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Passos N.171, Julho 2015

CIÊNCIA - Ulisses Almeida

Explorers: o que a pesquisa espacial pode revelar sobre o ser humano?

por Francisco Borba

“Olhar a realidade a partir da periferia, e não do centro”. Uma provocação de Papa Francisco, que foi levada a sério por um grupo de cientistas que realizaram, em 2014, a mostra Explores. Um diálogo entre fé e razão que aprofundamentos aqui com o físico ULISSES BARRES DE ALMEIDA

A relação entre a fé e a ciência é um dos temas mais importantes no contexto universitário. Visões equivocadas da fé e da ciência podem levar a um distanciamento entre estas duas formas de conhecimento da realidade, com graves consequências tanto para os profissionais da ciência quanto para a sociedade como um todo. Consciente deste fato, o recém-criado Vicariato Episcopal para a Educação e a Universidade da Arquidiocese de São Paulo pretende realizar encontros periódicos onde cientistas discutem esta relação a partir de sua experiência pessoal e seu conhecimento especializado.
O primeiro destes encontros foi a Conferência Explorers: o que a pesquisa espacial pode revelar sobre o ser humano?, proferida por Ulisses Barres de Almeida, físico com PhD em Astrofísica pela Durhan University (Grã-Brentanha), membro do Royal Astronomical Society de Londres e da Sociedade Brasileira de Astronomia, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas do MCT. A palestra retomava a Mostra Explorers, apresentada no Meeting de Rimini, em 2014. Numa fria noite de quarta-feira, no dia 27 de maio, mais de 400 pessoas lotaram o auditório da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM), e se maravilharam com a confluência entre pesquisa científica, fé e experiência humana.
Ulisses partiu, em sua reflexão, de uma afirmação do Papa Francisco: “Estou convencido de uma coisa: as grandes mudanças na história ocorreram quando a realidade não era vista a partir do centro, mas sim da periferia. Trata-se de uma questão hermenêutica: entende-se a realidade apenas se ela for olhada da periferia, e não quando nosso olhar estiver equidistante de tudo” (Encontro com os Superiores das Ordens Religiosas, 29 de novembro de 2013).
A Terra é precisamente aquele ponto do cosmos no qual o universo, com o ser humano, toma consciência de si. A pesquisa especial não é só um estudo do cosmos. Ulisses sublinha que “o homem buscava não tanto a realidade desconhecida, mas algo de si. A exploração não é só uma exploração geográfica que vai para fora, mas carrega dentro de si um movimento que é mais fundamental, que é a verdadeira exploração: a exploração do homem de si”, afirmou.
Padre Vandro Pisaneschi, coordenador do Vicariato Episcopal para a Educação e a Universidade, destacou que a “verdadeira ciência abre o ser humano à beleza das coisas. E o ser humano quando encontra a beleza das coisas encontra muitas respostas para si mesmo, e percebe que a vida encontra sentido e vale a pena, e isso pode ajudar no caminho da fé”. Ao avaliar o encontro, o Coordenador de Pastoral destacou que a atividade atingiu o resultado esperado, e mostrou que um cientista, quando é honesto em sua pesquisa, irá se deparar com as questões fundamentais do ser humano e, também, com as questões de fé.
A seguir, uma entrevista com o astrofísico Ulisses Barres de Almeida, na qual aprofunda o tema da experiência humana no centro do diálogo entre fé e razão.

Como a pesquisa cientifica, e espacial em particular, pode ajudar os cientistas e a sociedade a serem mais felizes e mais sábios hoje em dia?
Quando apresentei “Explorers” num encontro na Argentina, em Córdoba, uma pessoa comentou comigo que apesar de entender todo o percurso e sua relevância na vida daqueles exploradores que cumpriram esta longa jornada até os confins do Sistema Solar, sentia que para ele toda a exploração espacial era essencialmente irrelevante. Não acrescentava nada de essencial à sua vida, nada que ele não pudesse ou não tivesse já encontrado na dinâmica normal da sua própria existência de trabalhador. E depois completou: “Porém, a partir de agora, a exploração espacial se tornou essencial para mim, porque por causa dela eu pude conhecer você, e este encontro sim, introduziu algo novo na minha vida”.
Eu não penso que exista alguma atividade humana, por mais nobre que seja, que possa por si só tornar o homem feliz. Ciência, arte, filosofia, todas estas são atividades humanas por natureza, e o homem não viverá sem elas, porque são parte do tecido do qual somos feitos. Mas o homem não encontrará felicidade nelas em si. Mas em cada atividade humana – especialmente nas mais banais, corriqueiras – existe a possibilidade para encontrar verdadeira felicidade.
O homem possui uma enorme capacidade de compreensão e de domínio do cosmos, que o permite possuir e usar tantas coisas, até mesmo o espaço e as leis fundamentais da natureza. Mas carrega em si o paradoxo de ser definido não tanto pelo seu prodígio, quanto pela sua dependência e incompletude. O pano de fundo de cada ação humana parece ser dominado por uma necessidade, uma falta ou nostalgia, que habita o homem num nível original e muito elementar.
Assim, o essencial se joga no confronto entre o “eu” e este “outro” que se nos apresenta naquilo que fazemos. É verdade que o cosmos ocupa uma posição especial como fronteira última nesta busca. A sua beleza e grandiosidade serão para sempre, como dizia Pirandello, inesgotável fonte de esperança e de vida. Mas que parece ser um anticlímax de todo o percurso, apesar de ser na verdade uma grande descoberta. O cineasta russo Andrey Tarkovsky dizia que o homem se coloca a árdua tarefa de explorar o cosmos e descobrir novos mundos, mas que estes lhe são inúteis, e nada pode lhe dar de essencial, porque o homem precisa do homem.

Pensando nos cristãos em particular, quais são os maiores perigos e as maiores contribuições para um diálogo fecundo entre fé e ciência?
Fé e ciência são duas faculdades humanas. No que diz respeito aos seus métodos ou objetos de estudo, cada uma obedece a uma trajetória específica e tem uma existência particular. A ciência moderna, baseada no método científico, é mais jovem do que a fé, e tem como horizonte a compreensão dos fenômenos naturais tais como estes se apresentam à experimentação e à linguagem físico- matemática. A ciência investiga os mecanismos e relações entre os elementos da natureza. Seus limites são bastante bem definidos. A fé por sua vez pode ser entendida de maneira um pouco mais ampla do que a da fé “estritamente religiosa”: o “crer” da fé é algo do qual a razão se vale para lançar-se além dos limites que foi capaz de atingir por meio do raciocínio lógico. O conhecimento mediado pela fé não é privo de razão, mas se lança, com risco, para além das fronteiras do imediatamente demonstrável. Numa perspectiva mais operacional, a fé faz as vezes de “hipótese de trabalho”. Basta pensar quando um cientista, por exemplo, acumula razões para acreditar que algum aspecto da natureza funciona de um certo modo, mas ainda não consegue demonstrá-lo, e para isso constrói um novo experimento. Quando consideramos a fé no seu aspecto religioso, o argumento se adensa, mas o que foi dito acima permanece válido. Entender a fé como algo que tem a ver com a razão, e entender que a ciência não é a totalidade da razão, que existem verdades racionais no cosmos (e principalmente no nível do fenômeno humano) que são inacessíveis ao método científico, é um primeiro passo fundamental para falar em diálogo entre fé e ciência.
Os homens de fé que desejam dialogar com o mundo da ciência devem descobrir a razoabilidade da sua própria fé. Neste sentido, Dom Giussani e Bento XVI são personagens fundamentais do mundo católico da nossa era. Outro ponto de contato entre fé e ciência, é o sujeito, a pessoa humana na sua totalidade, com sua razão e afeição. Tanto a inspiração da fé como o ímpeto da pesquisa científica têm origem comum no terreno fértil do coração do homem, na maravilha que este sente perante o mundo ao seu redor. Os movimentos tanto da ciência quanto da fé nascem desta atração que a realidade exerce sobre nós, nos mais diversos níveis. A maravilha é, portanto como a faísca que se lança entre dois polos submetidos a uma diferença de potencial: é a mãe, tanto da fé, como da razão, porque todo o conhecimento parte de uma afeição, como a tradição filosófica soube sempre mostrar, desde a Antiguidade.
Para um diálogo entre a fé e a ciência fecundo e verdadeiro, é preciso partir do homem, da experiência humana (preferencialmente da experiência pessoal), que é o ponto de contato natural entre ambas, e entender qual a relação profunda que elas têm com o sujeito e como dialogam entre si no nível do meu “eu”. Isto não depende de nenhuma elevada teoria filosófica, mas exige do sujeito grande liberdade de ideologias exteriores e lealdade com a própria experiência. O homem de fé tem o dever de fazer este trabalho, justamente porque a tradição da Igreja nos educa de maneira especial a esta “observação” de nós mesmos.

Que fatores foram importantes para uma certa síntese pessoal da sua visão de mundo como homem de fé que trabalha em ciência?
A unidade real entre fé e ciência depende de terem algo de relevante para dizer uma à outra, algo que seja um bem e uma ajuda de uma à outra. Sinto pessoalmente a urgência de que a minha fé seja conveniente à ciência que eu faço, e que a ciência possa me ajudar a aprofundar o conhecimento sobre a verdade da minha fé.
Com relação à utilidade da fé à ciência, considero muito relevante olhar para a história de Jerôme Lejeune, o médico responsável pela descoberta da causa genética da síndrome de Down. Por causa de sua fé católica, Lejeune permaneceu firme na sua responsabilidade como médico de defender a vida, num tempo em que a opinião dominante dentro da comunidade científica e de grandes parcelas da sociedade era de que, diante das dificuldades em se encontrar uma cura para a Trissomia 21, seria menos dispendioso e aliviaria o sofrimento do paciente e das famílias, usar os testes clínicos para eliminar o feto portador da Síndrome antes do seu nascimento. A posição de Lejeune contra a eugenia revelou-se com o tempo a mais humana, respeitando e revelando a verdadeira dignidade do ser humano, mas foi também a causa da pesquisa científica na área pôde continuar, e dela se atingiram grandes avanços na compreensão das síndromes hereditárias.
Com relação à utilidade da ciência à fé, uma das primeiras intuições me veio num encontro que tive com John Barrow em 2009, na Inglaterra, enquanto estava ainda fazendo o meu doutorado. Ele nos ensinava Cosmologia, e naquele dia falava sobre simulações de computador que tentam reproduzir a evolução do Universo. Como saber se um Universo simulado no computador corresponde à realidade, de modo que se possa julgar se a física usada para simulá-lo estava correta ou não? Barrow dizia que era importante considerar se o Universo simulado poderia ou não abrigar vida. E quais são as condições para a vida emergir no Universo? Dois fatores fundamentais são que o Universo é muito velho (cerca de 14,7 bilhões de anos) e muito grande (abriga bilhões de Galáxias, cada uma com milhares de anos luz de extensão). Se o Universo fosse muito menor que isso, seria tão denso e quente que não poderia existir vida em lugar algum. Se ele fosse muito mais jovem, então não teria havido tempo para os elementos químicos que compõe os serem vivos terem sido formados no interior de três gerações de estrelas. Assim, a dimensão e a idade do Universo, dois fatores que aparentemente levam a nossa existência à quase insignificância, são, muito pelo contrário, duas condições para que a vida tenha surgido, não em muitos lugares, mas ao menos em um único ponto do espaço e do tempo, como aqui na Terra, hoje.

Conhecer isso me fez perceber que, de um modo muito concreto, todo o cosmos está em relação comigo e que eu sou parcela inseparável de todo o cosmos. A partir deste episódio, o meu olhar sobre a cosmologia moderna, que foi se aprofundando com o tempo nos estudos, serviu para elevar em mim uma força de contemplação, e a maravilha do meu senso religioso. É claro que um tal resultado científico não justifica nem demonstra a existência de Deus ou dogma religioso algum, mas mostra que, para o homem religioso, o conhecimento do mundo trazido pela ciência não cancela a fé, na verdade eleva e conduz o seu espírito para águas ainda mais profundas. Do mesmo modo, diante de um tal pensamento que a Comsologia Física revela, o homem sem fé é convidado a contemplar com maravilha e humildade aquilo que excede o seu saber e que o convida a lhe chamar de “Mistério”.

Como o carisma de Dom Giussani o ajudou na construção da Mostra do Meeting de Rimini e a palestra Explorers?
Primeiro de tudo, é importante ressaltar que a Mostra nasceu das atividades da Associação Euresis, que nada mais é que um grupo de amigos cientistas preocupados em entender (para si próprios, e depois para comunicar aos outros) a dinâmica do sujeito dentro de pesquisa científica. Este grupo nasceu há quase duas décadas em Milão, dentro do movimento de Comunhão e Libertação, e é, sem dúvida, filho, e profundamente devedor, do carisma de Dom Giussani.
Nos tempos atuais a Igreja perdeu muito da sua potência cultural, sua capacidade de geração de cultura e de diálogo frutífero com outras culturas. Poder-se-ia argumentar que o mundo decidiu por afastar-se da Igreja, mas eu penso que uma tal resposta seria incompleta. Acredito que a verdade sempre será a força vencedora em qualquer debate cultural, e se o cristianismo hoje pouco consegue gerar de cultura nova é porque talvez tenham sido os próprios cristãos a se esquecer do valor da tradição e hereditariedade que carregam. Mas a sociedade precisa da contribuição da Igreja, ou melhor, espera da Igreja uma contribuição que só a ela pode dar – basta ver com que sede e positividade o Papa Francisco foi e tem sido acolhido desde o início do seu pontificado, tendo conseguido comunicar a si mesmo e a Igreja às pessoas.
A preocupação com a razoabilidade da fé, central no carisma que foi dado a Dom Giussani, carrega um potencial incomparável de geração de uma cultura cristã no mundo de hoje e, num certo sentido, sinto que recai sobre nós, que seguimos o seu carisma, a responsabilidade de inteligência e de trabalho para fazer dele um dom para todo o mundo e para toda a Igreja. Quando o Papa Francisco, na audiência que concedeu ao Movimento em maio deste ano, chamou a atenção para a necessidade de uma descentralização, penso que, ao menos em parte, o seu pedido tem a ver com isso. A educação cultural da fé que recebemos de Dom Giussani é um dom pelo qual toda a Igreja espera, e quando olho para o caminho que nos conduziu a preparar a Mostra, foi justamente esta a preocupação que carregava dentro de mim: comunicar às pessoas um modo de olhar para a ciência que obtive graças ao carisma de Dom Giussani, do qual sou profundamente grato.
Dom Giussani, em todo o seu itinerário, colocou o homem e sua experiência no centro – esta é a fórmula, o ingrediente essencial do seu método educativo. É julgando atentamente a própria experiência, nas diversas circunstâncias e ações pelas quais passa, que o homem pode conhecer a si mesmo e, a partir daí, reconhecer a realidade ao seu redor nos seus aspectos mais profundos. A proposta de “Explorers” foi estritamente obediente a este método.

Como foi seu “diálogo” interior entre o pensamento de Francisco e a ciência espacial?
O pensamento de Francisco foi igualmente fundamental. A mostra nasceu essencialmente de uma provocação que as palavras do Papa geraram em nós, principalmente quando, desde o início de seu pontificado, insistia continuamente que a Igreja precisava sair de si mesma e ir às periferias. Com uma audácia sem medidas, ele afirmava que a periferia era o lugar privilegiado para se conhecer a realidade (em contraposição ao centro). Foi levando a sério esta provocação do Papa, mas ao mesmo tempo desafiando-a a mostrar-se verdadeira na sua dimensão mais geral, que começamos a nos perguntar se isto que Francisco afirmava tão tacitamente valia também para a pesquisa científica, ou, mais ainda, para a pesquisa espacial, para a mais extrema das periferias atingidas pelo homem.
Sou muito grato por ter-me lançado este desafio de entender profundamente as palavras do Papa e ter trabalho para procurar responde-lo. Penso que muitas vezes nós cristãos vivemos o dom da fé como um clube de camaradas ou um partido político- ideológico. Aplaudimos tudo o que dizem os nossos, sem nos lançarmos no real desafio de verificar a sua veracidade. Quando comecei a preparar a Mostra, realmente não sabia se ia chegar a uma resposta positiva ou não sobre a provocação do Papa, de que a realidade é melhor compreendida da periferia. Foram necessários os 8 meses de preparação de Explorers para poder entender que não só a sua afirmação era verdadeira, como também que, descobrindo isto, finalmente eu podia começar a responder para mim mesmo algumas das perguntas mais pessoais que tinha sobre a minha atividade como cientista.

(colaborou Edcarlos Bispo, do jornal “O São Paulo”, da Arquidiocese de São Paulo)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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