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Passos N.183, Agosto 2016

MAGISTÉRIO

“Sujar as mãos como Jesus”

por Andrea Tornielli

O jornalista Andrea Tornielli lê as palavras de Papa Francisco na abertura do congresso da diocese de Roma, em junho passado

O Papa Francisco, ao abrir, na noite de 16 de junho, em São João de Latrão, o congresso da diocese de Roma, numa passagem do seu discurso apelou para que “não se atuasse uma pastoral de guetos e para gente que vive em guetos”, lembrando que o realismo evangélico “não significa deixar de ser claro na doutrina”. “Não se trata – acrescentou – de não propor o ideal evangélico; ao contrário, nos convida a vivê-lo no interior da história, com tudo o que isso comporta”.
A esse propósito, Bergoglio falou de um antigo capitel medieval que num lado representa Judas e no outro Jesus carregando o traidor, já morto, nas costas: “Padre Primo Mazzolari fez um belo sermão sobre isso, foi um padre que compreendeu bem essa complexidade da lógica do Evangelho: sujar as mãos como Jesus, que se sujava quando andava no meio do povo e tomava as pessoas como elas eram, não como deveriam ser”.
Francisco referia-se a um capitel na basílica de Vèzelay, na Borgonha, dedicada a Santa Maria Madalena, que surge no caminho que leva a Santiago de Compostela. Uma igreja com arquitetura românica perfeita, bem conservada, meta de peregrinações na Idade Média, com milhares de pessoas que vinham invocar misericórdia, contemplando o exemplo da mulher que encontrou a profunda compaixão de Cristo e foi a primeira testemunha da Sua ressurreição. No alto, no primeiro capitel à direita de quem entra há uma escultura pouco conhecida, até pela altura em que está colocada, cerca de vinte metros do solo. Uma escultura que, vista de perto, impressiona e desconcerta. De um lado vê-se Judas, enforcado, com a língua de fora, rodeado por demônios. Até aí, nada de novo: existem muitas representações do dramático e violento fim do apóstolo suicida que traiu Jesus, vendendo-o por trinta denários. A surpresa está no outro lado do capitel. Vê-se um homem carregando nos ombros o corpo de Judas. Esse homem tem uma estranha careta no rosto: metade da boca aparece carrancuda; a outra metade, sorridente. O homem veste uma túnica curta, é um pastor. É o Bom Pastor carregando nos ombros a ovelha perdida, a centésima ovelha que ele foi procurar deixando para trás as outras 99. O artista que esculpiu a cena e o monge que a inspirou quiseram representar algo extremo, levantando a hipótese de que até para Judas houve salvação.

Ao comentar essa imagem, o Papa Francisco citou uma homilia que o padre Primo Mazzolari – pároco de Bozzolo, precursor do Concílio Vaticano II – fez na Quinta-feira Santa de 1958, dedicada justamente a “Judas, o traidor”. Dizia o sacerdote: “Pobre Judas, o que terá acontecido em sua alma eu não sei. É um dos personagens mais misteriosos que encontramos na Paixão do Senhor. Não tentarei nem sequer explicá-lo; contento-me de lhes pedir um pouco de piedade pelo nosso pobre irmão Judas. Não se envergonhem de assumir essa irmandade. Eu não me envergonho, porque sei quantas vezes traí o Senhor; e creio que nenhum de vocês deva envergonhar-se dele. E chamando-o de irmão, nós adotamos a linguagem do Senhor. Quando recebeu o beijo da traição, no Getsêmani, o Senhor lhe respondeu com aquelas palavras que não devemos esquecer: Amigo, com um beijo você trai o Filho do homem!”.
“Amigo! Essa palavra – continua Mazzolari – que expressa a infinita caridade do Senhor, nos faz também compreender por que eu o chamo, neste momento, de irmão. O Senhor lhes dissera no Cenáculo que não os chamaria de servos, mas de amigos. Os Apóstolos se tornaram amigos do Senhor: bons ou não, generosos ou não, fiéis ou não, continuam sendo sempre amigos. Nós podemos trair a amizade de Cristo, Cristo jamais nos trairá, a nós seus amigos; inclusive quando não merecemos, mesmo quando nos revoltamos contra Ele, ainda quando O negamos, diante dos olhos d’Ele e em Seu coração nós continuamos sendo os amigos do Senhor. Judas é um amigo do Senhor mesmo no momento em que, beijando-o, consumava a traição ao Mestre”.

Depois de ter recordado o fim desesperado do apóstolo traidor, Mazzolari concluía: “Perdoem-me se, nesta noite que deveria ser de intimidade, eu lhes trouxe considerações tão dolorosas, mas eu amo também Judas, é o meu irmão Judas. Rezarei por ele também nesta noite, porque eu não julgo, eu não condeno; julgarei a mim mesmo, eu deveria me condenar. Eu não posso deixar de pensar que também para Judas a misericórdia de Deus, esse abraço de caridade, aquela palavra amigo, que lhe disse o Senhor enquanto ele O beijava para traí-Lo, eu não posso pensar que essa palavra não penetrou em seu pobre coração. E, talvez, no último momento, lembrando aquela palavra e a aceitação do beijo, também Judas terá sentido que o Senhor ainda o amava e o acolhia entre os seus no Além. Talvez tenha sido o primeiro apóstolo e entrar lá, junto com os dois ladrões. Uma fila que certamente parece não honrar o filho de Deus, como alguns o concebem, mas que é da grandeza da Sua misericórdia”.
“E agora, antes de retomar a Missa, repetirei o gesto de Cristo na última ceia, lavando os pés das nossas crianças, que representam os apóstolos do Senhor em nosso meio, beijando esses pezinhos inocentes, deixem que eu pense por um momento no Judas que tenho dentro de mim, no Judas que, talvez, vocês também carregam dentro de vocês. E permitam que eu peça a Jesus, a Jesus em agonia, a Jesus que nos aceita tal como somos, permitam que eu Lhe peça, como graça pascal, que me chame de amigo”.

(Texto publicado no site Vatican Insider, dia 24/06/2016, com o título “O Bom Pastor que carrega Judas nos ombros”)

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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