O tema do Meeting, a diplomacia do Papa, a Síria e a Igreja “inquieta”. Trechos de dois encontros “chave” do evento cultural Meeting de Rímini, realizado na Itália de De 19 a 25 de agosto
As mudanças que estão acontecendo diante dos nossos olhos sob a forma de carnificinas sempre incompreensíveis e através do aumento de uma migração humana de proporções nunca vistas em toda a história, precisam de nós, da nossa decisão, precisam de uma posição culturalmente interessante e absolutamente pessoal.
É assustador que, diante de fatos como estes, nossa resposta à pergunta sobre o que é o homem – uma pergunta que na história todos se colocavam e que agora quase ninguém mais se coloca – seja incerta e temerosa (...).
Há não muitos dias atrás, um caríssimo amigo, jornalista bem empregado, com um ótimo cargo do qual gosta e lhe dá satisfação, me disse que iria mudar completamente de vida. Alguns fatos acontecidos, e que foram tema de alguns de seus artigos, levaram-no a viajar para um País distante e muito diferente da Itália, em uma situação e realizando um trabalho que não sabia se o agradaria. Eu estava para lhe dizer que era louco quando, de repente, fui tomado pelo maravilhamento: sua maneira de dizer “sim” a circunstâncias imprevisíveis era um “sim” à lei que rege o universo, à natureza profunda das coisas criadas, que não é o nosso projeto, a nossa organização, a nossa maior ou menor satisfação. Entendi que aquele modo de agir era o mais humano, o mais apropriado também para mim, que eu precisava aprender que, também para mim, é sempre verdadeira, a cada instante, a razão pela qual o meu amigo (e vocês não imaginam quanto, sob um certo ponto de vista, me desagrada) vai se mudar de Milão.
Nada é óbvio, tudo é dado, esta é a lei, esta é a ordem, não um sentimento: e cabe a mim tirar as consequências disso. Assim, entendi melhor qual é a coisa mais bonita que o homem pode receber como dom: a comunhão. Não “ser amigos”, não “estar sempre de acordo”, mas testemunhar uns aos outros, na fragilidade extrema da nossa vida, a presença de uma trama maior, mais profunda, mais gratuita das coisas, à qual nos é pedido apenas dizer sim. Como dizia o meu amigo: naquele País distante começou a existir algo que nem eu nem ninguém podia imaginar, nenhum de nós o produziu, nem podia produzi-lo. O bonito dessa posição é que ela vale para qualquer coisa, não apenas se devo viajar para Burundi ou para a Venezuela, mas também (como no meu caso) se devo escrever um romance, e para decidir qual história escrever e como contá-la. Quanto mais aprendo uma posição como essa, menos me escandalizo com aquilo que é diferente, inclusive o horror que nos acompanhou – pode-se dizer cotidianamente – nestes meses. Se um amigo nos testemunha o que significa aderir a um dom, à realidade como um dom, você aprende a perceber o dom mesmo na presença do inimigo: amai vossos inimigos. A resposta cultural diante de transformações como as que, gostemos ou não, estão acontecendo – e fontes seguras nos dizem que estamos apenas no início – e que mudarão definitivamente nosso modo de viver e o aspecto das nossas cidades e as biografias dos nossos filhos, deve se apoiar (e não poderia ser diferente) no modo com o qual olho para minha mulher, para a casa, para o colega de trabalho. É preciso recuperar a ideia de homem sobre a qual se funda a nossa história, quando na polis um homem começou a contar, não porque era filho ou neto de Tizio ou de Caio, ou porque pensava de uma certa maneira, mas simplesmente porque era um homem: todas as limitações das diferentes mentalidades nas quais esses fatos aconteceram não puderam anular o seu alcance. A vida, a nossa vida, a minha vida. Levamos séculos, milênios, para construir uma forma de vida boa, e boa para todos. Levantar-se pela manhã, abrir a janela, preparar o café, ir para o trabalho, encontrar outros rostos como os nossos, olhos dentro dos quais há esperanças, preocupações, cansaço, afetos, dores, expectativas e, depois, decidir o que prepararemos para o jantar, fazer uma caminhada no parque, ir visitar um amigo que está morrendo, deparar-se com um filho que não quer mais ir à escola, ouvir o rumor dos nossos passos nas pedras...
Poderiam nos tirar todas essas coisas, mas para que isso aconteça precisamos ainda tê-las conosco, não tê-las já jogado fora. Frequentemente penso no fato de que nós somos os primeiros a jogar fora essa vida boa em nome de algo que nos parece instintivamente mais gratificante, enquanto estamos apenas rejeitando a dificuldade e a responsabilidade que uma vida boa comporta. Certo, como diz Eliot, o sangue escorrerá novamente nos degraus do Templo, mas para que isso aconteça é preciso, primeiro, construir o Templo. A fisionomia do nosso mundo está destinada a mudar profundamente. Mas quem quer que nos substitua, deveríamos poder lhe dizer: “Quem nos precedeu trabalhou durante séculos e séculos para me fazer compreender que o valor da sua vida não está nas minhas mãos, porque sequer o meu está. Mesmo que você me mate agora, não se esqueça disso. Tudo é dado, de graça, cada um de nós é um dom: por isso você é um bem para mim. Espero que um dia você também possa repetir isso, se não você, pelo menos seus filhos, ou os filhos de seus filhos”.
ANTONIO SPADARO,
diretor de Civiltà Cattolica
A presença misericordiosa de Deus pode mudar um tempo de miséria geopolítica na plenitude do tempo cristão. É exatamente este o poder político da misericórdia: mudar o significado dos processos históricos. Mudar o significado da história dissolvendo seu lamaçal e esmagando seus detritos.
Francisco não é um idealista: é um realista, um homem muito concreto que ama a realidade. E sabe perfeitamente que a paz, por si só, não existe. A paz como conceito não existe, o homem nunca viveu a paz. O conflito é um elemento característico da natureza humana, portanto o homem deve sempre enfrentar o conflito; é um fator ineliminável na dinâmica dos relacionamentos humanos e, portanto, também dos relacionamentos internacionais. Mas o Papa também sabe que a misericórdia pode mudar o mundo.
Então, entendemos também a trajetória das viagens de Francisco. Torna-se muito clara. O que o Papa está fazendo? Vocês se lembram do que ele fez no muro de Belém, vocês se lembram dessa imagem? Num determinado momento o Papa, em Belém, desceu do carro e se inclinou sobre aquele muro que divide judeus e palestinos. E o que ele fez? Disse alguma coisa? Não. Apoiou nele a cabeça e colocou a mão.
Vocês se lembram do que fez, depois, em Auschwitz, diante do muro das execuções? Apoiou a mão, não disse nada. Olhem, é impressionante: eu estava lá, em Auschwitz, e estava esperando a chegada do Papa do lado de dentro. Num determinado momento viu-se um homem vestido de branco, num silêncio total, atravessar o portão. Não disse uma palavra; finalmente sentiu-se livre, o primeiro Papa livre para não dizer nada diante da tragédia. Era isso que Bento XVI teria gostado de fazer e que, porém – como alemão – não podia fazer, como ele mesmo disse. Mas o Papa apoiou a mão.
Alguém me perguntou, em relação ao muro de Belém: “O que o Papa queria fazer colocando a mão sobre o muro?”. Eu, francamente, não sabia o que responder, porque é um gesto que o Papa fez espontaneamente; não estava previsto no protocolo, aquela parada não estava prevista. O amigo muçulmano citado anteriormente (Omar Abboud, ndr) me esclareceu. Disse-me: “Olha, o que Jesus fazia quando impunha as mãos? Tocava os doentes para curá-los. Então, o Papa Francisco faz a mesma coisa: toca os muros para restaurá-los”. É assim. O Papa toca fisicamente os muros, gosta de tocar os muros porque sabe que os muros são feridas e quer curá-las.
E, assim, também aconteceu, simbolicamente, na Coreia. Quando esteve lá o Papa nunca falou em “Coreia do Norte e Coreia do Sul, mas falou de um País unido pela língua mãe, porque o que nos une é a mãe, e a língua é uma mãe. Indo até lá, na fronteira que separa um povo dividido em dois embora sendo um, tocou invisivelmente essa ferida aberta.
Assim aconteceu em Sarajevo, onde os muros ainda estão marcados pelas balas. O Papa foi para ali, e não para Mostar, onde há mais católicos. Alguém me disse: “O Papa errou, foi mal aconselhado, deveria ir a Mostar, não a Sarajevo: os católicos estão lá!”. Mas, não! O Papa não vai simplesmente onde há mais católicos: o Papa vai onde há uma ferida ainda aberta porque quer restaurá-la, porque quer apoiar a mão de Cristo sobre aquela ferida. (...)
A ferida curada, portanto. O muro evidente que se torna evidentemente uma ponte atravessada. Esse é o primeiro ponto: a misericórdia como processo dramático e terapêutico. O Papa viaja para tocar feridas, para colocar sua mão nessas feridas, como Cristo colocou a mão nas feridas da sua época. Esta é a misericórdia. (...)
A misericórdia, em nível político, significa nunca considerar nada e ninguém como definitivamente perdido; nos relacionamentos pessoais, mas também nos relacionamentos entre nações, povos, Estados. Esse é o núcleo do significado político: nunca dizer “nada, essa situação já está perdida, não se pode fazer mais nada, é irreconciliável”. A misericórdia impede que isso possa acontecer. A misericórdia reorienta as águas do curso da história e abre os diques estreitos do determinismo.
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