A apresentação do livro “A beleza desarmada”, que acaba de ser editado em português. Entre notas de Bach e o testemunho de um juiz da associação APAC, o diálogo com Julián Carrón: “O ponto é um fascínio que seja capaz de mudar a realidade cotidiana”
Final de tarde de domingo, 11 de setembro, em um dos principais shoppings de São Paulo. A livraria é tomada por rostos alegres e curiosos que chegam para o lançamento do livro A beleza desarmada, de Julián Carrón, responsável pelo Movimento Comunhão e Libertação. Um bate-papo com o autor sobre o livro está previsto para começar em meia hora, mas Carrón faz questão de receber pessoalmente a todos, sempre com um largo sorriso.
O evento acontece em uma arena no meio da livraria, e pode ser acompanhado por qualquer um que esteja na loja. A arquibancada, com capacidade para 300 pessoas, está lotada, e o evento é transmitido ao vivo para diversas cidades brasileiras. No centro da arena estão, além de Carrón, Fabiano Molina, diretor de Gente e Gestão da FNAC Brasil, mediador do encontro, e o juiz criminal Dr. Paulo Antonio de Carvalho, que é um dos responsáveis pela APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) em Itaúna, Minas Gerais.
O evento é iniciado com a bela suíte nº2 de J.S. Bach para violoncelo solo, executada por Marialbi Trisolio, da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Em seguida, Fabiano Molina inicia, então, o lançamento do livro comentando a crise social e moral do Brasil e pedindo que Carrón ajude a entender uma afirmação do livro, de que “o que muda verdadeiramente o homem é um encontro, uma presença, e não os valores que não funcionam mais”.
Carrón responde que a raiz da crise que vivemos é muito profunda e todos os atores sociais devem contribuir para resolver esse problema. E o cristianismo pode oferecer uma contribuição específica. “Se as pessoas que encontramos podem experimentar um modo de viver a vida que lhes atraia, será possível uma mudança. A beleza desarmada é essa possibilidade de inserir no mundo do trabalho, das relações, da política, testemunhos de que é possível viver todos esses relacionamentos de forma nova”.
Consciência de ser cristãos. Como essa beleza desarmada pode levar essa resposta de bem para o mundo? Para Carrón, “o exemplo das APAC’s mostra que isso é possível até mesmo para quem comete crimes. Só se recomeça se se encontra alguém que lhe olhe e lhe trate como pessoa útil para sociedade e para si mesmo. A única modalidade capaz de mudar nossos ceticismos são os fatos. Mesmo que tenhamos dificuldade em aceitá-los, eles desafiam nossa razão e nossa liberdade”.
Na sequência, Dr. Paulo fala das APAC’s. “A gente acolhe quem cometeu crimes como irmãos e o tratamos com igualdade e solidariedade. Como irmãos, nessa ideia fraterna do cristianismo, estamos apenas cumprindo um mandamento e dando dignidade a essas pessoas. E o princípio fundamental da APAC é o da confiança – lá não temos polícia, nem agentes penitenciários. Podemos, olhando em seus olhos, ressuscitá-los para uma vida útil, para que sejam úteis à sociedade”, diz.
Em seguida, relata um fato concreto: um homem, que acabara de ouvir sua sentença condenatória, pediu um prazo antes de ser preso. O pedido parecia absurdo. No entanto, Dr. Paulo confiou em sua palavra e lhe concedeu 30 dias para que se apresentasse na unidade da APAC determinada. E 30 dias depois este condenado fez como combinado. “E ele foi com a ordem de prisão, com as próprias pernas, se apresentar para cumprir a pena. Quando você olha nos olhos do irmão que está na sua frente, por pior que tenha sido o mal que ele fez e causou, você percebe a confiança”.
Para Dr. Paulo, a experiência o fez entender que é possível viver o trabalho com outra postura. “A APAC me ensinou que é possível fazer as coisas de uma forma mais fraterna, humana e solidária e livrar as pessoas de um constrangimento desnecessário. A partir dessa experiência, eu passei a aplicar a mesma regra para todos os condenados que se encontram na mesma situação. Até hoje, ninguém descumpriu esse acordo”.
O juiz afirma que esse tipo de experiência exemplifica tudo aquilo que Carrón escreveu no livro. “Isso nos desperta uma nova visão do cristianismo porque, se não fosse assim, eu ia ficar prendendo a vida inteira, achando que o caminho é esse, sem buscar formas novas de fazer as mesas coisas. Mas existe a possibilidade de fazer isso de uma forma mais humana. Eu tenho evoluído como cristão e acho que jamais teria chegado a essas experiências sem a vivência da APAC”, afirma.
Carrón fica impressionado: “Escutar o testemunho do Dr. Paulo é comovente porque desafia nossos preconceitos. Quem de nós teria se arriscado como ele? Isso demonstra o quanto nós temos que mudar para que possamos desafiar outros com a mesma audácia. Se não acreditamos naquilo que é capaz de despertar a dignidade no outro, nós não iremos mudar o mundo. Que novidade é introduzida na vida com Ele? Quem teria pensado e feito aquilo que Jesus fez indo à casa de Zaqueu – que foi um gesto totalmente gratuito como este que Dr. Paulo nos descreveu?”
E assim Carrón exemplifica com a experiência de Rose Busingye, que vive na periferia de Kampala, Uganda, e acolhe mulheres que contraíram AIDS dos próprios maridos. Ele conta que a primeira reação de Rose foi tentar buscar remédios para elas. Mas ficou surpresa ao perceber que, ao oferecê-los, elas tomavam duas ou três vezes e depois paravam. “Essas mulheres não tinham mais razão para viver e, por isso, desejavam morrer. Assim, Rose teve que começar a olhá-las de um modo novo para que descobrissem a própria dignidade de ser mulher. E só quando redescobriram sua dignidade, voltaram a tomar os remédios”.
Carrón completa: “Nossa mentalidade atual considera que oferecer remédio é algo muito mais concreto do que ajudar o outro a recuperar a própria dignidade, que seria algo mais abstrato. Mas esse olhar, que foi introduzido por Cristo, pode ser testemunhado na história também por nós. Por isso, o nosso maior desafio como cristãos é se ainda acreditamos no fascínio de atração que o cristianismo tem, que é essa beleza desarmada”.
A espera por um olhar. O cristianismo pode oferecer uma resposta para cada homem moderno do século XXI? Para Dr. Paulo, quanto maior a cidade, mais complexa é a vida social e mais difícil é a retomada do cristianismo. Porém afirma: “Eu penso que, com a mensagem do cristianismo, por mais árido que seja o mundo, por pior que sejam as estruturas que criamos, o cristianismo tem lugar, renovado e revigorado com a mensagem de Cristo. Se a gente mudar de postura e deixar de considerar aquele que praticou um crime como inimigo, e começarmos a enxergá-lo como um irmão, acho que aí sim a gente consegue transformar o mundo”.
O juiz relata também a história de um condenado, chamado José, que sempre fugia das cadeias tradicionais. Ao ser enviado para uma unidade APAC, porém, nunca mais teve o ímpeto de fugir. Quando perguntado o motivo, ele respondeu: “porque do amor ninguém foge”.
Carrón diz também que em um mundo de valores decaídos, sem brilho, é possível recomeçar como no princípio do cristianismo: “O Papa Bento e também o Papa Francisco disseram mais de uma vez que o cristianismo vai ter sempre uma possibilidade, pois fala daquilo que o coração do homem espera. O indivíduo pode ter passado por todas as prisões, mas no fundo está esperando alguém que o ame para que ele não continue errando. Por trás de sua aparência existe a espera que alguém o olhe como homem, independente do ele tenha feito”.
E conta sobre alguns policiais, responsáveis por atos terroristas na década de 1970 na Itália que, depois de presos, se converteram ao cristianismo. “Uma de suas vítimas, que carregava sete balas no corpo, ao encontrar um grupo de cristãos ouviu a palavra misericórdia. Ela se revoltou internamente, pois tudo nela pedia justiça. Aos poucos, no caminho do encontro com esses amigos, passou a fazer uma experiência diferente. Quando soube que esses amigos cristãos haviam encontrados também seus algozes, a dor cresceu dentro dela modo insuportável. Não conseguia imaginar que aquelas pessoas causadoras de tanta dor pudessem também ter encontrado o cristianismo. Isso demonstra que, nesse mundo destruído, algo novo pode recomeçar. É preciso encontrar um grupo de amigos onde esse caminho pode ser feito”.
Deixar-se abraçar. Qual é nossa missão no mundo? Diz Carrón: “Depois daquilo que ouvimos e vimos, lembrando-se do preso que Dr. Paulo falou, todos os homens, independentemente dos erros e equívocos que tenham cometido, estão esperando alguém que os ame. É o que Papa Francisco diz: “atrás da aparência de autossuficiência, estão as feridas que todos os homens têm. Todos os homens com os quais convivemos diariamente, possuem essas feridas. Temos essa certeza porque são as mesmas feridas que nós temos! Quem de nós não tem essas feridas? E quem não está esperando alguém que, tendo piedade de suas feridas, as unja e cuide delas, assim como o Bom Samaritano?”.
Para ele, “nossa missão no mundo é continuar o olhar com o qual Jesus nos olhou. Portanto não é um propósito que possamos nos fazer, mas isso só é possível se fomos olhados assim antes, se cada um de nós aceita agora ser olhado dessa forma. O cristianismo é isso: quando pensávamos que estávamos fadados a sofrer sozinhos nossas feridas, alguém nos olhou dessa forma. Como a este preso que havia fugido de todas as prisões e encontrando o olhar do Dr. Paulo se deu conta de que a vida podia se tornar uma coisa nova”.
E finaliza: “A única condição é que nos deixemos ser abraçados assim. Não é uma proposta que nos fazemos, porque isto é impossível para nós. É só se nos deixarmos abraçar que depois vamos nos surpreender abraçando outras pessoas dessa mesma forma. Quem não desejaria abraçar sua esposa, seus filhos, aos outros, como Dr. Paulo abraçou esse preso?”.
Dr. Paulo encerra ressaltando que todos nós, por mais diferentes que sejam nossas vidas, podemos ser testemunhas da mensagem do Cristo. “Minha tarefa é difícil, de condenar e prender as pessoas. Mas mesmo nessa tarefa difícil, como no caso do preso que pediu o prazo para se apresentar, é possível fazê-lo amorosamente, de forma a atenuar essa atividade que nós juízes temos. Devemos agir com muita prudência e sabedoria para não trair a confiança de Deus e julgar com essa competência que Ele nos deu, atendendo os princípios do cristianismo”.
Saindo daquele encontro, não foi possível voltar para casa como antes. Uma faísca se acendeu. Flashes do que vimos e ouvimos voltam à mente. Quem não deseja viver assim?
APROFUNDAMENTOS:
> Vídeo da apresentação do livro "A beleza desarmada", dia 11/09 em São Paulo.
Credits /
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón