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Passos N.179, Abril 2016

IGREJA

Algo que existe

por Luca Fiore

Um Papa e um Patriarca russo juntos. Algo que nunca aconteceu. Dom Paolo Pezzi, Arcebispo católico de Moscou, explica por que o abraço, em Cuba, entre Francisco e Kirill não abre só um capítulo novo na história. Mostra também o modo como o Papa vê o mundo, a política e a misericórdia

“Não quero dizer que isso teve um valor profético, mas aqueles ícones que mandei colocar no altar da Catedral... Eu quis que representassem São Pedro e Santo André. Que, aliás, eram irmãos. Um, padre da Igreja latina, em Roma, o primeiro Papa; o outro, chefe da Igreja de Constantinopla, que gerou a de Moscou, de modo que se tornou o patrono da Rússia”. Dom Paolo Pezzi, Arcebispo da diocese da Mãe de Deus em Moscou, relembra aquele gesto feito há quase um ano e pensa em tudo o que aconteceu em Havana no dia 12 de fevereiro: o abraço entre o Papa Francisco e o Patriarca Kirill. “É o abraço entre Pedro e André. Vendo aquelas imagens, tenho a impressão de que naquele abraço, naquele encontro, está tudo”.
Sonhado por João Paulo II, buscado por Bento XVI, evocado pelo Papa argentino desde a sua primeira aparição na sacada da Basílica de São Pedro. Tudo parecia bloqueado por vetos que pesavam há séculos e pelos enrijecimentos das últimas décadas: a Igreja greco-católica na Ucrânia, as dioceses católicas instituídas na Rússia depois da queda do regime soviético, e a consequente acusação de proselitismo. O próprio Dom Pezzi chegou à Rússia como missionário da Fraternidade São Carlos no início da década de 1990 e, por longo tempo, sentiu queimar na própria pele o gelo dos invernos siberianos e das relações com a Igreja ortodoxa.
Agora, no espaço do aeroporto José Martì eles se encontram, conversam longamente, assinam uma Declaração conjunta que deixará sua marca não só na relação entre as duas Igrejas irmãs, mas em temas como os cristãos perseguidos, o secularismo, a defesa da família e a rejeição ao relativismo. Aos gestos se juntam as palavras. São frases suavizadas pelos sherpa das diplomacias eclesiásticas, formulações novas de problemas antigos. Mas, ao final, na mente e no ânimo do Bispo católico em terra ortodoxa fica uma imagem: “O Papa que diz: Finalmente! Somos irmãos!”. E o Patriarca que responde: “Agora tudo será mais fácil. Todas as vezes que eu olhar para os ícones na Catedral de Moscou, não poderei deixar de voltar com o pensamento àquele abraço”.

O que o senhor sentiu ao assistir, de Moscou, ao abraço de Havana?
Gratidão. Quando fiquei sabendo o que seria feito e quando vi o que aconteceu, de fato me senti pleno de gratidão. Isso é o mais importante para mim: o encontro aconteceu. Na vigília de oração, em nossa Catedral, na véspera do evento, eu disse que, para nós cristãos, encontrar-se tem um valor forte. É através de um encontro que o cristianismo se comunica. O encontro se dá entre seres humanos vivos. Se isso foi possível, então ainda há esperança e as perspectivas se abrem.

Qual é a sua avaliação da Declaração conjunta?
Há aspectos novos e isso, julgo eu, é algo positivo. O documento diz muitas coisas e, talvez, se poderiam fazer especulações sobre algumas expressões utilizadas na versão russa comparada com a versão italiana. Mas não sou um exegeta profissional. Em todo caso, vejo dois aspectos importantes. O primeiro é o que enfatiza a necessidade de um testemunho comum. A missão das Igrejas, que no fundo é a missão de cada cristão, é testemunhar Cristo. Se for possível fazê-lo juntos, a força do testemunho é infinitamente maior. Se acrescentarmos que o conteúdo de tal testemunho é o anúncio da misericórdia, do perdão, de um abraço – o abraço que vimos em Cuba – essa dinâmica adquire mais força ainda.

E o segundo aspecto?
Não sei quantos estarão de acordo com isso, que se refere a uma questão específica e delicada como a da Ucrânia. Mas acho que é importante que no documento se fale dos greco-católicos como de uma Igreja. Significa reconhecer, antes de tudo, que também através dessa realidade católica passa um bem. E que o outro pode ser considerado não tanto um adversário político ou religioso, mas alguém com quem se pode conversar. Com quem se pode encontrar. Provavelmente não seremos muitos a ler assim essa passagem, mas para mim esse aspecto está presente.

Qual é a relação entre testemunho e busca da unidade?
Eu acho que quando se coloca a prioridade do testemunho, parte-se já de algo que está unido. Por outro lado, não se poderia falar de testemunho feito juntos. O que une pode ser muito frágil. Na declaração fala-se de “tradição comum”, que também tem muitos buracos, muitas feridas. Mas me parece que, antes de tudo, é o reconhecimento de algo que existe, não de algo que precisamos acrescentar ou reparar. Haverá também isso. Mas, antes de tudo, é a afirmação de algo que existe. Acho que se partirmos do tesouro que já temos, da experiência que temos de Cristo, então podemos também dar-lhe uma comunicação, isto é, um testemunho.

Francisco procurou muito enfaticamente esse encontro, já desejado pelos seus predecessores, com um impulso que a muitos parece não se dar conta dos nós que estão sem solução há séculos.
Acredito que este Papa e os seus modos fazem parte das “surpresas de Deus”, de que o próprio Francisco fala. Ele sempre nos dribla. Precisamos nos acostumar a nos deixar surpreender por Deus. Para mim, justamente o modo escolhido pelo Papa é o mais eficaz. Dizer “se você me chamar, eu vou”; o fato de não colocar pré-condições ao encontro; o dizer diante de todos “Somos irmãos”, “temos o mesmo credo”... Essas palavras expressam uma perspectiva dentro da qual os problemas, talvez, segundo os tempos de Deus e não os nossos, poderão ser resolvidos. Uma coisa é certa: fora dessa perspectiva, os nós não serão dissolvidos jamais. Nesse sentido, acho que o que aconteceu é muito interessante. Não nos esqueçamos de que o Papa, logo depois da assinatura, disse que “a unidade se faz caminhando”. Isso não significa que as declarações comuns não têm valor, mas quer dizer inserir-se na perspectiva do encontro. É preciso olhar nos olhos uns dos outros. Não considerar o outro como adversário, mas possível companheiro de caminhada.

Alguém falou em “diplomacia da misericórdia”: uma atitude não política que tem efeitos “políticos”, porque desata nós e ativa novos processos.
Talvez eu esteja ousando um pouco: essa é exatamente a missão do cristianismo. Jesus Cristo não pensou em resolver os problemas políticos, mas, ao se colocar, deu também uma perspectiva para enfrentá-los e resolvê-los. A Igreja, ao longo da história, fez isso. A sua missão é sugerir, dar indicações e instrumentos. Colocar gestos que facilitem também as soluções políticas. E os seus interlocutores são os homens de boa vontade, entre os quais não deixam de estar incluídos os que têm responsabilidade política e poder. Francisco vai nessa direção. Claro, em alguns momentos faz isso de um modo muito radical. Mas isso está na natureza do cristianismo e da Igreja. Em alguns casos temos visto efeitos políticos quase que imediatos. Pensamos no que foi feito para as relações entre Estados Unidos e Cuba, na corajosa visita à África, na vigília de orações pela Síria.

O encontro de Cuba mudará o seu trabalho de todos os dias?
Alguma coisa já mudou: o modo como eu me coloco. Sobretudo depois que me tornei Bispo, me dei conta de uma coisa: o espaço entre o “pessoal” e o serviço à Igreja quase se anulou. Assim, hoje, ao me levantar de manhã, sou cada vez mais grato. Quando retomo meu trabalho, sou mais provocado a olhar, a perguntar, a buscar como Deus fará para me surpreender. Estou mais desejoso de me converter. Essa é a mudança que a perspectiva que levou ao abraço entre Francisco e Kirill introduziu em mim.

E nas pessoas à sua volta, no mundo ortodoxo?
Pelo lado positivo, uma coisa que notei e me impressionou é um menor medo de nos encontrarmos. Depois do abraço de Cuba, vi em alguns ortodoxos um temor menor, por exemplo, de vir ver a Catedral católica em Moscou. Claro, pode também ser um efeito emocional, parcial. Como se dissessem: “Houve aquele encontro, vamos ver quem são esses católicos na Rússia”. Em todo caso, leio positivamente esses efeitos, que coloco na mesma perspectiva da lógica do encontro.


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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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