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Passos N.169, Maio 2015

APÓS AUDIÊNCIA

A janela do carisma

Sábado, 7 de março, o Papa Francisco recebeu em audiência cerca de 80 mil representantes do Movimento Comunhão e Libertação, vindos de 47 países. Como ajuda a entender a importância daquele momento, publicamos dois trechos escritos pelo fundador Dom Luigi Giussani. Falam da natureza do carisma e a sua função

O cardeal Ratzinger observou que “a fé é uma obediência de coração à forma de ensinamento à qual fomos consignados”. Na Sua imaginação infinita, na Sua liberdade e na Sua mobilidade infinitas, o Espírito de Deus pode dar origem a mil carismas, a mil maneiras de se comunicar aos homens em Cristo. O carisma representa justamente a modalidade de tempo, de espaço, de caráter, de temperamento, a modalidade psicológica, afetiva, intelectual com que o Senhor se torna acontecimento para mim e, do mesmo modo, para outros. Esse modo, a partir de mim, comunica-se a outros, de forma que existe entre mim e estes uma afinidade que não existe com todas as outras pessoas, um vínculo de fraternidade mais forte, mais específico. É dessa forma que Cristo continua presente entre nós todos os dias, até o fim do mundo, dentro das circunstâncias históricas que o mistério do Pai estabelece e por meio das quais nos faz reconhecer e amar a Sua presença.

O fenômeno dos Movimentos na Igreja, de todos os Movimentos na Igreja, é – como observava João Paulo II – a autoconsciência que se reinstaura no âmbito da própria Igreja. De fato, tal como a humanidade tem vida dentro de cada casa que o amor anima e adorna, que o sopro desse amor aquece todos os dias, da mesma forma os Movimentos fazem da Igreja uma casa viva, vivente, calorosa, cheia de luz e de palavra, de afetividade, de explicação, de resposta. Os Movimentos são as unidades de companhia criadas pelos carismas, por esses dons oferecidos pelo Espírito a quem Ele escolhe, não pelo valor das pessoas, mas para que se cumpra o Seu desígnio, o grande desígnio que o Pai tem para o mundo, o desígnio que tem um nome histórico: Jesus Cristo.
O Espírito do Senhor escolhe temperamentos dotados de características mais vivas de comprometimento, de comoção e de comunicação da própria experiência aos outros. O carisma, portanto, torna a Igreja viva e existe em função da totalidade da vida eclesial. Qualquer carisma, graças a sua identidade específica, está aberto por natureza ao reconhecimento de todos os outros carismas. Cada uma das formas históricas que o Espírito utiliza para que os homens entrem em relação com o Acontecimento de Cristo é sempre um “aspecto particular”, uma forma particular de tempo e espaço, de temperamento, de caráter. Mas é um aspecto particular que habilita à totalidade. O carisma existe em vista da criação de um povo completo, ou seja, totalizante e católico. Como veremos mais adiante, totalizante e católico são as fronteiras últimas da ideia de povo.
Para utilizar uma imagem, poderíamos dizer que o carisma é como uma janela através da qual se vê todo o panorama. A confirmação de que um carisma é verdadeiro é que abre a tudo, não fecha. Por isso, estaria errado quem dissesse: “Estamos aqui para construir o nosso Movimento, não a Igreja”. Em vez disso, é preciso dizer: “Estamos aqui para construir a Igreja segundo o impulso que o Espírito nos deu e ao qual chamamos Movimento, segundo a obediência, ou seja, ouvindo e aderindo à obra do Espírito de Cristo, que a autoridade da Igreja assume como própria”.

A questão do carisma é decisiva, pois é o fator que facilita existencialmente que pertençamos a Cristo, ou seja, é a evidência do Acontecimento presente hoje, no preciso momento em que nos move. Nesse sentido, o carisma introduz à totalidade do dogma. Se o carisma é a forma como o Espírito de Cristo nos faz perceber sua Presença excepcional e nos dá a capacidade de aderir a essa Presença com simplicidade e amor, é vivendo o carisma que se esclarece o conteúdo objetivo do dogma. Não aprendemos os dogmas, e estes, sobretudo, não incidem existencialmente na vida, se simplesmente os estudamos de modo abstrato. Os dogmas aprendem-se e vivem-se no encontro e no seguimento da vida da Igreja, em conformidade com a ênfase educativamente persuasiva e existencialmente fascinante do carisma. O carisma, portanto, é a forma como o Espírito facilita e torna mais consciente e frutuosa a percepção do dogma, a percepção do conteúdo total do Acontecimento.
(de L. Giussani, S. Alberto, J. Prades, Generare tracce nella storia del mondo, Ed. Rizzoli, Milão, pp. 108-110)

No dia 11 de fevereiro de 1982, a Fraternidade de CL obteve o reconhecimento do Pontifício Conselho para os Leigos, dicastério presidido pelo Cardeal Opilio Rossi. A seguir, o que aconteceu naquela ocasião, numa passagem extraída da biografia de Dom Giussani.

O ato da Santa Sé “erige e confirma como pessoa jurídica para a Igreja universal a associação leiga denominada ‘Fraternidade de Comunhão e Libertação’, declarando-a, para todos os efeitos, Associação de Direito Pontifício e estabelecendo que todos a reconheçam como tal”. O texto do decreto é acompanhado de uma carta, endereçada a Dom Giussani pelo Cardeal Rossi, na qual o purpurado escreve, entre outras coisas, que “a aprovação comporta, evidentemente, empenho de cada vez maior fidelidade, responsabilidade e dedicação eclesial”. O Cardeal sublinha que “de especial interesse e urgência pastoral aparece a contribuição que a Fraternidade pode aportar para a Igreja, cooperando para o crescimento de uma sensibilidade e experiência cristã, comunitária e evangelização, nos ambientes – geralmente secularizados e “distantes” - de criação e difusão da cultura e de edificação da sociedade. Uma presença missionária nesses ambientes revela-se mais do que nunca necessária para dar testemunho de Cristo, como Igreja, lá onde estão em jogo princípios fundamentais da vida do homem e da convivência social” .

A carta prossegue elencando algumas “recomendações”: a coerente afirmação do próprio carisma deve evitar “tentações de autossuficiência”; o reconhecimento da natureza eclesial da Fraternidade implica “uma sua plena disponibilidade e comunhão com os Bispos, cuja cabeça é o Supremo Pastor da Igreja”; os sacerdotes do Movimento têm como missão fundamental estar “a serviço da Unidade”; o número dos membros não deve impedir que “a fé mantenha toda a sua força de irradiação sobre a vida, e que a busca do cumprimento da vontade de Deus e o anúncio do seu reino tornem-se o objetivo principal da Associação”; a Fraternidade deve inserir “a sua ação no quadro das orientações pastorais das Conferências episcopais” dos países nos quais esteja inserida e colaborar com as associações e movimentos eclesiais; enfim, devido à sua vocação católica e missionária, deve “adaptar com flexibilidade a sua própria identidade e contribuição às diferentes expectativas e desafios vividos nos múltiplos contextos”.

Giussani recordará que disse ao Cardeal Rossi, que lia a sua carta, que gostaria de publicá-la, e ouviu do purpurado: “Não, não a publique! Porque os maldosos poderiam interpretar mal as recomendações que lhe foram escritas”. Ao contrário, para Giussani a carta “é justamente um exemplo da maternidade com que a Igreja consegue acompanhar os seus filhos”, quando atuam pastores como o Cardeal. A essa altura, o Cardeal concorda com a publicação.
(de Alberto Savorana, Vita di don Giussani, Ed. Rizzoli, Milão, pp. 602-603)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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