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Passos N.184, Setembro 2016

DESTAQUE | JMJ

A aventura da misericórdia

por Alexandre Gonçalves

Mais de 2 milhões de jovens de todas as partes do mundo foram até a Polônia se encontrar com Papa Francisco. Um convite a abrir-se a Jesus, que “quer habitar a sua casa”. Momentos fortes diante da dor em Auschwitz, mas com o convite de reconhecer o mistério de Deus também presente no sofrimento


A Jornada Mundial da Juventude de 2016, realizada na Polônia de 27 a 31 de julho, entrará para a história como a Jornada da Misericórdia. Não só porque coincidiu com o Jubileu da Misericórdia e foi celebrada na terra natal dos dois grandes apóstolos da Misericórdia no século XX – São João Paulo II e Santa Faustina –, mas também porque, em Cracóvia, o Papa Francisco convidou os jovens do mundo a embarcar na grande aventura da Misericórdia.
Já no primeiro encontro de boas-vindas aos jovens, na esplanada do Parque Blonia, o Papa Francisco deixou claro o que está em jogo nesta aventura: “A felicidade germina e desabrocha na misericórdia”. Sem misericórdia, não há vida plena. E, ao descrever o “rosto jovem da misericórdia”, o Papa propôs um ideal cativante: “um coração misericordioso sabe ir ao encontro dos outros, consegue abraçar a todos, sabe ser um refúgio para quem nunca teve uma casa ou a perdeu, é capaz de ternura e compaixão, sabe partilhar o pão com quem tem fome, abre-se para receber o refugiado e o migrante”. Para Francisco, misericórdia é “oportunidade, amanhã, compromisso, confiança, abertura, hospitalidade, compaixão, sonhos”. Diante desse panorama, quem não deseja carregar dentro de si um coração misericordioso?
Mas esse ideal só se faz realidade quando nasce de um encontro pessoal com Aquele que nos amou primeiro, que nos envolveu na sua Misericórdia. O primeiro passo é, sem dúvida, reconhecer que “todos somos pecadores, todos carregamos o peso dos nossos pecados”. Depois, precisamos talvez corrigir uma percepção legalista do Senhor: cremos que “Deus é distante, rígido e pouco sensível, bom com os bons e mau com os maus”. Esquecemo-nos que a “memória de Deus não é um HD que armazena todos os nossos dados, mas um coração terno e rico em compaixão, que se alegra em eliminar definitivamente nossos vestígios de mal”.
A jovem brasiliense Luísa Carvalho, de 21 anos, ouviu as palavras de Francisco e entendeu o recado: “Deus quer os meus pecados para me libertar deles. Ele não exige perfeição. Abraça-me como eu sou”. O primeiro encontro com o Coração Misericordioso do Senhor costuma acontecer no sacramento do perdão. Na Missa de envio, o Papa lançou um apelo aos jovens: “Não tenham vergonha de levar tudo a Cristo na Confissão, especialmente as fraquezas, as fadigas e os pecados: Ele saberá surpreender-vos com o seu perdão e a sua paz”.
No contexto deste encontro pessoal com Jesus, descobrimos que Ele “é o Senhor do risco, o Senhor do sempre mais além”. No sábado à noite, durante a vigília de oração com os jovens no Campus Misericordiae Franscisco afirmou com firmeza que para segui-Lo, “é preciso decidir-se a trocar o sofá por um par de sapatos que nos ajudem a caminhar por estradas nunca sonhadas e nem mesmo pensadas… seguindo a loucura do nosso Deus, que nos ensina a encontrá-Lo no faminto, no sedento, no maltrapilho, no doente, no amigo em maus lençóis, no encarcerado, no refugiado e migrante, no vizinho que vive só”.
Diversas vezes durante a jornada – nos encontros com o clero, nas homilias, nos discursos aos jovens –, o Papa repetiu as palavras “proximidade” e “tocar”. No encontro com os bispos, por exemplo, Francisco definiu “proximidade” como “tocar a carne sofredora de Cristo” nos nossos irmãos e irmãs. Na mesma ocasião, afirmou que, “sem proximidade, existe apenas a palavra sem carne”. Na Missa que celebrou em Jasna Góra, ele recordou que Deus nos salva fazendo-se pequeno, próximo e concreto. Por isso, como Maria, devemos imitar sua pequenez, proximidade (dos demais) e concretude (no serviço). Só assim experimentaremos a “alegria que permanece no coração depois de cada gesto, cada atitude de misericórdia” e nos tornaremos testemunhas da Misericórdia e da Fidelidade de Deus.
O mistério do Mal. Sem dúvida, o anúncio da Misericórdia Divina enfrenta frequentemente a descrença que nasce do escândalo do Mal. Como crer quando há injustiça e dor? Em sua visita a Auschwitz e Birkenau, o Papa Francisco refletiu silenciosamente sobre uma das noites mais escuras da história. Mais de um milhão de vidas foram sacrificadas naqueles campos de extermínio. Ao final da visita, o Papa encontrou-se com vítimas que sobreviveram àquele pesadelo, afinal, como ele disse na vigília com os jovens, nossa percepção torna-se mais aguda quando o sofrimento e a guerra deixam de ser realidades anônimas e distantes para ganhar “um nome, um rosto, uma história”.
Naturalmente, pode-se sempre defender a inocência de Deus e creditar Auschwitz ao abismo de maldade do coração humano. Contudo, se a História admite explicações que eximem Deus da responsabilidade pelos nossos crimes, como entender o Mal que nasce da Natureza sem intervenção humana? Ou, dito de outra forma, como acreditar em Deus quando Ele permite a agonia de uma criança? No dia da sua visita a Auschwitz, o Papa também tocou o mistério da dor dos pequenos ao estar com as crianças no Hospital Pediátrico Universitário, em Prokocim.
Horas mais tarde, ele foi corajoso o bastante para formular a questão de forma explícita diante de centenas de milhares de jovens reunidos no parque Blonia para rezar a Via Sacra: “Onde está Deus, se no mundo existe o mal, se há pessoas famintas, sedentas, sem abrigo, deslocadas, refugiadas? Onde está Deus, quando doenças cruéis rompem laços de vida e de afeto? Onde está Deus, quando vemos a inquietação dos que tem dúvidas e dos aflitos na alma?” Para essas perguntas, o Papa não ofereceu reflexões sofisticadas sobre o silêncio de Deus, mas a surpreendente resposta cristã: “Deus está neles, Jesus está neles, sofre neles, profundamente identificado com cada um. Está tão unido a eles, que quase formam um só corpo”.
Deus deixa o banco dos réus e dirige um convite-desafio aos homens: quem quiser encontrá-lo, deve buscá-lo nos calvários deste mundo. “Somos chamados a servir Jesus crucificado em cada pessoa marginalizada, a tocar sua carne bendita em quem é excluído, tem fome, tem sede, está nu, preso, doente, desempregado, é perseguido, refugiado, migrante. Naquela carne bendita, encontramos nosso Deus; naquela carne bendita, tocamos o Senhor”. O Papa Francisco também nos recorda que Jesus continua a sofrer “nos que duvidam na vida, nos que não sentem a felicidade e a salvação, mas apenas o peso do seu pecado”. Neles, encontramos também o rosto do Salvador desfigurado pela dor. “Nossa credibilidade de cristãos é posta em jogo no acolhimento do pecador que está ferido na alma”.
A Polônia. Durante o retorno a Roma, uma jornalista polonesa perguntou ao Papa Francisco quais foram suas impressões do país durante a visita. Em sua resposta, ele sublinhou duas características dos anfitriões da jornada: bondade e nobreza. A julgar pelo ambiente que se respirava em Cracóvia, é razoável supor que a multidão de 2,5 milhões de peregrinos concordaria com o Papa Francisco.
É verdade que muitos moradores de Cracóvia estavam apreensivos antes da jornada. Temiam o colapso dos sistemas públicos de transporte, limpeza e segurança. De fato, a cidade recebeu um número de visitantes três vezes maior do que a população local. Felizmente, o evento foi um sucesso sem maiores incidentes. Peregrinos ficaram impressionados com a organização e hospitalidade dos poloneses. Os anfitriões, por sua vez, estavam encantados com a afabilidade e alegria dos visitantes.
Muitas casas estavam enfeitadas com duas bandeiras: uma branca e vermelha – cores da República da Polônia – e outra branca e amarela – cores do Vaticano. Era comum ver moradores dos prédios permanecerem nas sacadas para acenar aos peregrinos ou para saudá-los agitando as bandeiras. Jovens de todas as partes do mundo respondiam com uma homenagem transformada em grito de guerra: “Polska! Polska! Polska!”, que é como os poloneses chamam seu país. Naqueles dias, todos os peregrinos tornaram-se poloneses enquanto a Polônia tornou-se a Igreja Universal.
A jornada coroou as comemorações dos 1050 anos do batismo da Polônia. Na missa que celebrou na esplanada do santuário de Jasna Góra, o Papa Francisco recordou os inúmeros sacrifícios que o país enfrentou na sua conturbada história, especialmente no século passado, quando o povo polaco viu-se sujeito aos terrores do nazismo e do comunismo. O Papa convidava os fiéis a pensar em tantos filhos e filhas da Polônia, especialmente “nos mártires, que fizeram resplandecer a força desarmada do Evangelho; nas pessoas simples, e todavia extraordinárias, que souberam testemunhar o amor do Senhor no meio de grandes provações; nos arautos mansos e fortes da Misericórdia, como São João Paulo II e Santa Faustina. Através destes canais do seu amor, o Senhor fez chegar dons inestimáveis a toda a Igreja e à humanidade inteira”.
Na jornada, havia cristãos de lugares onde a Igreja é perseguida. O exemplo da Polônia servia como inspiração e fonte de esperança. Jean Baptiste, um sacerdote do Vietnã que vive na França, comentava por exemplo que a Polônia foi capaz de superar décadas de totalitarismo. “Nós podemos fazer o mesmo”, afirmava o padre de 36 anos, que preferiu não revelar seu sobrenome vietnamita para evitar represálias contra sua família. “Todo mundo, inclusive as pessoas à frente do regime, sabem que são necessárias mudanças, pois a situação atual é insustentável. A questão é como conduzir uma transformação gradual e sem violência. Os católicos podem desempenhar um papel muito importante nesta abertura”.
Havia também cristãos do Oriente Médio. O jovem Nawar Waheeda, de 27 anos, caminhava com uma bandeira iraquiana com a inscrição “reze pelo Iraque” durante a vigília em Campus Misericordiae. Católico caldeu, ele vivia em Bagdá e agora mora em Erbil. Trazia consigo o testemunho das comunidades cristãs massacradas pelo Estado Islâmico. Ele estava comovido com o afeto e solidariedade de todos. “As pessoas aqui nos amam muito. Eles vêm conversar com a gente porque querem ouvir nossa história”, afirmava Waheeda.

APROFUNDAMENTOS
> Os discursos de Papa Francisco durante a JMJ 2016.



Leia também:
> Mendicantes de misericórdia, a carta de padre Carrón aos participantes da JMJ


 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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