Vai para os conteúdos

Passos N.162, Setembro 2014

POLÍTICA/ Testemunho

A política nasce da paixão pelo bem do outro

por Otoney Reis de Alcântara

A questão da política nos interroga, não só pela proximidade das eleições, mas por tudo o que vem acontecendo no Brasil desde o ano passado com as manifestações. Percebemos uma falta de confiança no agente político. No entanto, a política é um bem. Fomos buscar um diálogo sobre isso com Cleuza e Marcos Zerbini

Nos tempos atuais, às vezes temos a impressão de que todo político é corrupto ou só faz política em proveito próprio, enquanto sabemos que a política deveria ser a arte da construção do bem comum. Mas esta impressão é uma das coisas mais danosas para a construção do bem comum, pois existem políticos bons e comprometidos com o bem, e as pessoas deixarão de encontrá-los se não acreditarem que eles existem. Com esta premissa, entrevistamos Marcos Zerbini, deputado estadual em São Paulo, e sua esposa Cleuza Ramos.
Queríamos saber como é a sua experiência de ser político eleito, como ela nasceu, e como ele faz para continuar fiel a seus ideais originais.

Vocês começaram uma grande e bem sucedida obra, pela qual milhares de pessoas pobres conseguiram comprar suas próprias casas e hoje moram em bairros populares com uma boa infraestrutura, escolas, centros comunitários, etc. Um caso de sucesso numa realidade tão difícil como a da luta por moradia nas grandes cidades. O que levou vocês a entregar a vida para construir essa obra?
Marcos: Nós começamos em lugares diferentes. Eu estava na zona leste de São Paulo e a Cleuza na zona oeste. Eu era da Pastoral da Juventude e fui trabalhar com um amigo padre numa grande favela da Vila Prudente. Eu era eletrotécnico, encarregado em uma empresa, pedi a conta e fui com ele. Minha mãe queria me matar porque fui ganhar10% do que ganhava na empresa. Mas era algo que me motivava muito. Era uma época em que se discutia Puebla, Medelín, a opção preferencial da Igreja pelos pobres. É muito difícil que um jovem com 18, 19 anos deidade não sinta o coração vibrar pelo desejo de construir justiça.
Cleuza: Eu sempre trabalhei na Igreja, com pobres, com moradores de rua. E quando damos o nosso sim, a cada dia é um novo sim, e a cada dia Deus mostra o próximo passo. E dentro da obra, como em tudo na vida, precisamos ter a coragem dedar o próximo passo. Em 1986, resolvemos aceitar a provocação da Campanha da Fraternidade, que era sobre terra e moradia.
Marcos: Nesta época, eu participava do Movimento de Defesa do Favelado e fui convidado para ajudar a começar um movimento de moradia na zona oeste. Fui lá e conheci a Cleuza. É impressionante como quando Cristo está presente você se lembrado dia e da hora, como João que com mais de 80 anos lembrava a hora que tinha encontrado Cristo. Eu lembro o dia, a hora, e até a roupa que a Cleuza vestia naquele momento. E foi uma relação de amizade que começou de uma forma muito intensa e muito profunda. Cada um de nós vinha de uma história muito dura, na qual tínhamos encontrado gente que não tinha casa e tinha sofrido muito com essa angústia, e cada um de nós havia feito uma promessa pessoal de dar a vida pelas pessoas que não tinham casa. E aí a fomos nos conhecendo.

E o encontro com Comunhão e Libertação o que significou nesta caminhada?
Marcos: Depois que encontrei o movimento Comunhão e Libertação, entendi que na verdade era o rosto concreto de algumas pessoas que me movia. Não era o “povo”, era o seu Pedro, a dona Maria, o seu Inácio. Eram pessoas concretas que queríamos bem e que não podia dizer “não tenho nada a ver com esse problema”. São pessoas que nos foram dadas e fomos construindo passo a passo toda essa história da Associação. Eu acho que fizemos muita bobagem, muitos erros em função de uma ideologia, de uma crença, mas eu acho que Deus nos salvou porque sempre fomos fiéis ao coração, sempre dissemos sim àquilo que o coração pedia, e eu acho que por causa disso Ele nos salvou, nos trouxe para o bom caminho e nos ajudou a construir uma história muito bonita. E não é bonita pelo que fizemos, mas porque nós conhecemos muita gente que valeu a pena conhecer e fizemos muitas amizades. Eu diria que o nosso grande mérito foi só confiar no coração, quando todos diziam o contrário, quando todos nos chamavam de loucos. E acreditando no coração encontramos a nossa própria vida.

A partir da experiência que fizeram, o que vocês entendem sobre o que é o bem comum e o valor da pessoa? Qual é o valor do trabalho? Estes valores que são importantes para Igreja, como vocês descobriram isso na ação?
Marcos:
Não descobrimos isso com um grande raciocínio, mas nos dando conta com o passar do tempo que aquilo que nos importa é a vida das pessoas. Por exemplo, os movimentos que nascem pela luta por moradia lutam e na hora que tem a terra, na hora que tem a casa, acabou a luta, acabou o movimento. E nós, cada vez que comprávamos uma área que as pessoas começavam a construir a casa, nos dávamos conta de que era preciso a rede de água e de esgoto, a rede de luz, e depois a creche, o asfalto, a escola. Nas primeiras áreas, fazíamos um barracão construído de bloco, assentados com barro, e coberto com telha brasilit, aquela bem fininha, e uma família ia morar lá para guardar o material de quem ia construir porque não tinha nada na área. Muitas vezes, as famílias iam para lá numa condição muito precária e muitas e muitas noites passamos ao lado de uma fogueira com essas pessoas, conversando, tomando café, falando da vida, das dificuldades, da crença de que Deus preparava um futuro melhor para cada um de nós.
Cleuza: Há um mês fui levar um amigo para conhecer as reuniões que fazemos nos bairros para quem não tem casa. Fazemos mais de 50 reuniões na cidade. Perguntei para uma pessoa há quanto tempo ela participava da reunião e ela me disse que eram 14 anos. São 14 anos participando e fazendo poupança para comprar o terreno! Eu fiquei muito desesperada, não dormi a noite toda. Pedi aos coordenadores que chamassem todas as pessoas que estavam há mais de cinco anos participando toda semana da reunião – que não é para ganhar terra, é para com comprar. Vieram 72 pessoas e conversei com cada uma. Perguntei: “O que vocês têm buscado nestes anos?”. E eles responderam “sou pobre, moro na favela, sou empregada e ganho pouco, e guardo R$ 10,00 por mês para comprar o meu terreno. A Associação é a única esperança que eu tenho. Se eu saio daqui acaba a minha esperança”. Foi um dia muito difícil para mim diante daquelas 72 pessoas. Mas é isso que me move, que me sustenta todos os dias e me comove depois de 30 anos.
Marcos: Foi nessa relação de amizade com as pessoas, nesse se preocupar e ter carinho por elas que construímos essa história. Eu não tenho dúvida que foi isso que nos salvou das ideologias, porque muitos amigos começaram conosco fazendo movimento social e grande parte deles se perdeu ou na luta pelo poder ou na ideologia.

Temos frequentemente a impressão que o político profissional ou é dominado pela ideologia, e só pensa no poder e em impor suas convicções, ou é fisiológico, e quer usar a política para se dar bem. E você diz que aquilo que o salva destes dois desvios é seu relacionamento com as pessoas.
Marcos:
Isso mesmo. O grande problema da maioria destes movimentos, das ideologias, é que eles não olham para as pessoas como pessoas. Elas são números, são só povo e não um rosto concreto. Acho que o verdadeiro trabalho social é aquele que olha para a pessoa como pessoa, que abraça a pessoa com todas as suas necessidades, com todas as suas dificuldades.

Como se deu o percurso deste amor às pessoas até a candidatura formal do Marcos?
Cleuza:
Como a cada dois anos tem eleição, dentro da associação, do movimento popular, a cada dois anos se ajuda um candidato a se eleger, pois sabemos que através da política é mais fácil conseguir as coisas. A cada dois anos, elegíamos um vereador, um deputado, mas depois eles iam embora porque não tinham relação forte conosco. Ajudamos muita gente boa, mas iam embora porque só quem está na obra ama e sabe a necessidade. Outras pessoas podiam dar uma ajuda, mas não tinham o coração como o nosso. Para dar um passo à frente precisávamos de um político.
Marcos: Nunca me passou pela cabeça ser candidato e eu tenho vergonha até hoje de pedir voto para mim. Nós elegemos mais ou menos uns dez deputados e vereadores que tinham o compromisso de nos ajudar na Associação. O problema é que entendemos que o político, para representar as pessoas, precisa nascer de uma história com elas. A política, infelizmente, acaba se tornando na maioria das vezes, um espaço de disputa de poder, e o político se deixa levar por aquilo.

Mas a política verdadeira não é essa.
Marcos:
De fato, a política verdadeira é fazer do mandato eletivo um cargo que ajude a construir o bem das pessoas. Depois de ajudar a eleger um monte de gente que depois ia embora, o pessoal decidiu que tínhamos que ter um candidato próprio e que eu tinha que ser o candidato, porque falava melhor e era advogado. Fui eleito duas vezes vereador em São Paulo e agora por duas vezes deputado estadual. Aquilo que me ajuda a não cair na mesma lógica do poder, do se dar bem, é o contato cotidiano com as pessoas que represento. Não é nenhum mérito meu, nenhuma grande capacidade ética. É o rosto concreto das pessoas que eu vejo todo dia que me ajudam a dizer por que sou deputado estadual, por que exerço um cargo e a quem eu represento efetivamente. Eu jamais teria coragem de olhar para essas pessoas novamente se eu fosse pego em qualquer falcatrua. Essas pessoas são muito mais importantes para mim do que qualquer “benefício” que eu possa ter com a política.

Isso não cria uma política muito individualista, muito pontual, que é para um grupo apenas?
Marcos:
Se você tem um grupo de rostos concretos para olhar você é capaz, em função daquele grupo de rostos, de criar políticas que são para todos. Por exemplo, em uma área que já tinha rede de esgotos, alguns proprietários não ligavam a rede de esgoto, porque diziam que iam ter que pagar dobrado a conta de água (em São Paulo o esgoto é cobrado com a conta de água que você paga duas vezes). Por isso fizemos uma Lei Municipal que obriga as pessoas a fazer a ligação de esgoto onde tiver rede na porta de casa. Um levantamento da Sabesp mostrou que por causa desta lei diminui a incidência de doenças transmitidas pelo esgoto jogado diretamente no solo. Por isso, é exatamente o contrário: você só consegue olhar para o todo, você só consegue olhar para o geral se tem o rosto concreto de algumas pessoas. É a partir do particular, da pessoa como pessoa, que você é capaz de criar coisas que servem para todos.

A política é o resultado da ação de pessoas que têm uma necessidade concreta e tentam responder a essa necessidade. A partir dessa tentativa de resposta, que pode parecer muito particular, nascem os critérios e iniciativas que constroem o bem comum.
Cleuza:
Fui contra o Marcos entrar na política. Mas ele se tornou vereador para responder a uma necessidade das pessoas. Por exemplo, não havia escolas nas áreas e ele conseguiu trazer 10 escolas para região, que não atendem só as nossas áreas, mas todo o bairro. Quando o Marcos se recandidatou para deputado, achei que não era necessário. Ele insistiu para eu ir a algumas cidades do interior com ele. O Marcos pegou os R$ 10 milhões de emendas parlamentares e colocou em quatro cidades. Com R$ 100 mil não dá para fazer nada, mas com R$ 3 milhões se ajuda uma cidade pequena. Os amigos dizem que ele é louco, que assim não vai se reeleger, mas nestas quatro cidades foram salvas duas Santas Casas, escolas melhoraram, foram estradas dos pequenos agricultores. Hoje estão construindo 804 apartamentos, dos melhores feitos do Brasil para moradia popular. É gente muito pobre irá morar em casa assim. Então, eu que era contra a política agora sou a favor. Nunca teríamos conseguido o que conseguimos sem o mandato do Marcos, então a política é necessária sim.

Mas há sempre o perigo de se perder na política.
Cleuza:
É como o Marcos disse: para não se desviar, precisamos de uma companhia. Temos a companhia do pessoal da Associação e da Igreja, através de Comunhão e Libertação. A política nasce de um encontro, de uma relação entre as pessoas. Existem muitas pessoas no Brasil que fazem experiências semelhantes à do Marcos e da Cleuza. Nosso desafio, nas eleições, é encontrar estas pessoas. Mas este não é um desafio só do momento das eleições, elas são um passo de uma caminhada de toda a vida.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página