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Passos N.180, Maio 2016

DESTAQUE

O amor sabe encontrar o caminho

por Cardeal Christoph Schönborn

As novidades no discurso eclesial. A confiança na nostalgia dos homens. Até o conceito-chave de "discernimento": como se forma a consciência? Trechos da apresentação do Arcebispo de Viena, que o Papa sugeriu ter presente ao ler a Exortação

Os documentos da Igreja normalmente não pertencem a um gênero literário dos mais acessíveis. Mas esse documento do Papa é legível. E quem não se deixar assustar pelo número de páginas, encontrará alegria na concretude e no realismo desse texto. Na Amoris Laetitia (AL) Papa Francisco fala das famílias com uma clareza que dificilmente se encontra nos documentos magisteriais da Igreja.
Antes de entrar no texto gostaria de dizer, a título muito pessoal, por que eu o li com alegria, com gratidão e sempre com grande emoção. No discurso eclesial sobre o matrimônio e sobre a família normalmente há uma tendência, talvez inconsciente, de dividir essas duas realidades da vida em duas categorias. De um lado, os casamentos e as famílias que são “normais”, que correspondem à regra, onde tudo “vai bem”, tudo está “em ordem” e, do outro, as situações “irregulares” que representam um problema. O próprio termo “irregular” sugere a possibilidade de se fazer tal distinção com muita clareza.
Então, quem se encontra na categoria dos “irregulares”, precisa conviver com o fato de que os “regulares” estão do outro lado. Sei, pessoalmente, como isso é difícil para aqueles que provêm de uma família fragmentada, por causa da situação da minha própria família. O discurso da Igreja, aqui, pode ferir, pode dar a sensação de exclusão.
A Exortação do Papa Francisco tem como guia a seguinte frase: “Trata-se de integrar a todos” (AL 297) porque se trata de uma compreensão fundamental do Evangelho: todos nós precisamos de misericórdia! “Quem de vós não tiver pecado, atire a primeira pedra” (Jo 8,7). Todos nós, independente do casamento e da situação familiar em que nos encontramos, estamos em caminho. Mesmo um casamento em que tudo “vai bem”, está em caminho. Precisa crescer, aprender, superar novas etapas. Conhece o pecado e o erro, precisa de reconciliação e de novo início, e isso, mesmo em idade avançada (cf. AL 297).
O Papa Francisco conseguiu falar de todas as situações sem catalogar, sem categorizar, com aquele olhar de fundamental benevolência que tem algo a ver com o coração de Deus, com os olhos de Jesus que não excluem ninguém (cf. AL 297), que acolhe todos e a todos concede a “alegria do Evangelho”. Por isso a leitura de Amoris Laetitia é tão confortante. Ninguém deve sentir-se condenado, ninguém é desprezado. Nesse clima de acolhimento, o discurso da visão cristã de matrimônio e família torna-se convite, encorajamento, alegria do amor no qual podemos acreditar e que não exclui ninguém, verdadeiramente e sinceramente ninguém. Para mim, Amoris Laetitia é, por isso, sobretudo e em primeiro lugar, um “evento linguístico”, assim como o é Evangelii Gaudium (EG). Algo mudou no discurso eclesial. Essa mudança de linguagem já era perceptível no decorrer do encontro sinodal. Entre os dois Sínodos, de outubro de 2014 e outubro de 2015, podemos reconhecer claramente como o tom tornou-se mais rico em estima, como foram simplesmente acolhidas as diferentes situações da vida, sem julgar ou condená-las de imediato. Em Amoris Laetitia este tornou-se o tom linguístico prevalente. Por trás disso não há, obviamente, apenas uma opção linguística, mas um profundo respeito diante de cada homem que nunca é, em primeiro lugar, um “caso problemático” dentro de uma “categoria”, mas uma pessoa inconfundível, com sua história e o seu percurso com e em direção a Deus. Na Evangelii Gaudium, Papa Francisco diz que deveríamos descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (EG 169). Essa postura fundamental percorre toda a Exortação. E esse é também o motivo mais profundo para as outras duas palavras-chave: discernir e acompanhar. Tais palavras não valem apenas para as “chamadas situações irregulares” (Papa Francisco sublinha “chamadas”!), mas são válidas para todos os homens, para todo casamento, para toda família. Todos, de fato, estão em caminho e todos precisam de “discernimento” e de “acompanhamento”.
Minha grande alegria por este documento está no fato de que ele, de modo coerente, vai além da artificial, exterior, clara divisão entre “regular” e “irregular” e coloca todos sob a instância comum do Evangelho, segundo as palavras de São Paulo: “Deus encerrou a todos na desobediência para usar com todos de misericórdia!” (Rom 11, 32).

Esse princípio contínuo de “inclusão” obviamente preocupa alguns. Não se está falando, aqui, em favor do relativismo? A tão evocada misericórdia não se torna permissividade? Perdeu-se a clareza dos limites que não devem ser ultrapassados, das situações que objetivamente são definidas como irregulares, pecaminosas? (...)
Para esclarecer isso, Papa Francisco não deixa nenhuma dúvida sobre suas intenções e sobre a nossa tarefa: “Como cristãos, não podemos renunciar em propor o matrimônio com o objetivo de não contradizer a sensibilidade atual, por estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade diante da degradação moral e humana. Estaríamos privando o mundo dos valores que podemos e devemos oferecer. Certamente não faz sentido parar em uma denúncia retórica dos males atuais, como se com isso pudéssemos mudar algo. Sequer é útil pretender impor normas com a força da autoridade. É-nos pedido um esforço mais responsável e generoso, que consiste em apresentar as razões e as motivações para optar em favor do matrimônio e da família, de modo que as pessoas estejam mais dispostas a responder à graça que Deus lhes oferece” (AL 35).
Papa Francisco está convencido de que a visão cristã do matrimônio e da família tem, ainda hoje, uma inalterada força de atração. Mas ele exige “uma salutar reação de autocrítica”: “Precisamos ser humildes e realistas para reconhecer que, às vezes, nosso modo de apresentar as convicções cristãs e o modo de tratar as pessoas ajudou a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos” (AL 36). “Apresentamos um ideal teológico do matrimônio muito abstrato, quase artificialmente construído, distante da situação concreta e das efetivas possibilidades das famílias assim como são. Essa idealização excessiva, sobretudo quando não revelamos a confiança na graça, não fez com que o matrimônio se tornasse mais desejável e atraente, mas o contrário (AL 36). (...)
Papa Francisco fala a partir de uma profunda confiança nos corações e na nostalgia dos homens. Suas exposições sobre educação exprimem muito bem isso. Percebe-se aqui a grande tradição jesuíta da educação à responsabilidade pessoal. Ele fala de dois perigos antagônicos: o “laissez-faire” e a obsessão de querer controlar e dominar tudo. De um lado, é verdade que “a família não pode renunciar a ser lugar de apoio, acompanhamento, guia... Há sempre a necessidade de vigilância. O abandono nunca é sadio” (AL 260).
Mas a vigilância também pode ser tornar exagerada: “A obsessão não é educativa, e
não é possível ter o controle de todas as situações pelas quais um filho poderá passar. (...) Se um pai está obcecado em saber onde está o filho e controlar todos os seus movimentos, estará apenas tentando dominar o seu espaço. E, dessa forma, não o educará, não o fortalecerá, não o preparará para enfrentar os desafios. O que interessa, principalmente, é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia” (AL 261). Acho que é muito esclarecedor fazer uma relação entre esse pensamento sobre educação e aqueles que dizem respeito à práxis pastoral da Igreja. De fato, exatamente nesse sentido, Papa Francisco fala com frequência da confiança na consciência dos fiéis: “Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL 37). A grande questão, obviamente, é esta: como se forma a consciência? Como chegar àquilo que é o conceito-chave de todo esse grande documento, a chave para compreender corretamente as intenções do Papa Francisco: “o discernimento pessoal”, sobretudo em situações difíceis, complexas? O “discernimento” é o conceito central dos exercícios inacianos que, de fato, devem ajudar a discernir a vontade de Deus nas situações concretas da vida. É o “discernimento” que faz da pessoa uma personalidade madura, e o caminho cristão quer ajudar a alcançar essa maturidade pessoal: não formar autônomos condicionados pelas coisas externas, teleguiados, mas pessoas amadurecidas na amizade com Cristo. Somente onde esse “discernimento” pessoal amadureceu é possível também chegar a um “discernimento pastoral”, o qual é importante sobretudo “diante de situações que não respondem plenamente ao que o Senhor nos propõe” (AL 6). O oitavo capítulo fala sobre esse “discernimento pastoral”, um capítulo de grande interesse para a opinião pública eclesial, mas também para os meios de comunicação.
Todavia, devo lembrar que o Papa Francisco definiu como centrais os capítulos 4 e 5 (“os dois capítulos centrais”), não por estarem no meio do documento, por causa de seu conteúdo: “Não poderemos encorajar um caminho de fidelidade e doação recíproca, se não estimularmos o crescimento, a consolidação e o aprofundamento do amor conjugal e familiar” (AL 89). Esses dois capítulos centrais de Amoris Laetitia provavelmente serão pulados por muitos para chegar logo às chamadas “batatas quentes”, aos pontos críticos. Como experiente pedagogo, Papa Francisco sabe bem que nada atrai e motiva tão fortemente como a experiência positiva do amor. “Falar do amor” (AL 89) – isso dá claramente uma grande alegria a Papa Francisco, e ele fala do amor com grande vivacidade, compreensão e empatia. O quarto capítulo é um amplo comentário sobre o “Hino à Caridade” do décimo terceiro capítulo da Primeira Carta aos Coríntios. Recomendo a todos a meditação dessas páginas. Elas encorajam a acreditar no amor (cf. 1 Jo 4, 16) e a confiar na sua força. É aqui que cresce, outra palavra-chave de Amoris Laetitia, que tem sua “sede principal”: em nenhum outro lugar, como no amor, se manifesta tão claramente que se trata de um processo dinâmico no qual o amor pode crescer, mas também pode arrefecer. Posso apenas convidá-los a ler e saborear esse delicioso capítulo. Quero chamar a atenção para um aspecto: Papa Francisco fala, aqui, com uma clareza que é rara, do papel que as passiones, as paixões, as emoções, o eros, a sexualidade têm na vida matrimonial e familiar. Não é por acaso que, aqui, Papa Francisco se refira de modo particular a São Tomas de Aquino, que atribui às paixões um papel tão importante, enquanto a moral moderna, normalmente puritana, as despreciou ou ignorou.
É aqui que a Exortação do Papa encontra sua mais plena expressão: Amoris Laetitia! Aqui se entende como é possível conseguir “descobrir o valor e a riqueza do matrimônio” (AL 205). Mas, aqui, também se torna dolorosamente visível quanto doem as feridas de amor, como são amargas as experiências de fracasso dos relacionamentos. Por isso, não é de admirar que sobretudo o oitavo capítulo seja o que atraia mais atenção e interesse. De fato, a questão de como a Igreja trata essas feridas, como trata o fracasso do amor, tornou-se para muitos a questão-teste para entender se a Igreja é realmente o lugar onde se pode experimentar a misericórdia de Deus.

Esse capítulo deve muito ao intenso trabalho dos dois Sínodos, às amplas discussões nos meios de comunicação e na comunidade eclesial. Aqui se manifesta a fecundidade do modo de proceder do Papa Francisco. Ele desejava expressamente uma discussão aberta sobre o acompanhamento pastoral de situações complexas e fundou-se amplamente nos textos que os dois Sínodos lhe apresentaram para mostrar como é possível “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade” (AL 291).
Papa Francisco explicitamente faz suas as declarações que ambos os Sínodos lhe apresentaram: “Os Padres sinodais chegaram a um consenso geral que eu sustento” (AL 297). Em relação aos divorciados que se casaram novamente no rito civil, ele afirma: “Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que afirmaram que (...) a lógica da integração é a chave do seu acompanhamento pastoral (...). Não só não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e amadurecer como membros vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe...” (AL 299).
Mas o que isso significa, concretamente? Muitos se colocam, com razão, essa pergunta. As respostas decisivas se encontram no tópico 300 de Amoris Laetitia. Essas respostas ainda oferecem, certamente, matéria para discussões posteriores. Mas são também um importante esclarecimento e uma indicação do caminho a seguir: “Se se tiver em conta a variedade inumerável de situações concretas (...) é compreensível que não se devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canônico, aplicável a todos os casos”. Muitos esperavam uma tal norma. Ficarão desiludidos. O que é possível? O Papa o diz claramente: “É possível apenas um novo encorajamento a um discernimento responsável pessoal e pastoral dos casos particulares”. (...)
Naturalmente, nasce a pergunta: e o que o Papa diz sobre o acesso aos sacramentos por pessoas que vivem em situação “irregular”? Já o Papa Bento tinha dito que não existem “receitas simples” (AL 298, nota 333). E o Papa Francisco volta a lembrar da necessidade de discernir bem as situações, na linha da Familiaris Consortio (84), de São João Paulo II (AL 298). “O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento através dos limites. Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus (AL 305). E o Papa Francisco nos lembra de uma frase importante que escreveu na Evangelii Gaudium 44: “Um pequeno passo, dentro das grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades” (AL 304). No sentido dessa “via caritatis” (AL 306) o Papa afirma, de maneira humilde e simples, em uma nota (351), que é possível também oferecer a ajuda dos sacramentos “em certos casos”. Mas ele não nos oferece um estudo de caso, ou receitas, simplesmente nos lembra duas de suas frases conhecidas: “Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor” e “a Eucaristia não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos” (EG 44).
Não será um desafio excessivo para os pastores, os guias espirituais, as comunidades, se o “discernimento das situações” não for regulado de maneira mais precisa? Papa Francisco conhece essa preocupação: “Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma” (AL 308). E ele responde, dizendo: “Pomos tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e real significado, e esta é a pior maneira de reduzir o Evangelho” (AL 311).
Papa Francisco confia na “alegria do amor”. O amor sabe encontrar o caminho. É a bússola que nos indica a estrada. É o objetivo e o próprio caminho, porque Deus é amor e porque o amor vem de Deus. Nada é tão exigente quanto o amor. Ele não é objeto de barganha. Por isso, ninguém deve ter receio de que o Papa Francisco, com Amoris Laetitia, nos convide a um caminho muito fácil. O caminho não é fácil, mas é pleno de alegria!

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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