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Passos N.162, Setembro 2014

FOTOGRAFIA/ Henri Cartier-Bresson

Eu, discípulo (herético) de HCB

por Luca Fiore

“Ele tinha consciência das questões que a história coloca”. Isso engrandeceu o fundador da Magnum. Há dez anos da morte dele, FRANK HORVAT fala do seu mestre. Que sentia o dever de ir por toda parte, olhava as fotos de ponta-cabeça e produzia tiradas “miraculosas”, cheias de nexo. Assim ensinou-lhe que criar é uma necessidade vital. ”Para nos ajudar a viver o mundo que vivemos”

“Para mim, Henri Cartier- -Bresson é o Papa, embora eu sempre tenha sido um herege da sua religião, e ele sabia disso”. O homem que salta sobre a poça d'água, o velho Matisse entre as colunas, o domingo às margens da Marna: são imagens em preto e branco que marcam o nosso imaginário e a ideia que temos de fotografia.
Frank Horvat olha para trás, para os muitos anos de carreira, e a fim de explicar a si próprio não pode deixar de se comparar com aquele que considera o maior de todos. Morto dia 3 de agosto de dez anos atrás, Cartier-Bresson, o grande fotógrafo francês fundador da mítica agência Magnum, ainda frequenta os seus pensamentos: “Quando tento me comparar a ele, sinto-me muito pequeno, mas há momentos em que consigo fazer aquele tipo de foto que ele fazia. E muito me orgulho delas”.
Hoje Horvat tem 86 anos e ainda muita vontade de fotografar. No bolso sempre leva uma máquina digital de uso comum, daquelas que qualquer um pode ter. Trabalhou para Life, Elle, Glamour, Vogue, Harper´s Bazaar e foi membro da agência Magnum entre 1958 e 1961. Foi um dos pioneiros do digital, em 1998 criou o seu site pessoal e em 2010 um aplicativo para iPad que contém a sua obra.
Cartier-Bresson o conheceu aos 21 anos, depois da Academia de Brera, em Milão, e das primeiras colaborações para as revistas italianas. Comprava Life todas as semanas e os fotógrafos da Magnum eram, para ele, os deuses do Olimpo. Não lhe faltava ambição: “Eu pensava: bastará que vejam as minhas fotos e me chamarão. Consegui uma entrevista com Cartier-Bresson, mas não aconteceu como eu esperava”.

Como foi?
Ele pegou as minhas fotos e as virou de ponta-cabeça. Não queria ser “perturbado” pelo sujeito, lhe interessava somente a composição. Ele me mostrou todos os erros e disse: “Vá ao Louvre e procure aprender com Poussin”. E depois me aconselhou a abandonar a Rollei e comprar uma Leica: “Os olhos não estão na barriga”.

O que o tornava um grande fotógrafo?
Ele tinha consciência dos problemas do mundo, das questões que a história coloca. Refletiu e escreveu. Tinha as suas ideias e as suas manias; mas não é que apenas foi para todos os lugares; ele sentia o dever de andar por toda parte.

Você aprendeu a lição dele?
Levei quarenta anos, provavelmente. Mas por toda a vida fui um outsider, porque sempre mantive os pés em duas canoas: a reportagem e as fotos de moda. Ele sempre me considerou um herege, mas um herege com quem penso que manteve uma certa amizade.

Por que um herege?
A certa altura, passei a tirar fotos de moda ambientadas na rua, em lugares abertos. Ele dizia: “É uma bagunça”. Para ele, ou se fazia reportagem ou se fotografava as modelos em estúdio. Não se podia misturar os gêneros. Depois ficou bravo quando comecei a fotografar a cores; dizia: “Se quero fotografar a cores, quero uma paleta minha, não aquela que a Kodak me obriga a usar”. Até aí ele me perdoou. Mas quando comecei a usar Photoshop e a fazer fotomontagens ele ficou bravo de verdade.

O que ele dizia?
Dizia que não era fotografia. E tinha absolutamente razão. Mas eu respondia: “Deixe-me experimentar!”. Fiz coisas muito diferentes, mas fui o primeiro a querer assumir o modo que ele possuía e ficar orgulhoso quando consigo pô-lo em prática.

Que modo é esse?
Ter ideias na cabeça e “dispor” delas no momento certo. Por exemplo: eu o vejo sentado naquela posição e me vem à mente O pensador de Rodin. Esse é um arquétipo, uma imagem universal. Nós temos na cabeça todo um arsenal de referências que temos a possibilidade de usar e cruzar no momento em que estamos para clicar uma foto. Que isso aconteça numa situação imprevista, numa fração de segundo, acho uma coisa extraordinária.

Alguns o criticavam por ele ter ficado separado, ser irônico, por buscar a bela imagem dentro de contextos dramáticos...
Essa é a grandeza dele! O que é extraordinário numa foto de Cartier- -Bresson é que não apenas é bem composta com triângulos, círculos, retângulos que respeitam a proporção áurea, mas ao mesmo tempo narra de fato uma história, um pedaço de humanidade. Não tem apenas a forma e nem só história. Tem dentro muitas associações de ideias: quanto mais nexos existem, mais o clique é miraculoso. Às vezes me surpreendo pensando, de noite, e digo a mim mesmo: “Não existe ninguém maior do que ele”.

Por que ele prezava tanto a proporção áurea?
É um tema universal, um arquétipo, justamente. É como o bom Deus, se quisermos crer. Uma religião no sentido etimológico do termo: que une todos nós. Se se procura realizá-la na fotografia ou na pintura é para que a obra possa estar ligada ao que é o universo, o mundo mental, consciente ou inconsciente, dos nossos semelhantes.

Sempre se diz que ele é o fotógrafo do “momento decisivo”. O que significava para ele essa expressão?
Ele mesmo a disse de um modo perfeito: ser capaz de pôr o olho, o coração e a mente na mesma linha de tiro. É o que eu procurava explicar antes, quando eu falava dos vários planos que convivem.

É difícil criticar Cartier-Bresson, mas muitos o fazem com os seus seguidores.
Têm razão de fazê-lo.

Por quê?
Porque não são verdadeiros seguidores. Ele próprio, quando ensinava, não explicava o alinhamento do olho, da mente e do coração. O que fazia quando fotografava ele não ensinava, não podia ensiná-lo.

Era um mau professor?
A julgar pela qualidade dos discípulos, seria o caso de dizer que sim... Podemos ensinar a técnica facilmente, mas como usar o coração, não. É um pouco como o zen: ensina-se a golpes de bastão na cabeça. E eu tomei muitos golpes dele. Portanto, para mim foi um ótimo mestre.

Quando foi a última vez que o viu?
Uma das últimas vezes foi no final dos anos 90; conosco estava Ferdinando Scianna (um dos maiores fotógrafos italianos). Estávamos num café subterrâneo conversando. A certa altura, eu lhe perguntei: “Você não gostaria de fotografar num lugar assim, com essa luz neon, esses móveis feios e essas cores?”. Ele respondeu: “Jamais”, nunca. Respondi que nem eu, mas esse mundo existe, e é o mundo no qual vivemos. Seria preciso procurar interpretá-lo com a fotografia. Scianna disse: “Talvez esse mundo tenha ficado complexo demais para a fotografia”.

Por que é um desafio que vale a pena enfrentar?
Não é que valha a pena: é vital. Neste mundo precisamos viver, precisamos interpretá-lo. Não é um jogo. A única razão da arte é ajudar, e nos ajudar a viver no mundo em que vivemos. É função fisiológica da arte.

O senhor sente que são mais suas as imagens de sucesso de quarenta anos atrás ou as de hoje?
Se não sentisse como minhas as que faço hoje, não poderia mais viver. Sou obrigado a senti-las mais minhas, não posso dar uma resposta objetiva. O que posso dizer é que me sinto mais pioneiro agora do que quando trabalhava para a Magnum. Então aquilo que eu fazia, o estilo que usava, se inseria numa escola, não era coisa minha. Hoje sou só eu e a minha pequena máquina digital. Faço aquilo que todos podem fazer. Que diferença existe entre as minhas fotos e as de uma pessoa qualquer? Nenhuma, a não ser o fato de que sou eu que as faço.

A fotografia é uma questão de vida ou de morte?
Criar é que é.

Em que sentido?
Entender e fazer entender é vital. Nós existimos só para isso. Uma jornada sem ter criado alguma coisa seria uma jornada desperdiçada.

Existimos para criar?
Somos feitos para combinar as coisas, para incrementar a informação que existe no mundo. O senhor certamente é religioso, do contrário não escreveria para o seu jornal. Eu, ao invés, não sou nada religioso, mas é claro que aquilo que faço é um substituto da religião.

O senhor nasceu numa família judia. Já se questionou alguma vez por que razão existe uma porcentagem tão alta dos grandes mestres da fotografia sendo de origem judaica?
Na alta Idade Média, no tempo de Carlos Magno, os cristãos eram quase todos analfabetos, salvo os monges. Entre os judeus, ao invés, até as mulheres sabiam ler e escrever. É uma velha história. No fundo, a fotografia também é uma forma de escritura. Para mim, é uma herança no nível da educação cultural, ainda que eu jamais tenha assistido a uma função na sinagoga, nem me interessa fazê-lo no futuro. Isso não quer dizer que não podem existir goim (não judeus) que são ótimos fotógrafos. Talvez até melhores do que os maiores dos grandes fotógrafos de matriz judaica, porque têm alguma coisa que falta a estes.

O quê?
Os judeus têm uma inclinação para a abstração e perdem em concretude, algo que é muito importante para um artista. Dizendo isso estou generalizando, porque nos casos individuais pode acontecer o contrário. Porém, de vez em quando digo a mim mesmo que um Shakespeare judeu jamais existiu, nem um Rembrandt judeu, nem um Bach judeu. Por quê?

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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