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Passos N.181, Junho 2016

VIDA DE CL - CARITATIVA

“Não dei, recebi”

por Paola Bergamini

Iniciada com Dom Giussani, na década de 1950, as experiências de trabalho social desenvolvidas por Comunhão e Libertação, denominadas CARITATIVA, envolvem milhares de pessoas no mundo. No Brasil, na França ou no Cazaquistão, em bairros pobres ou nas penitenciárias, gestos para aprender a “lei da vida”. E como é concreta a ternura de Deus

“Entre o final de 1957 e o início de 1958, meninos e meninas de Gioventù Studentesca, de Milão, começam a ir todas as semanas à Bassa, uma vasta área rural na região sul de Milão. Um gesto imponente que todo domingo envolve centenas de estudantes”. Assim escreve Alberto Savorana na biografia do fundados de CL (Vita di don Giussani, Milão 2014), contando sobre os primeiros tempos do Movimento, chamado de GS (Gioventù Studentesca). Uma foto em preto e branco tirada naqueles anos mostra os jovens jogando com as crianças do local. O clique paralisou os rostos contentes de uns e de outros. Não resolviam os mil problemas daqueles meninos: compartilhavam a vida. Dom Giussani dizia: “A exigência de nos interessarmos pelos outros é tão original, tão natural que está em nós antes mesmo de termos consciência dela e a chamamos lei da existência. Viver é compartilhar. A lei da vida é a caridade”. Esta é a origem da caritativa: um gesto que abre o coração e educa a viver de modo pleno. “Desde aquela época milhares de pessoas, na Itália e no mundo, são educadas a perceber que a lei da existência é a gratuidade, à imitação de Cristo”, prossegue a biografia de Dom Giussani. Hoje, quando vemos as imagens provenientes de todos os cantos do planeta, percebemos a mesma exigência de partilha e a mesma letícia. Não são mais os quintais de terra batida, mas catequeses, abrigos para idosos, prisões, reforço escolar, sopa para os pobres, e muito mais. Mas, por que, depois de mais de cinquenta anos, este gesto ainda é fundamental? Melhor: o que provoca naqueles que o fazem, a ponto de “não poderem eliminar esse gesto” da vida? E o que esse fato nos ensina no Ano da Misericórdia?
Falaremos sobre isso através de algumas experiências simples que, aos dezesseis, aos vinte ou aos sessenta anos tornam concreta a ternura de Deus. É o rosto da Misericórdia que se mostra à nossa vida, que “nos é dada conhecer como proximidade e ternura, mas, em virtude disso, também como compaixão e partilha, como consolação e perdão. É algo que faz o coração arder e o desafia a amar”, como disse recentemente o próprio Papa Francisco, na Vigília da Divina Misericórdia.

Céu estrelado. Sete da noite, Praça da Liberdade, em Florença. Michela se aproxima de um morador de rua que tenta se proteger do frio intenso. Pergunta: “Como você está?”. E o homem, tossindo muito, responde: “Muito bem, ainda mais quando se pode ver um céu assim!”. Michela levanta os olhos: o céu está cheio de estrelas. “Em meio àquela circunstância degradante ele me diz para olhar para uma coisa bonita que eu nem tinha percebido”. Michela cursa o terceiro ano de Enfermagem e, dois sábados por mês, trabalha junto com quinze amigos universitários na obra da Comunidade Santo Egídio que ajuda moradores de rua: preparam pequenas sacolas com a refeição – frango, macarrão e uma garrafa de água – e depois, em dois turnos, distribuem aos moradores de rua que se “alojam” em alguns lugares fixos, ou pelas ruas e praças da cidade. Francesca conta: “Sempre têm muitas perguntas. Querem saber quem você é, o que faz, são curiosos. Tem-se a impressão de que, mais do que a comida, o que interessa a eles é você. Os amigos da comunidade sempre nos dizem para guardar seus nomes porque para essas pessoas isso é muito importante. Neles, vemos tudo: a felicidade por uma coisa muito pequena e o desespero e o choro por causa um papelão roubado, que seria útil para a noite. Vemos as mesmas emoções que nós sentimos, por coisas mais banais”. Júlio, na primeira vez em que foi, descascou seis quilos de cebola. “Fazemos aquilo que nos pedem”. Certa noite conheceu um rapaz. “Ele estava tão feliz que eu, não entendendo, perguntei-lhe por quê. Ele disse: ‘Todos os dias preciso enfrentar o frio, a fome, a violência e, quando adormeço, espero poder ver o dia seguinte. Depois, acordo e vejo que estou vivo’. Ele usava uma blusa de lã leve e eu estava bem aquecido em meu casaco. Pensei: quantas vezes acordo com essa promessa? Você começa a não considerar mais nada óbvio. Torna-se grato por aquilo que você é. Aquela noite mudou até o modo de me despedir da minha namorada, o habitual ‘até amanhã’”.

“Quem obriga vocês a fazerem isso?” Do outro lado do mundo, em Hiroshima (Japão), Sako, 58 anos, toda quarta-feira à noite, junto com um grupo de pessoas, leva pão e sopa aos moradores de rua. Tudo começou vinte anos atrás, a partir da proposta feita por um padre da cidade. Ela não tinha nenhuma intenção de aderir à proposta, mas padre Ambrogio Pisoni, um amigo italiano, naqueles dias lhe disse: “A caritativa é um gesto que ensina a gratuidade. Você faz?”. Aquela frase despertou seu interesse. “Comecei a ir, e não parei mais”. É difícil entrar em relacionamento com essas pessoas, às vezes são necessários anos para obter respostas monossilábicas a simples perguntas do tipo: “Como vai?”. Não buscam o relacionamento. E o que faz com que você volte toda quarta-feira? “Permanecer fiel a esse gesto, que pode parecer estéril enquanto retorno humano, me lembra sempre o significado pelo qual o faço: uma gratuidade pura. É isso que eu aprendo toda quarta-feira”.
“Quem obriga vocês a fazerem isso? Vão se divertir, que é melhor”, foi a frase que Nicola ouviu de um guarda enquanto atravessava o portão da penitenciária de Ferrara. Aos sábados, quinzenalmente, a convite do capelão, junto com outros amigos universitários, ensina as músicas para a missa dominical. Os detentos são dez, muitos deles estrangeiros. Entre o ensaio de uma música e outra, conversam, falam de si, perguntam. Na primeira vez, Nicola teve um pouco de medo. “Depois, você percebe que não parecem criminosos, que são homens como você, mas eu recebi uma graça pela qual não me perdi”. Durante dois anos fiz a Via Sacra com os colaboradores da justiça, detentos que vivem em uma seção separada e nunca entram em contato com os outros presos. No fim, um deles, agradecendo, disse: “Alguém que se lembra de nós”. Marco pensou: “Eu também tenho necessidade de ser amado assim gratuitamente, de ter alguém que se lembre de mim”. Para aprender os cantos, os detentos dão tudo de si, do modo como conseguem. Para Vincenzo, formado em piano pelo Conservatório, a música é estudo, busca de perfeição, “mas, depois, estando com eles, percebi que isso não basta. Ensinaram-me a ir ao essencial da música. Com seus ‘gritos’ derrubaram meus castelos tecnicamente perfeitos. No fim, quem ganhou mais fui eu”.

Um milhão de dólares. Dentro da prisão o valor do tempo muda radicalmente. É algo que não passa e ao mesmo tempo é vazio de conteúdo. “Para quem quiser, numa mesa no fundo da sala há exemplares de Passos”. Quando a chegada de Silvio é anunciada, os detentos aplaudem e alguns dizem em voz alta: “Viva!”. Quase uma ovação. Há três anos, uma vez por mês um pequeno grupo da comunidade ajuda preparando as músicas para a missa na prisão de Fleury-Mérogis, periferia de Paris. O tempo para estar com os detentos é de apenas alguns minutos antes e depois da celebração. Alguns deles aguardam o julgamento e não é certo se estarão ali no mês seguinte. De repente, surge uma pergunta: em tão pouco tempo, como podemos “ser nós mesmos”? Ou seja, como compartilhar a vida, a nossa e a deles, e chegar ao essencial, àquilo pelo qual mesmo em uma prisão vale a pena se levantar de manhã?
A resposta está nas mãos deles: Passos. Todos os meses levam exemplares da revista, também de anos anteriores, em cinco idiomas. A partir de um título ou uma capa que toca os detentos, aquele breve tempo se dilata enchendo-se de perguntas, de conteúdo. Silvio conta: “Pensar que naquele lugar se possa ler as cartas, o editorial, toda a riqueza de vida que existe ali, muda, em primeiro lugar, a mim. Uma ocasião para mostrar que o desejo de infinito não é ‘enclausurado’ pelas grades da prisão”. A tal ponto que alguns detentos pedem: “Posso pegar mais alguns exemplares? Quero dar ao meu companheiro de cela que não pôde vir à missa”.

Algo para si. O trabalho, as muitas coisas a serem organizadas, os “compromissos importantes”: para André, responsável pela Fundação AVSI em Nairóbi, no Quênia, parecia não haver tempo para a caritativa. Mas, “como todos a faziam”, num determinado momento, sentiu-se quase obrigado e se juntou aos amigos que ajudavam as freiras de Madre Teresa de Calcutá em um Centro para deficientes. Durante algum tempo limitou-se a descascar batatas e fazer a limpeza. Até que, um dia, parou para olhar uma Irmã que, com infinita paciência, dava comida a um rapaz com pernas e braços paralisados. Não conseguiu ficar parado nem ir embora: aproximou-se, pegou o prato e começou a lhe dar comida. A Irmã sussurra: “Ele é cego: toque-o, assim vai perceber a sua presença”. Passou, então, a mão delicadamente em seu rosto. “Naquele momento, pensei que ele estava ali para mim, para me lembrar de Jesus”. Naquele dia voltou para casa com uma letícia nova, nunca experimentada. Agora entende porque os amigos da comunidade, que não têm nada, um sábado por mês levantam-se às cinco da manhã e viajam durante duas horas para estar com aquelas pessoas. O escritor Bruce Chatwin, vendo Madre Teresa beijar um leproso, disse: “Não faria isso nem por um milhão de dólares”. E ela respondeu: “Por um milhão de dólares, eu também não”. Somente por Jesus. A Bassa do fim dos anos cinquenta não desapareceu, vive hoje nos bairros pobres das cidades onde os jovens, como naquela época, arriscam tudo.
Isso acontece, por exemplo, em Cagliari, onde todos os domingos, às 7h45, Mariella chama os jovens: “Estão todos aqui? Vamos, que o ônibus vai partir”. Às 8h20 estão em Sant’Elia, bairro pobre da cidade. Desde janeiro, os colegiais ajudam duas freiras de Madre Teresa com as crianças da região. “Aí estão eles, chegaram”, grita um menino assim que os vê saindo do ônibus. Estavam esperando por eles. Alex vai buscar Francesco que sofre de autismo, mas fica à vontade com o novo amigo. Maria, assim que vê Fatima na cadeira de rodas, se aproxima e lhe diz: “Hoje estou com você, eu empurro a cadeira”. Os outros se espalham pelas ruas e batem às portas para chamar as crianças.
Todos os domingos o número de crianças que se une ao grupo aumenta e até algumas mães começam a se envolver. Cantando, atravessam o bairro e chegam à paróquia. Giuseppe pega as folhas onde estão anotados os jogos que programaram durante a semana: “Agora, vamos nos dividir em duas equipes”. Brincam sem parar até a hora da missa. Depois, todos vão para a igreja, a qual os paroquianos nunca viram tão cheia. Na hora do almoço estão de volta em casa. Ao se despedir, um deles diz a Mariella: “Estou feliz! Sou mais eu mesmo, não sei como explicar. Não dei nada, aprendi algo para mim”.

Radiografia. Algo que você recebe gratuitamente e não pode manter para si. Em uma paróquia de Reggio Calabria, os jovens do CLU – universitários de CL – há cinco anos ensinam o catecismo às crianças do ensino fundamental e do ensino médio. E aos domingos de manhã animam a paróquia com jogos, “assim, depois, todos vão à missa”. Foi padre Pietro Sergi que fez a proposta. Lorena era uma aluna do ensino médio quando, exatamente através de padre Pietro, conheceu o Movimento. Conta: “Dar aula de catecismo foi como retribuir o abraço, o olhar que eu mesma recebi e que não posso manter para mim”. Descoberta fascinante, a ponto de fazê-la dizer: “É isso que quero fazer na vida”. Assim, engavetou o diploma de Arquitetura e matriculou-se em Pedagogia.
As crianças fazem uma radiografia daquilo que você diz e do seu modo de estar com eles. “Se percebem que está apenas fazendo um discurso, vão embora. Você deve se envolver. E esse é sempre um belo desafio”, explica Martina. Criatividade não falta. Durante um encontro, Marco mostra dois vídeos: um sobre a criação e outro com as crianças brincando. Quando as luzes se acendem, Francesca, de 11 anos, uma menina que nunca fica parada, se aproxima de Martina e diz: “Entendi que nós somos a maior maravilha do mundo”. Maravilha contagiosa, que passa de pessoa a pessoa. Porque, responder à necessidade do outro, gera sintonias inesperadas.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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