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Passos N.173, Setembro 2015

DESTAQUE

Laudato si’. Fascínio diante da criação e compromisso com os pobres

por Francisco Borba Ribeiro Neto (org.)

O gesto de Deus e o trabalho do homem. Voltar a maravilhar-se com o “dom das coisas”: só assim reencontramos o sentido da própria responsabilidade. Antologia de trechos da nova encíclica do Papa Francisco

Em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, a Eco92, foi um ponto de inflexão para a questão ambiental. Marcou o reconhecimento, por parte de governantes e líderes mundiais, da importância da defesa do meio ambiente e da busca por um desenvolvimento sustentável. Contudo, seus desdobramentos não estiveram à altura das expectativas. No plano político, vários acordos internacionais que se seguiram, como o Protocolo de Quioto (1997) sobre a redução da emissão dos gases responsáveis pelo efeito estufa, não foram cumpridos pelos maiores países poluidores. No plano cultural, a defesa do meio ambiente passou a ser visto cada vez mais como “econegócio” e questão tecnológica – o que era entendido como a busca por um novo modo de vida alternativo passou a ser visto como busca por mais qualidade de vida, mas dentro dos paradigmas da sociedade atual.
Mais de 20 anos depois da Eco92, a encíclica Laudato si’ encantou os movimentos ambientalistas e o mundo justamente porque, às vésperas de uma nova conferência Internacional sobre o clima (COP21, em Paris), significa o apoio à causa ambiental pelo líder internacional com maior autoridade moral da atualidade, que é o Papa Francisco, além de retomar o sentido ideal do movimento ambientalista, de busca por um outro modo de vida, onde o ser humano esteja em harmonia com a natureza e consigo mesmo.
“Suponhamos estar nascendo, saindo do ventre de nossa mãe com a idade que temos neste momento (...). Se eu abrisse pela primeira vez os olhos neste instante, saindo do seio de minha mãe, ficaria dominado pela maravilha e fascínio das coisas, como de uma ‘presença’ (...) que não é feita por mim, mas que encontro, uma presença que se me impõe” (Giussani, L. O senso religioso. Brasília: Ed. Universa, 2009, p. 155). Esta maravilha, este fascínio, é o primeiro fio condutor que encontramos na Laudato si’. A gratidão, o sentimento de ser amado e contemplado com o dom da vida, orientam a conduta humana em seu encontro com a natureza e os irmãos que mais sofrem. No cerne da encíclica, encontramos a estupenda contraposição entre a natureza, entendida como uma coisa passível de análise e dominação, e a criação, entendida um dom de amor do Pai, que nos chama a uma comunhão universal (cf. nº 76). Seguindo desde o início da encíclica os passos de São Francisco de Assis, o Papa reaviva a questão ecológica, recuperando seu aspecto de fascínio ante a beleza da criação, busca de um sentido pleno e harmonioso para a vida, compromisso permanente com os mais pobres e excluídos.

"LAUDATO SI’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor”, cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços (...). Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que “geme e sofre as dores do parto” (Rm 8, 22).

4-6. Em 1971, o Beato Papa Paulo VI referiu-se à problemática ecológica, apresentando-a como uma crise que é “consequência dramática” da atividade descontrolada do ser humano (...). São João Paulo II (...) convidou a uma conversão ecológica global. O meu predecessor, Bento XVI, renovou o convite a “eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente”.

7. Estas contribuições dos Papas recolhem a reflexão de inúmeros cientistas, filósofos, teólogos e organizações sociais que enriqueceram o pensamento da Igreja sobre estas questões. Mas não podemos ignorar que, também fora da Igreja Católica, noutras Igrejas e Comunidades cristãs – bem como noutras religiões – se tem desenvolvido uma profunda preocupação e uma reflexão valiosa sobre estes temas que a todos nos são caros.

10. Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior.

12. Por outro lado, São Francisco, fiel à Sagrada Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade: “Na grandeza e na beleza das criaturas, contempla-se, por analogia, o seu Criador” (Sab 13, 5) e “o que é invisível n’Ele – o seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1, 20). Por isso, Francisco pedia que, no convento, se deixasse sempre uma parte do horto por cultivar para aí crescerem as ervas silvestres, a fim de que, quem as admirasse, pudesse elevar o seu pensamento a Deus, autor de tanta beleza. O mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor.

13. O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum.

I- O que está acontecendo com a nossa casa
Neste capítulo, o Papa lista alguns dos principais problemas ambientais da atualidade, salientando sempre que afetam a todos, mas os mais pobres são os que mais sofrem com eles. Mostra a sólida fundamentação científica da encíclica. Procura se distanciar das polêmicas técnicas sobre o tema do aquecimento global, mas deixa claro que considera fundamental a redução das emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa.

17-19. Antes de reconhecer como a fé traz novas motivações e exigências perante o mundo de que fazemos parte, proponho que nos detenhamos brevemente a considerar o que está acontecendo com nossa casa comum (...). O objetivo não é recolher informações ou satisfazer a nossa curiosidade, mas tomar dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece com o mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar.

20-22. A exposição aos poluentes atmosféricos produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente dos mais pobres, e provocam milhões de mortes prematuras (...). Em muitos lugares do planeta, os idosos recordam com saudade as paisagens de outrora, que agora veem submersas de lixo.

22. Estes problemas estão intimamente ligados à cultura do descarte, que afeta tanto os seres humanos excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em lixo (...). As plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam os herbívoros; estes, por sua vez, alimentam os carnívoros que fornecem significativas quantidades de resíduos orgânicos, que dão origem a uma nova geração de vegetais. Ao contrário, o sistema industrial, no final do ciclo de produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar resíduos e detritos.

23. Há um consenso científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não relacioná-lo ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenómeno particular. A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam. É verdade que há outros fatores (tais como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo solar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases de efeito estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto, e outros) emitidos sobretudo por causa da atividade humana (...). Isto é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, o qual está no centro do sistema energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola.

27. Outros indicadores da situação atual têm a ver com o esgotamento dos recursos naturais. É bem conhecida a impossibilidade de sustentar o nível atual de consumo dos países mais desenvolvidos e dos setores mais ricos da sociedade, onde o hábito de desperdiçar e jogar fora atinge níveis inauditos. Já se ultrapassaram certos limites máximos de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza.

28-29. A disponibilidade de água manteve-se relativamente constante durante muito tempo, mas agora, em muitos lugares, a procura excede a oferta sustentável, com graves consequências a curto e longo prazo (...). Um problema particularmente sério é o da qualidade da água disponível para os pobres, que diariamente ceifa muitas vidas.

32-33. Os recursos da terra estão sendo depredados também por causa de formas imediatistas de entender a economia e a atividade comercial e produtiva. A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes (...). Entretanto não basta pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais “recursos” exploráveis, esquecendo que possuem um valor em si mesmas. Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos filhos não poderão ver, perdidas para sempre (...). Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de fazer isso.

38. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos desertos (...). Não é possível ignorar também os enormes interesses económicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles, podem atentar contra as soberanias nacionais. Com efeito, há “propostas de internacionalização da Amazônia que só servem aos interesses econômicos das corporações internacionais” [Documento de Aparecida].

43-45. Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste mundo, que tem direito a viver e ser feliz e, além disso, possui uma dignidade especial, não podemos deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do modelo atual de desenvolvimento e da cultura do descarte sobre a vida das pessoas. Nota-se hoje, por exemplo, o crescimento desmedido e descontrolado de muitas cidades que se tornaram pouco saudáveis para viver, devido não só à poluição proveniente de emissões tóxicas, mas também ao caos urbano, aos problemas de transporte e à poluição visual e acústica (...). Muitas vezes encontra-se uma cidade bela e cheia de espaços verdes e bem cuidados nalgumas áreas “seguras”, mas não em áreas menos visíveis, onde vivem os descartados da sociedade.

46. Entre os componentes sociais da mudança global, incluem- se os efeitos laborais dalgumas inovações tecnológicas, a exclusão social, a desigualdade no fornecimento e consumo da energia e doutros serviços, a fragmentação social, o aumento da violência e o aparecimento de novas formas de agressividade social, o narcotráfico e o consumo crescente de drogas entre os mais jovens, a perda de identidade.

48. O ambiente humano e o ambiente natural degradam- se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. De fato, a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis do planeta: “Tanto a experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres” [Conferência Episcopal Boliviana].

II. O evangelho da criação
A sabedoria contida na Bíblia é uma riqueza para toda a humanidade, não só para os cristãos. Ela nos ajuda a compreender nosso justo lugar na natureza e percebermos o dom de amor que a criação representa para todos.

62. Por que incluir, neste documento dirigido a todas as pessoas de boa vontade, um capítulo referente às convicções de fé? Não ignoro que alguns, no campo da política e do pensamento, rejeitam decididamente a ideia de um Criador ou consideram-na irrelevante (....).Todavia a ciência e a religião, que fornecem diferentes abordagens da realidade, podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para ambas.

63. Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e as suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir de uma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria. 66. As narrações da criação no livro do Gênesis (...) sugerem que a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra. Segundo a Bíblia, estas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas.

67. Foi dito que a narração do Gênesis, que convida a “dominar” a terra (cf. Gn 1, 28), favoreceria a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como dominador e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da Bíblia (...). É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a “cultivar e guardar” o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15).

76. Na tradição judaico-cristã, dizer “criação” é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projeto do amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um significado (...). A criação só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal.

77. O amor de Deus é a razão fundamental de toda a criação: “Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado” (Sab 11, 24). Então cada criatura é objeto da ternura do Pai que lhe atribui um lugar no mundo. Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho.

84. Todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas: tudo é carícia de Deus.

96-98. Jesus retoma a fé bíblica no Deus criador e destaca um dado fundamental: Deus é Pai (cf. Mt 11, 25). Em colóquio com os seus discípulos, Jesus convidava-os a reconhecer a relação paterna que Deus tem com todas as criaturas e recordava-lhes, com comovente ternura, como cada uma delas era importante aos olhos d’Ele: “Não se vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus” (Lc 12, 6). “Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste as alimenta” (Mt 6, 26) (...). Ele próprio vivia em contato permanente com a natureza e prestava- lhe uma atenção cheia de carinho e admiração (...). “O Reino dos Céus é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É a menor de todas as sementes; mas, depois de crescer, torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore” (Mt 13, 31-32). Jesus vivia em plena harmonia com a criação, com grande maravilha dos outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?” (Mt 8, 27).

III. A raiz humana da crise ecológica
As raízes culturais da crise ambiental são um antropocentrismo desordenado, que não reconhece o ser humano como dependente de toda a criação, e o paradigma tecnocrático, segundo o qual é adequado fazer tudo o que a técnica permite. Francisco não se insurge contra a técnica, mas sim contra um modelo de relação das pessoas entre si e com natureza onde tudo é reduzido a poder e dominação.

103-104. A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano (...). [Mas] dão, àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder econômico para desfrutá-lo, um domínio impressionante sobre o conjunto do gênero humano e do mundo inteiro. 105. Tende-se a crer que “toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores” [R. Guardini], como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. A verdade é que “o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder” [Idem] (...). O ser humano não é plenamente autônomo. A sua liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal.

108-109. Não se consegue pensar que seja possível sustentar outro paradigma cultural e servir-se da técnica como mero instrumento, porque hoje o paradigma tecnocrático tornou-se tão dominante que é muito difícil prescindir dos seus recursos, e mais difícil ainda é utilizar os seus recursos sem ser dominados pela sua lógica (...). Não temos suficiente consciência de quais sejam as raízes mais profundas dos desequilíbrios atuais: estes têm a ver com a orientação, os fins, o sentido e o contexto social do crescimento tecnológico e econômico.

115-116. O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano “já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objetivamente, como espaço e matéria onde realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela” [R. Guardini] (...). Por isso, chegou a hora de prestar novamente atenção à realidade com os limites que a mesma impõe e que, por sua vez, constituem a possibilidade de um desenvolvimento humano e social mais saudável e fecundo.

117-118. A falta de preocupação por medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas. Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza (...). Não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Não há ecologia sem uma adequada antropologia.

120. Uma vez que tudo está relacionado, também não é compatível a defesa da natureza como justificação do aborto. Não parece viável um percurso educativo para acolher os seres frágeis que nos rodeiam e que, às vezes, são molestos e inoportunos, quando não se dá proteção a um embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de incômodos e dificuldades.

136. Quando a técnica ignora os grandes princípios éticos, acaba por considerar legítima qualquer prática. Como vimos neste capítulo, a técnica separada da ética dificilmente será capaz de autolimitar o seu poder.

IV. Uma ecologia integra l
O conceito de ecologia integral perpassa todos os capítulos da encíclica. Mas, numa ciência em que tudo já é reconhecido como interligado, como acontece com a ecologia, o que poderá ser acrescido pelo adjetivo integral? A percepção de que todas as coisas estão interligadas não só enquanto relações físico-químicas, biológicas e mesmo sociais, mas também como relação com aquilo que dá sentido à vida. Quem lê a encíclica em seu conjunto percebe que o cuidado com os ecossistemas se integra ao cuidado com a sociedade e as instituições, o cuidado com o próprio corpo, o cuidado com o espírito e o sentido da vida.

138-141. Nunca é demais insistir que tudo está interligado (...). Quando falamos de “meio ambiente”, fazemos referência também a uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita (...). Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza (...). Torna-se atual a necessidade imperiosa do humanismo, que faz apelo aos distintos saberes, incluindo o econômico, para uma visão mais integral e integradora.

144. É preciso integrar a história, a cultura e a arquitetura de um lugar, salvaguardando a sua identidade original (...) fazendo dialogar a linguagem técnico-científica com a linguagem popular. É a cultura – entendida não só como os monumentos do passado, mas especialmente no seu sentido vivo, dinâmico e participativo – que não se pode excluir na hora de repensar a relação do ser humano com o meio ambiente (...). Pretender resolver todas as dificuldades através de normativas uniformes ou por intervenções técnicas, leva a negligenciar a complexidade das problemáticas locais, que requerem a participação ativa dos habitantes.

148-149. A sensação de sufocamento, produzida pelos aglomerados residenciais e pelos espaços com alta densidade populacional, é contrastada se se desenvolvem calorosas relações humanas de vizinhança, se se criam comunidades, se as limitações ambientais são compensadas na interioridade de cada pessoa que se sente inserida numa rede de comunhão e pertença (...). Muitas pessoas, nestas condições, são capazes de tecer laços de pertença e convivência que transformam a superlotação numa experiência comunitária, onde se derrubam os muros do eu e superam as barreiras do egoísmo.

155. A ecologia humana implica também (...) a relação necessária da vida do ser humano com a lei moral inscrita na sua própria natureza. Bento XVI dizia que existe uma “ecologia do homem”, porque “também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece” (...). A aceitação do próprio corpo como dom de Deus é necessária para acolher e aceitar o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum (...). Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que é diferente.

156-157. A ecologia integral é inseparável da noção de bem comum (...). Exige também os dispositivos de bem- -estar e segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se de forma especial a família enquanto célula basilar da sociedade.

158. O princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres. Esta opção (...) exige acima de tudo contemplar a imensa dignidade do pobre à luz das mais profundas convicções de fé.

159-160. Já não se pode falar de desenvolvimento sustentável sem uma solidariedade intergeneracional. Quando pensamos na situação em que se deixa o planeta às gerações futuras, entramos em outra lógica: a do dom gratuito, que recebemos e comunicamos (...). Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu sentido, aos seus valores. Se não pulsa nelas esta pergunta de fundo, não creio que as nossas preocupações ecológicas possam alcançar efeitos importantes (...). [Mas] “para além de uma leal solidariedade entre as gerações, há que reafirmar a urgente necessidade moral de uma renovada solidariedade entre os indivíduos da mesma geração” [Bento XVI].

V. Algumas linhas de orientação e ação
Os dois últimos capítulos da encíclica lembram um conhecido lema ambientalista: pensar globalmente, agir localmente. Assim, o capítulo 5 dedica-se a discutir o que deve ser feito a nível internacional. As proposições estão organizadas na forma de cinco diálogos necessários: (1) o diálogo sobre o meio ambiente na política internacional, (2) o diálogo para novas políticas nacionais e locais, (3) diálogo e transparência nos processos decisórios, (4) política e economia em diálogo para a plenitude humana, (5) as religiões no diálogo com as ciências. Neste capítulo, o Papa dá uma grande aula sobre a subsidiariedade, o princípio da doutrina social da Igreja segundo o qual as instâncias mais gerais e dotadas de poder (os organismos internacionais, os Estados nacionais, etc.) devem se colocar a serviços das instâncias locais e das comunidades. As organizações internacionais devem trabalhar e ter poder para garantir a liberdade e a construção do bem comum em todos os lugares, respeitando as peculiaridades e as características de cada grupo local.

164. Um mundo interdependente não significa unicamente compreender que as consequências danosas dos estilos de vida, produção e consumo afetam a todos, mas principalmente procurar que as soluções sejam propostas a partir de uma perspectiva global e não apenas para defesa dos interesses de alguns países.

166. O movimento ecológico mundial já percorreu um longo caminho, enriquecido pelo esforço de muitas organizações da sociedade civil (...). Apesar disso, as reuniões das cúpulas mundiais sobre o meio ambiente dos últimos anos não corresponderam às expectativas, porque não alcançaram, por falta de decisão política, acordos ambientais globais realmente significativos e eficazes.

173-175. As relações entre os Estados devem salvaguardar a soberania de cada um, mas também estabelecer caminhos consensuais para evitar catástrofes locais que acabariam por danificar a todos. São necessários padrões reguladores globais que imponham obrigações e impeçam ações inaceitáveis, como o fato de empresas ou países poderosos descarregarem, sobre outros países, resíduos e indústrias altamente poluentes (...). Torna-se indispensável a maturação de instituições internacionais mais fortes e eficazmente (...) “urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial” [Bento XVI].

176. As questões relacionadas com o meio ambiente e com o desenvolvimento econômico já não se podem olhar apenas a partir das diferenças entre os países, mas exigem que se preste atenção às políticas nacionais e locais.

179. A sociedade, através de organismos não-governamentais e associações intermédias, deve forçar os governos a desenvolver normativas, procedimentos e controles mais rigorosos. Se os cidadãos não controlam o poder político – nacional, regional e municipal –, também não é possível combater os danos ambientais. Além disso, as legislações municipais podem ser mais eficazes, se houver acordos entre populações vizinhas para sustentarem as mesmas políticas ambientais.

188. Há discussões sobre problemas relativos ao meio ambiente, onde é difícil chegar a um consenso. Repito uma vez mais que a Igreja não pretende definir as questões científicas nem substituir-se à política, mas convido a um debate honesto e transparente, para que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum.

189-190. A política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana (...). Sempre se deve recordar que “a proteção ambiental não pode ser assegurada somente com base no cálculo financeiro de custos e benefícios” [Compêndio de Doutrina Social].


191. Quando se colocam estas questões, alguns reagem acusando os outros de pretender parar, irracionalmente, o progresso e o desenvolvimento humano. Mas temos de nos convencer que, reduzir um determinado ritmo de produção e consumo, pode dar lugar a outra modalidade de progresso e desenvolvimento.

193. Sabemos que é insustentável o comportamento daqueles que consomem e destroem cada vez mais, enquanto outros ainda não podem viver de acordo com a sua dignidade humana. Por isso, chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo em algumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável em outras partes. Bento XVI dizia que “é preciso que as sociedades tecnologicamente avançadas estejam dispostas a favorecer comportamentos caraterizados pela sobriedade, diminuindo as próprias necessidades de energia e melhorando as condições da sua utilização”.

196. Recordemos o princípio da subsidiariedade, que dá liberdade para o desenvolvimento das capacidades presentes a todos os níveis, mas simultaneamente exige mais responsabilidade pelo bem comum a quem tem mais poder.

197. Muitas vezes, a própria política é responsável pelo seu descrédito, devido à corrupção e à falta de boas políticas públicas (...). Se a política não é capaz de romper uma lógica perversa e perde-se também em discursos inconsistentes, continuaremos sem enfrentar os grandes problemas da humanidade.

199-200. Não se pode sustentar que as ciências empíricas expliquem completamente a vida, a essência íntima de todas as criaturas e o conjunto da realidade. Isto seria ultrapassar indevidamente os seus confins metodológicos limitados. Se se reflete dentro deste quadro restrito, desaparecem a sensibilidade estética, a poesia e ainda a capacidade da razão perceber o sentido e a finalidade das coisas (...). Além disso, qualquer solução técnica que as ciências pretendam oferecer será impotente para resolver os graves problemas do mundo, se a humanidade perde o seu rumo, se esquece as grandes motivações que tornam possível a convivência social, o sacrifício, a bondade.

VI. Educação e espiritualidade ecológicas
Por que o ser humano se deixa levar por um consumismo incontrolável, que é ruim para sua vida pessoal, para suas economias e para todo o meio ambiente? O Papa Francisco responderia: “porque tem o coração vazio. O último capítulo da encíclica é dedicado à integração entre educação e espiritualidade para a construção de uma “sobriedade alegre”, que não é privação, mas sim capacidade de encontrar a alegria naquilo que realmente preenche o coração da pessoa. A figura de São Francisco de Assis, o santo que vivia na pobreza, se fazendo cercar pelos mais pobres e sofredores, a quem procurava sempre servir, mas que deixou um testemunho de beleza, alegria, poesia e amor à natureza, se sobressai novamente neste capítulo. O texto se encaminha para o final com uma bela e comovente alusão à vida eterna e termina com duas orações a Nossa Senhora.

203. O consumismo obsessivo é o reflexo subjetivo do paradigma tecno-econômico (...). Nesta confusão, a humanidade pós-moderna não encontrou uma nova compreensão de si mesma que a possa orientar, e esta falta de identidade é vivida com angústia. Temos muitos meios para escassos e raquíticos fins.

204. Quando as pessoas se tornam autorreferenciais e se isolam na própria consciência, aumentam a sua voracidade: quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de objetos para comprar, possuir e consumir.

205. Mas nem tudo está perdido, porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem (...). Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a animar no mais fundo dos nossos corações.

209-210. A consciência da gravidade da crise cultural e ecológica precisa de traduzir-se em novos hábitos (...). Por isso, estamos perante um desafio educativo. A educação ambiental (...) tende a incluir uma crítica dos “mitos” da modernidade baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras) e tende também a recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus.

211-212. É muito nobre assumir o dever de cuidar da criação com pequenas ações diárias, e é maravilhoso que a educação seja capaz de motivar para elas até dar forma a um estilo de vida (...). E não se pense que estes esforços são incapazes de mudar o mundo. Estas ações espalham, na sociedade, um bem que frutifica sempre para além do que é possível constatar; provocam, no seio desta terra, um bem que sempre tende a difundir-se, por vezes invisivelmente.

214. Compete à política e às várias associações um esforço de formação das consciências da população. Naturalmente compete também à Igreja. Todas as comunidades cristãs têm um papel importante a desempenhar nesta educação.

215. Neste contexto, “não se deve descurar nunca a relação que existe entre uma educação estética apropriada e a preservação de um ambiente sadio” [São João Paulo II]. Prestar atenção à beleza e amá-la, ajuda-nos a sair do pragmatismo utilitarista.

217. Se “os desertos exteriores se multiplicam no mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos” [Bento XVI], a crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior.

218-220. Recordemos o modelo de São Francisco de Assis, para propor uma sã relação com a criação como dimensão da conversão integral da pessoa. (...). Esta conversão comporta várias atitudes que se conjugam para ativar um cuidado generoso e cheio de ternura. Em primeiro lugar, implica gratidão e gratuidade, ou seja, um reconhecimento do mundo como dom recebido do amor do Pai (...). Implica ainda a consciência amorosa de não estar separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal (...). Além disso a conversão ecológica, fazendo crescer as peculiares capacidades que Deus deu a cada crente, leva-o a desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas do mundo, oferecendo-se a Deus “como sacrifício vivo, santo e agradável” (Rm12, 1).

222. A espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco (...). Não se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário (...). É possível necessitar de pouco e viver muito, sobretudo quando se é capaz de dar espaço a outros prazeres, encontrando satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos próprios carismas, na música e na arte, no contato com a natureza, na oração. A felicidade exige saber limitar algumas necessidades que nos entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as múltiplas possibilidades que a vida oferece.

231. O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor. O amor à sociedade e o compromisso pelo bem comum são uma forma eminente de caridade, que toca não só as relações entre os indivíduos, mas também “as macrorrelações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos” [Bento XVI].

236. A criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia (...). No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo.

243. No fim, encontrar-nos-emos face a face com a beleza infinita de Deus (cf.1 Cor13, 12) e poderemos ler, com jubilosa admiração, o mistério do universo, o qual terá parte conosco na plenitude sem fim. Estamos caminhando para o sábado da eternidade, para a nova Jerusalém, para a casa comum do Céu. Diz-nos Jesus: “Eu renovo todas as coisas” (Ap 21, 5). A vida eterna será uma maravilha compartilhada, onde cada criatura, esplendorosamente transformada, ocupará o seu lugar e terá algo para oferecer aos pobres definitivamente libertados.

244. Na expectativa da vida eterna, unimo-nos para tomar a nosso cargo esta casa que nos foi confiada, sabendo que aquilo de bom que há nela será assumido na festa do Céu. Juntamente com todas as criaturas, caminhamos nesta terra à procura de Deus, porque, “se o mundo tem um princípio e foi criado, procura quem o criou, procura quem lhe deu início, aquele que é o seu Criador” [São Basílio Magno]. Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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