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Passos N.178, Março 2016

IGREJA

“Um padre, perdoado”

por Martino Cervo

O livro-entrevista com o Papa, o relacionamento pessoal com ele (mesmo antes da eleição), os últimos desafios. O jornalista ANDREA TORNIELLI conta o que descobriu para além do “olhar de Francisco” e da sua insistência sobre a misericórdia


“O nome de Deus é Misericórdia” é uma frase de Bento XVI. É também o título escolhido por Andrea Tornielli, vaticanista do La Stampa, para o livro-entrevista com Papa Francisco: uma longa conversa com Jorge Bergoglio que se desenrola em torno do tema ao qual quis dedicar o Ano Santo. Ratzinger dizia: “A misericórdia é, na realidade, o núcleo central da mensagem evangélica. É o nome mesmo de Deus, o rosto com o qual Ele Se revelou na Antiga Aliança e, plenamente, em Jesus Cristo, encarnação do Amor criador e redentor”. É nesse sentido que se coloca a revolução do atual Papa.

No prefácio, o senhor acena para as modalidades escolhidas pelo Papa Francisco para esta longa conversa. É um Pontífice que parece mais interessado pelo “odor das ovelhas”, como ele chama, do que com o relacionamento com intelectuais, personalidades públicas ou jornalistas. Como ele se relaciona com eles, e vice-versa?
Certamente, antes de ser Papa, Bergoglio não tinha grandes contatos com a imprensa; e, no entanto, desde quando foi eleito, falou muito e não se negou praticamente a ninguém, quando teve oportunidade. Entrou, por assim dizer, num novo leito de normalidade. No meu caso, há o fato de haver entre nós um conhecimento anterior, mas, em geral, sempre manifestou uma total disponibilidade para responder perguntas. Com respeito a outras entrevistas, aqui está o tema único em torno do qual ele faz girar o diálogo. Não uma troca entre intelectuais: eu era uma pessoa que fazia perguntas e que, acredito, ele tomou como instrumento para fazer passar a mesma mensagem que quis dizer a todo o mundo desde a primeira missa depois do Conclave. Que, além do mais, é a primeira mensagem de Cristo: creio que Francisco não veja grandes diferenças, deste ponto de vista, se fala com um chefe de Estado ou com um doente visitado no hospital, mesmo se, por caráter e história, prefira este último.

O senhor falou de um conhecimento anterior: quem falou com o senhor, pela primeira vez, acerca do Cardeal argentino, e quando o conheceu?
O primeiro contato indireto foi a entrevista publicada na Revista 30giorni, pelo colega Gianni Valente, em janeiro de 2002, o momento da crise dos títulos argentinos. Depois, o encontrei na Praça São Pedro, para dar-lhe um livro que eu tinha escrito, e ele parou para conversar comigo. Fiquei tocado com ele: frequentemente, os Cardeais escapam mesmo se um jornalista se aproxima para dizer “bom dia”. Ele não. Pelo contrário, depois, me escreveu, graças à mediação de amigos comuns. Anos depois, em 2012, em pleno Vatileaks, eu o entrevistei por telefone sobre os escândalos da Igreja.

Em março de 2013, o senhor se surpreendeu menos do que os demais com a sua eleição...
Foi uma grande surpresa par todos, inclusive para mim: eu o havia indicado como “papável”, mas considerava-o um outsider. Tento distinguir o que são minhas ideias, simpatias pessoais e aquilo que vejo se mover na Igreja. Entendia que, naquele tempo, emergia um certo tipo de “identikit”, mas isto não tira o fato de o Espírito Santo ter surpreendido a todos.

Pensando na história e na pastoral de Bergoglio, como nasceu esta insistência sobre a misericórdia, do que ela surge?
Acredito que de dois fatores: o primeiro é a dinâmica vocacional pessoal. Bergoglio vem de uma família católica, sempre teve a fé; depois, encontrando num confessionário um sacerdote que nunca tinha visto antes, lhe surge o desejo de ser padre. Ele mesmo, descrevendo-o no livro O jesuíta (ainda não publicado em português), de Angela Ambrogetti e Sergio Rubin, disse que, naquela circunstância, é como se Deus o tivesse pego sem defesas. Era o dia da festa de São Mateus, e como no célebre quadro de Caravaggio se sentiu “misericordiado”, disse ele inventando uma palavra que não existe. Na sua estadia em Roma, Bergoglio ficava hospedado bem próximo à Igreja San Luigi dei Francesi, onde se encontra a pintura Vocação de São Mateus de Caravaggio. Ele é muito ligado a esta imagem e frequentemente se colocava aos pés dessa pintura. Há traços disso até mesmo no seu mote: “miserando atque eligendo”.

O segundo fator?
Ele se desenvolveu naturalmente como padre, isto é, “aplicando” a misericórdia. No seu se colocar próximo à fragilidade. Sempre no mesmo livro publicado originalmente na Argentina, ele disse que, em sua lápide, quis que se escrevesse: “Jorge Mario Bergoglio, padre”. O máximo, para ele. Padre callejero, perdoado e próximo de quem sofre. Celebrar, batizar, dispensar os Sacramentos o tornam feliz. Tenho uma lembrança pessoal: assisti a uns vinte batizados que, como acontece tradicionalmente, como Papa ele faz aos dependentes do Vaticano. Tinha um monte de gente, demais para um número tão restrito de Sacramentos como os que estavam programados. Era porque, naquela tarde, ele havia resolvido fazer um “Batizado bis”, ampliado para os parentes e amigos dos dependentes. Dava-lhe alegria, era um modo de ampliar a misericórdia de Deus e atingir o máximo de pessoas possível.

Às vezes, porém, pode parecer que a misericórdia seja uma palavra mágica para sobrepor a tudo, quase como uma fuga do mundo e não um critério para entrar no mundo com uma abordagem diferente. Mas, no livro, se entende que não é assim: pode explicar por quê?
O problema existe desde sempre, não apenas com este Papa: e é o de transformar as palavras em slogans para colocar as coisas na batedeira e restituí-las com uma nova etiqueta. Pelo contrário, as palavras falam com uma vida. A misericórdia não é benfeitoria, serve para entrar no mundo. O pecado tem um impacto social, e assim também o perdão: pecado e perdão são, num certo sentido, também um fato político, até mesmo internacional. Não é por acaso que Papa Francisco cite João Paulo II que, em 2002, depois do 11 de setembro, num momento, em certos aspectos, terrivelmente semelhante ao presente, disse: “Não há justiça sem perdão”. O perdão é o ápice possível da justiça, e esse impacto social está no fato de que quem faz experiência do perdão – seja como objeto, seja como sujeito – gera consequências. Assim também é para o pecado confessado: muda o homem, e, portanto, o mundo.

Como a centralidade da misericórdia se aplica, por exemplo, na política dos Estados? O que implica aquilo que o senhor, no início, chamava de “o olhar de Francisco”, e o que solicita aos católicos?
Obviamente, falo de uma impressão minha e não em seu nome. O discurso na Sacra Rota (no qual Bergoglio disse que “a Igreja indicou ao mundo que não pode haver confusão entre a família querida por Deus e todo outro tipo de união”) não tinha o sentido de uma ida a campo: certamente não porque o Papa não ache que seja justo que os leigos crentes se enfileirem, mas porque pensa que eles devem fazer suas escolhas livres sem ser pilotados por ninguém. E aqui devo dizer que, se existem Bispos que gostam de “pilotar”, é também e sobretudo porque existem leigos que querem bênçãos que substituam suas próprias responsabilidades pessoais. Acredito que Francisco queira, em primeiro lugar, uma responsabilização adulta. O Papa, obviamente, disse o que pensa, e é justo que seja assim; os Bispos mantenham os relacionamentos com as instituições como é normal que seja, e os leigos se movam sem a necessidade do apoio por escrito ou da organização. Há, sobretudo na Itália, um problema de clericalismo leigo que é, no fundo, querer delegar a própria responsabilidade, e Bergoglio tem a intenção de desarticular isso exatamente por amor à liberdade.

No jornal italiano Repubblica, Vito Mancuso chamou em causa própria o título do livro, escrevendo: “Estamos certos de que a doutrina católica tradicional sobre a família seja coerente com a afirmação tão cara a Papa Francisco, segundo quem ‘o nome de Deus é misericórdia’? (...) Acho que posso afirmar que Deus não pensa a família como a pensa o Código de Direito Canônico. Pensa muito mais na relação amorosa (...). Aqui, a misericórdia pode ser exercitada apenas na medida em que se modifica a própria visão de mundo, ou então infringindo o tabu da doutrina. Mas, é aqui que se mede a verdade evangélica, aqui se vê se vale mais o sábado ou homem. Aqui, Papa Francisco, se joga boa parte do valor profético do seu pontificado”. No livro, Bergoglio disse o exato oposto, ou seja, que a misericórdia “é doutrina” porque a “misericórdia é verdadeira”. O que o senhor pensa a respeito disso?
Do que eu entendi – e de como emerge das respostas do Papa –, a misericórdia é verdadeira e, portanto, é doutrina, e isso “simplesmente” coincide com 2000 anos de história da Igreja. Depois, isso cria, exatamente na história, uma tensão constante entre os “doutores da lei” e o beijo de Jesus no leproso. Francamente, não entendo o tema da misericórdia como contraposto justamente à tradição e à doutrina. Não entendo por que deveria e como poderia ser. Por acaso, o nó interessante me parece estar ligado às consequências que a misericórdia tem no formar o tipo de comunicação, isto é, o rosto da Igreja. Jesus atraia os pecadores, não dizendo a eles que faziam bem em pecar, mas os atraia, os abraçava, os perdoava. O ponto é que a Igreja seja capaz desta misericórdia: quando você é perdoado e abraçado, é ajudado a fazer a experiência do se sentir pequeno e necessitado de amor. Não são necessários pré-requisitos: Jesus ia até os piores, desafiando os publicanos que, depois – depois – davam metade de seus pertences aos pobres. Impressiona-me sempre quem pensa que este Papa queira rebater a doutrina: a mim, parece que Francisco queria apenas mudar a modalidade daquilo que a Igreja deve mostrar ao mundo há 2000 anos.

Na longa conversa com ele, o que ficou, para o senhor, como a maior impressão? O que o senhor entendeu dele e como isso muda também o seu trabalho, no qual o Papa é, no fundo, ao mesmo tempo objeto e inspiração?
No nível pessoal, ficou-me uma imagem de um Deus que tenta de tudo para vir ao seu encontro, para precedê-lo. Tenta cada caminho, cada brecha. No nível profissional, fiquei tocado com alguns episódios dos quais emergia a delicadeza do Pontífice, a sua consciência do fato de que mesmo com as palavras se pode fazer muito mal. Vê-lo me fez pensar em coisas que São Francisco de Sales escrevia, que – como grande jornalista – fazia um convite constante para a síntese e para a verdade. Mesmo quando se escreve, tem algo a ver com a vida das pessoas: do ponto de vista de quem crê e deve escrever sobre coisas frequentemente pouco prazerosas a respeito da Igreja e de seus membros, isto quer dizer buscar um olhar que não o abstraia da ferida que você mesmo tem. Quer dizer descer do pedestal, não condenar, olhar de maneira diferente.

O que o Papa pede aos movimentos?
Que desenvolvam uma capacidade para a qual convida toda a Igreja: fazer própria a mensagem de “sair” – não como um slogan – para alcançar as pessoas onde quer que elas vivam. E, portanto, pede que saiam da auto-referencialidade de linguagem, que fujam das coisas que constroem ou refletem imagens de si mesmos. Que se envolvam com todos e para todos, para renunciar não ao próprio carisma, mas a todo o resto. Ser auto-referenciado, fechado, é, no fundo, a doença típica de ordens e movimentos, e ele pede que se supere isso. O carisma não é um museu, e esta passagem vale também para a presença mesma dos cristãos. Fala-se tanto, e justamente, de identidade da Europa. Pois é, o Papa recoloca a pergunta para dentro: quem são os cristãos? Não é um tema apenas intelectual-cultural, mas de verdade da vida.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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