiro é mais apaixonado, o Governo leva seu desejo em consideração.
Júlia. Nos ambientes em que convivo e entro em contato com as pessoas, como a família, a universidade, a escola dos meus filhos, conversas sobre insegurança, escândalos de corrupção, manifestações e greves são recorrentes. Existe um clima geral de violência, presente nos noticiários, na forma como as pessoas expressam a própria opinião, nas disputas por direitos e reconhecimento e na forma como a política é exercida em todos os níveis. Fica a sensação de que as pessoas estão divididas.
Olívio. Os partidos políticos, os sindicatos, o Governo perderam credibilidade, e muitos não acreditam que eles se interessam de verdade em resolver os problemas da população. Quando certos grupos organizados fazem manifestações e greves, parecem buscar interesses específicos e não se importar com a situação e as necessidades concretas dos demais. As pessoas, mesmo sem querer, acabam vivendo uma profunda divisão: o usuário do metrô, descontente com a greve, contra o metroviário; o usuário do posto de saúde, descontente com o atendimento recebido, contra o funcionário público; o trabalhador que necessita circular pelas ruas e avenidas, contra o manifestante. Tudo isso resulta em um clima de conflito permanente, destruindo o sentimento de pertencermos todos juntos a uma mesma nação, consolida-se o “cada um por si”.
Angela. Há uma sensação geral de falta, que vai desde a moral e a ética no alto escalão governamental até a segurança no bairro. Fatos que repercutem e refletem não só uma frustração que se manifesta em atitudes do cotidiano, mas também na incerteza de assumir qualquer decisão de peso, como um compromisso matrimonial (O casamento vale a pena? Será que consigo encontrar a pessoa certa? Será que darei conta de manter uma família ou de me manter casado?). Todos os aspectos da vida são atingidos por esse “algo que falta”. E isso leva a incertezas e medos que acabam sendo paralisantes.
Cecília. O desânimo com a Copa mostrou o cansaço e a perda da certeza moral da população em relação a seus governantes. Mas é uma crise que mistura o viés social ao existencial. O clima que vemos hoje, no Brasil, semelhantemente à situação europeia ou americana, me parece apontar para as consequências finais da aposta do homem como horizonte de si mesmo. Se a medida é o próprio homem, os valores sociais se reduzem gradualmente pela perda de sentido. Grande parte dos jovens, cujo papel é trazer o novo, está distante dos grandes ideais, parece que são movidos pela irritação de não poder consumir mais do que pelo bem social. E viver assim pode acentuar agudamente o sufoco gerado pela ineficiência de gestões. Por isso, não se trata de uma crise pontual sobre a pertinência dos gastos da Copa ou dos custos do transporte, mas o reflexo de uma crise muito mais geral. Contudo uma crise pode ser um bem quando descobrimos as oportunidades que esses momentos nos proporcionam.
Angela. Tudo depende de onde se fixa o olhar, é uma questão de foco.

Dom Giussani, citando o jesuíta Ignace de la Potterie, dizia que a fé é um caminho do olhar... Diante de uma situação como a atual, nosso problema é para onde olhamos?
Angela. Quando a vida, muitas vezes, toma o rumo de um automatismo de se “ter” que fazer coisas, numa sociedade envolvida numa verdadeira enxurrada de informações, o hábito de pôr-se em frente a uma televisão ou a uma mídia social, como fonte de “descanso”, nos coloca diante de um mundo que é só desgraça, de uma lógica que é totalmente oposta a nossa experiência cristã. Uma vez dentro desse foco, dessa lógica, a tendência é não ver mais o que constrói a vida.
Gabriel. Eu recordo de um Rio de Janeiro, um ano atrás, na Jornada Mundial da Juventude, completamente eufórico. Mas não por um time ou nação, mas porque encontrava, no Papa Francisco, um homem apaixonado por Cristo, que nos provocava a entender que Cristo construía tudo aquilo que vivíamos. E por um encontro que nos convidava a abraçar a todas as nações, a dizer para o mundo inteiro: “Ide, sem medo, para servir”. Aquela euforia da JMJ dava uma sensação parecida com a que tive nas Copas anteriores, mas era mais, era algo que indicava a resposta precisa. Cristo construía a realidade (construiu naqueles dias belos, constrói hoje em meu dia a dia). Isso salva o desânimo, isso ajuda a viver os próximos dias, ajuda a torcer pela seleção, e nos traz de volta a esperança. Não num jogo, não num título e muito menos ainda numa proposta político-ideológica. Isso é ter para onde olhar...
Cecília. Tenho uma grande amiga que está convivendo com uma doença agressiva e insistente e muitos outros problemas. Olhando, rapidamente, para sua história, logo vem a tentação de dizer que se trata de uma grande injustiça. Mas vendo bem, começa-se a compreender a frase da Adélia Prado: “Quando olho a pedra e vejo pedra mesmo, só estou vendo a aparência. Quando a pedra me põe confusa de estranhamento e beleza, eu a estou vendo em sua realidade que nunca é apenas física. A aparência diz pouco”. Nessa amiga, vejo que quanto mais a doença avança, mais seu sim à “crise” revela a força e a beleza da vida. É incrível como ela O reconhece cada vez mais rápido. Cada vez mais compreendo que o que move o outro, o que me move, é ver alguém para quem a vida vale a pena e que, sem fugir da crise, anda por ela como andando sobre brasas...

Realmente é impressionante e maravilhoso como Deus se vale de momentos de grande dor e de grande sofrimento para criar experiências que se tornam como luzes que iluminam nossa caminhada. E como a luz que irradia dessas pessoas sustentadas pelo amor de Cristo aponta para um caminho de enfrentamento até mesmo dos problemas sociais que reconhecemos como mais verdadeiro do que discursos e projetos ideológicos.
Olívio. Todos temos necessidade de vislumbrar em um fato, em uma experiência concreta, que outra vida é possível. No meio do individualismo profundo em que vivemos, ou mesmo diante do cinismo dele resultante, é reconfortante conhecer pessoas que doam a sua vida pelos outros, motivadas por um grande ideal, como que a gritar para todos que o que traz a felicidade é outra coisa. Nestes tempos, um dos gestos mais significativos de minha caminhada tem sido a caritativa, o trabalho social voluntário que fazemos no Movimento. Tive a graça de conhecer e ver crescer uma grande amizade com a comunidade dos Humildes Servos, que tem um trabalho social na periferia de São Paulo. São pessoas simples, enraizadas em Cristo, e, por esse motivo, livres. Livres a ponto de dedicar a vida pelos mais pobres. Penso no Irmão Gabriel, nas Irmãs Clara, Esperança e Felicidade, bem como na Madre Isabel. Quando chegamos à sua casa aos sábados, eles estão ansiosos nos esperando, e nos dizem que somos muito importantes para eles, nós que tão pouco fazemos naquele mar de pobreza e necessidade. Essa amizade tem sido uma grande oportunidade para aprender a gratuidade, lei da vida tal como a lei da gravidade, mas que infelizmente desaprendemos.

Quando olhamos para as pessoas que nos testemunham o amor de Deus, sua capacidade de iluminar a realidade (como acontece com o papa), de ajudar concretamente as pessoas que mais sofrem (como os Humildes Servos) ou de mudar nossas vidas mesmo nas condições mais difíceis (como acontece com essa amiga da Cecília), isso nos mostra um caminho para enfrentar os problemas e as dificuldades, e viver com alegria e capacidade de construir.
Olívio. Mas essas coisas não podem ser vistas de forma moralista. A maior ajuda que encontro no Movimento Comunhão e Libertação consiste no chamado a identificar qual é o meu desejo mais profundo, aquele desejo que me realiza de verdade e que não se identifica com as respostas baratas que a sociedade oferece. Essa capacidade de olhar para mim mesmo é fruto de um trabalho pessoal e comunitário, pois, na sociedade, não fomos educados a trabalhar sobre o nosso eu. Para mim, é da educação recebida no Movimento que nasce a atenção para olhar todos os sinais que Deus coloca na nossa vida. O bonito é que uma liberdade profunda aparece como fruto desse trabalho. Liberdade que permite me empenhar de verdade no meu trabalho, sem ser dependente do meu chefe ou da engrenagem política da empresa. Eu trabalho por outro motivo: a realização do meu eu!
Angela. Tudo isso rompe com a lógica de se viver automaticamente. Melhor, é uma provocação que nos leva a pensar, a agir e tomar atitudes mais criativas, fora da mentalidade normal. Eu trabalho com meu esposo, que é músico, o Chico Lobo. Recentemente fizemos um show para comemorar simultaneamente o lançamento de um CD – o “3 Brasis”, que recebeu duas indicações a prêmios de música –, e os 80 anos do aniversário do CREA-MG, mas com a renda revertida a 12 instituições sociais, como as Obras Educativas Padre Giussani.

Foi uma experiência de construção e de resposta à realidade diferente daquilo que vemos por aí.
Angela. E sabe o que foi melhor?Ver como todos ficamos contentes, comovidos, tocados por fazer parte de tudo isso. Desde o público e os convidados até os artistas. O modo como se vive pode ser um bem para si e para o mundo. Infelizmente o contrário, também é real. Mas, o que importa é para onde ou em que eu fixo o meu olhar.

Então é assim que vocês “fazem para viver”, o modo pelo qual conseguem manter viva a esperança, a alegria de viver e a vontade de construir – sem se deixar determinar pelos problemas nem entrar num jogo estéril de procurar culpados e fazer protestos até justos, mas que não constroem uma novidade real no mundo.
Júlia. Uma manhã, me flagrei indo para a faculdade totalmente dominada por meus próprios argumentos e preocupada com a melhor forma de expô-los. Porém, neste mesmo dia, rezando no carro com o meu marido e lendo com ele a revista Passos, entendi que o ponto não era ir para a faculdade defender uma posição, um ponto de vista, como todo mundo faz, caindo tantas vezes na reatividade e na violência (mesmo que apenas intelectual). A minha felicidade consiste em fazer tudo, acordar, viver, estudar e estar com a minha família, para estar com Cristo. Com esta consciência, a construção de uma sociedade melhor e mais justa deixa de ser uma pretensão, o resultado de um esforço meu, e passa a ser consequência de uma vida entregue nas mãos de Deus, do testemunho da Beleza que me encontrou, que eu vivo e que transforma a minha vida.

E é assim que vocês continuarão a viver, agora que a Copa passou.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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