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Passos N.179, Abril 2016

DESTAQUE | AMÉRICA LATINA

A revolução

por Alessandra Stoppa - fotos de Kika Antunes

Uma exposição feita por alguns amigos argentinos torna-se ponto de encontro entre ex-guerrilheiros e apoiadores do regime. Caridade criativa na Venezuela, e novidades em Cuba... A vida do Movimento na América Latina hoje, depois das quatro viagens do Papa. “Basta um abraço para mudar o mundo?”

É um continente todo ferido. Atravessado pela ruína dos sistemas socialistas em países que esperam um resgate, quase todos eles asfixiados entre um passado violento e o presente correndo atrás de alimento, em meio ao narcotráfico, desequilíbrios, inércias. Talvez por isso, na América Latina é mais simples admitir que sem misericórdia não se vive. Simplesmente porque nada mais está à altura da situação. “A ternura de Deus é a única força capaz de conquistar o coração dos homens”.
Trata-se de uma frase do Papa Francisco que é lembrada várias vezes durante a ARAL, a Assembleia de responsáveis das comunidades de CL na América Latina, ocorrida em São Paulo, nos mesmos dias em que a cidade se preparava para a manifestação do dia 13 de março que levou para as ruas milhões de pessoas contra a corrupção da política, depois do escândalo da Petrobrás, num Brasil sacrificado pela crise econômica.
A Assembleia é um encontro de três dias com o padre Julián Carrón e cerca de 250 pessoas, vindas das comunidades do Movimento espalhadas pelo continente, cuja vida social muitas vezes é atribulada. O fato é que esses lugares foram alcançados pelo abraço de Francisco, nas quatro viagens que fez à América Latina desde que se tornou Papa. O abraço é aquela “fraqueza onipotente do amor divino”, que “encanta e atrai, dobra e vence, abre e solta as correntes”, como disse no México, em meados de fevereiro: “A força irresistível da sua doçura e a promessa irreversível da sua misericórdia”.
“Mas esse abraço basta?”. A pergunta foi feita por Alejandre Mayo, responsável da comunidade cubana, no choque que experimentou ao constatar como Francisco agiu em Havana, em setembro do ano passado. “Esperávamos que o terceiro Papa que veio à nossa terra dissesse: agora basta!”. Esperava-se que fizesse justiça. Ao invés, veio e disse que a história pode ser mudada com “um jogo de olhares”, como foi para Mateus diante de Jesus. Chegou e saudou Fidel Castro. Um escândalo para muitos. “O primeiro pensamento era que ele estava errando tudo”, continua Alejandre; ele e sua esposa ficaram chocados: “A sabedoria dele não vem de um esquema, não colide mas abraça. E não comunica a verdade seca”. Por isso, para alguns pode parecer ambíguo.

Jesus e a adúltera. “Se nós reduzirmos tudo isso a um jeito de agir próprio de Francisco, estaremos nos defendendo de nos convertermos”, diz Carrón. No entanto, nos foi dada essa testemunha que é o Papa, “o Mistério nos dá essa possibilidade: qual é o olhar dele sobre os homens? Por que ele insiste nisso? Entre todas as coisas, por que a misericórdia?”. Fora dessas perguntas permanecemos anticastristas no nosso canto, enquanto a História vai adiante. “O confronto jamais mudou alguma coisa. Não mudou nem mesmo por exaustão”, continua Carrón. “Eu não sei o que vai acontecer, mas ocorrem fatos que abrem processos novos”. Basta pensar no fim do embargo ou no Partido comunista que leva os seus jovens para ouvir o Papa.
Após alguns meses da visita, Alejandre analisa a relação com seu pai: “Ele é comunista e eu jamais falava com ele sobre a situação. Nem da minha fé. Hoje, ao contrário, sinto que preciso fazê-lo. Mudou a minha maneira de ver quem é simpatizante do governo e quem pensa diferente de mim”. Todo ano, depois dos três dias de Assembleia, ele sentia certo desconforto com a ideia de ter que voltar para casa. “Agora, em vez disso, fico feliz, sinto falta de Cuba. Não porque é a minha pátria. Mas espero Cuba porque espero Cristo. É esse o lugar que Ele escolheu para mim”.
No México, afetado pelo narcotráfico e pela violência, o Papa ficou por mais de vinte minutos diante da Virgem de Guadalupe. “Ele nos indicou a forma de Cristo penetrar em toda a nossa vida”, diz Oliverio González, responsável da comunidade mexicana. Lá ele falou da família oferecendo a todos o testemunho de uma jovem mãe e de um casal de divorciados: “Enquanto nós pensamos na família perfeita, ele colocou Cristo no centro”. No telão do palco é projetado um vídeo que mostra as viagens de Francisco por vários países. Entre os discursos no Paraguai, foi selecionada a passagem dedicada às mulheres e às mães “que com grande coragem e abnegação souberam levantar um país destruído”. Diz o Papa: “Deus abençoe a mulher paraguaia, a mais gloriosa da América”. Parecia um nada, em meio a tantas coisas importantes. “Mas ele, com essa frase, estava dizendo uma coisa fortíssima”, explica padre Julián de la Morena, responsável do Movimento na América Latina. A guerra da tríplice aliança (1865-1870) foi o conflito mais atroz da história latino-americana, um genocídio para o povo paraguaio: foram exterminados os homens, inclusive os meninos, que entraram em combate por último. Para cada sete mulheres sobreviveu apenas um homem. E muitas delas tiveram que se unir aos poucos homens restantes, mutilados, para dar filhos ao povo. “Para o mundo, essas mulheres certamente não estavam certas. Para o Papa, são as mais gloriosas da América”.
É exatamente o que diz o Cartaz de Páscoa: Jesus e a adúltera, da Catedral de Chartres, que no palco é o pano de fundo desses três dias de encontros e assembleias. Há a violência do fariseu que puxa a mulher pelo braço e a acusa de pecado. E há o gesto de Cristo, que escreve na areia com o dedo. “Poucas palavras, com as quais nos introduz no mundo de um juízo novo. Revolucionário”. Uma visão inédita. “Estava muito claro, aquela mulher devia ser condenada”, continua Julián de la Morena: “Mas aquele homem escrevendo na areia oferece uma consciência que nasce da misericórdia. Um critério diferente, que nos resgata a todos. Porque nós somos aquela mulher”.

A missão. “É esse amor que transforma a vida!”, dirá Carrón à Assembleia. “Sem a misericórdia não podemos entrar num mundo cheio de pessoas feridas: os nossos filhos, os amigos, os mais distantes, nós mesmos”. A questão não é “adaptar-se aos tempos”, nem muito menos que o Papa faça concessões a Fidel Castro, “mas talvez precisássemos vir até aqui para entender o que é a verdade”. Para aprender de novo, insiste Carrón, “o que é o cristianismo! O que é o Movimento!”. O encontro com o carisma, que para cada um aqui na Assembleia teve a força de mudar a vida, de reconciliar-se com a própria história. “No entanto, é possível estar no Movimento há muitos anos, fazer de tudo, e não ter o senso do Mistério. Não ver a si mesmo e a realidade como Mistério”. Daí depende a clareza sobre a própria missão no mundo, sobre “o que é o testemunho”. Tudo depende da liberdade e é preciso dar tempo para que a verdade trabalhe o coração. Sobretudo, é preciso uma pergunta muito grande e muito plena de mistério, “por isso só Cristo é a resposta”.
Retorna aos olhos o gesto de Jesus diante da adúltera. “Não podemos imaginar a radicalidade da luta que Cristo empreendeu para mudar a mentalidade do seu tempo”, dizia Dom Giussani. Falava justamente da raiz de uma cultura nova, que consiste tão só “no acontecimento de Cristo presente”, que enche de sentido qualquer situação, como emerge das histórias pessoais de quem está aqui e da vida das comunidades, mesmo as menores. Ou olhando uma jovem venezuelana, que elenca os muitos remédios que os amigos de outros países lhe trouxeram. E chora. Trouxeram para ela remédios, dinheiro, o que podiam, sabendo o que as pessoas estavam passando, na crise infinita de um sistema que implode: a falta de produtos, até os básicos, é um drama quotidiano, e o é também a segurança (desde 2014 Caracas superou a taxa de homicídios da cidade mais perigosa do mundo, San Pedro Sula, em Honduras).
Na Argentina, com um grupo de amigos que fez a exposição sobre o Bicentenário da Independência para o Meeting de Rímini de 2012, está acontecendo algo impensável. A exposição procura aprofundar a verdadeira razão que havia movido o coração dos libertadores. Examina até os seus diários e as cartas pessoais, de onde emerge que nem mesmo o triunfo da Independência, a vitória sobre o Império espanhol, os havia realizado. “É a desproporção entre aquilo pelo que o homem luta, uma sociedade justa, e o que se consegue obter. A tensão que cada um vive entre utopia e a busca de significado”, explica um deles, Aníbal Fornari. É uma exposição que nasce “como revisão histórica, sem outras ambições”, diz. Mas tomou outro caminho. Aníbal, de fato, havia enviado os conteúdos da mostra a Héctor Leis, filósofo, amigo e ex-colega, que vivia no Brasil desde quando foi exilado: havia participado com os montoneros da luta armada, durante o regime militar de Videla, entre 1976 e 1983. “No nosso trabalho, vislumbrou algo de novo que, segundo ele, seria uma ajuda à reconciliação entre as duas facções: os guerrilheiros e os repressores”, conta Horacio Morel. Héctor estava buscando um espaço de encontro e considerou decisiva a pedra angular da exposição: o desejo. “Não colocamos como tema a ditadura ou a reconciliação. Mas, justamente, a necessidade infinita do homem, de todo homem, e a sua tentativa de realizá-lo”. Héctor, doente há tempo, morreu pouco depois de ter sido a centelha de uma história imprevisível. Em pouco tempo, de fato, Aníbal, Horacio, Lola e outros amigos começaram a encontrar ex-montoneros, familiares de desaparecidos, junto com quem fez parte das tropas militares e paramilitares. “A exposição tornou-se um ponto de encontro. E nós, espectadores de algo imensamente maior do que os nossos planos”.

Algo misterioso. A ferida daqueles anos de ditadura está inteira no coração dos argentinos, e o ódio permanece sob a pele. Procurou-se sempre, de vários modos, inclusive da parte da Igreja, dar espaço para a reconciliação, mas, diz Horacio: “estamos aprendendo que o encontro não nasce da lógica do consenso”, da renúncia de uma parte de si para ser possível o encontro. “A unidade não é um acordo: este é político e é dos homens. A unidade é comunhão. E é de Deus”, acrescenta Carrón: “Precisamos do Outro”. Um “algo mais” que se introduziu graças à exposição. Também para os amigos argentinos não foi banal ficar de frente com os repressores. “Mas tudo muda ao se reconhecer a coisa misteriosa que somos, que cada um de nós é”, diz Horacio. “Reconhecer o mistério da capacidade que todos nós temos de fazer o mal. E de sermos incapazes de sair do nosso mal sem o outro”.
A caminhada continua. A maior editora da América Latina, a espanhola (e radical) Santillana, quis um encontro público sobre a exposição e cuidou das publicações didáticas, com o seu trabalho e os testemunhos do diálogo imprevisto que avança. A Conferência episcopal da Argentina quer a mostra no programa do Congresso eucarístico que acontecerá em outubro. “E em toda essa trajetória, a pergunta que surge sempre é: quem é Giussani?”, narra Aníbal.
“Nós somos filhos dele”, diz Carrón. “O que acontece na Argentina fala da nossa missão. A atitude crítica não é olhar o limite do que temos diante de nós, mas descobrir o seu valor. E o juízo não é alinhar-se, nem ficar parados, mas é uma presença original”. Feridas que carregam o peso de décadas só serão abraçadas num lugar livre, gerado por uma experiência que se vive. A verdade vivida, como dizia João Paulo II. “E a única origem do carisma é Jesus Cristo. Presente. Podemos passar a vida nos lamentando ou agradecendo, cada vez que algo é insuficiente. Ainda bem que é insuficiente! Ainda bem que Tu existes, Jesus. Se não, o que seria da vida?”.

A aventura. Ecoam as palavras de Dom Giussani citadas na apresentação da edição espanhola da sua biografia. Giussani vinha justamente até aqui, perto de São Paulo, enfrentando o cansaço da viagem mesmo para se encontrar com pouca gente. Mas isso nunca o deteve. “Só o Espírito Santo pode fazer no mundo a Igreja de Deus”, dizia. Estava seguro, porque na existência do Movimento “houve um sinal”, explicava: “Durante um certo encontro que fixou o olhar sobre o Brasil. Em seguida, seguimos com teimosia – isto é, com fidelidade – um sinal”. Falava de um jovem que foi à Itália para procurar o Movimento. Um nada, na imensidão da América do Sul. Mas para ele a pessoa era tudo. E acrescentava: “Essa é a longa viagem que precisamos realizar juntos, essa é a aventura real: a descoberta dessa Presença em nossas carnes e em nossos ossos, o mergulho do nosso ser nessa Presença – isto é, a Santidade, que é o verdadeiro empreendimento social”.

Veja nos Aprofundamentos:
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Vídeo com testemunhos dos voluntários da ARAL e Imagens do encontro.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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