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Passos N.186, Novembro 2016

CULTURA | MEMÓRIA

A arte sacra de Cláudio Pastro

por Hilda Souto e Francisco Borba Ribeiro Neto

Através dele e da sua produção, fizemos a experiência da beleza que nos leva ao Mistério. Com centenas de obras de arte espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, Pastro tornou-se um grande amigo que nos ajuda e nos ajudará a fazer memória de Cristo, isto é, a reconhecê-Lo presente hoje na nossa vida. Aqui, uma breve biografia do artista


Com o falecimento precoce de Cláudio Pastro, aos 68 anos, na madrugada de 19 de outubro de 2016, a Igreja perde um dos maiores artistas sacros de nosso tempo. Foi o maior artista sacro brasileiro depois do Aleijadinho, o grande mestre do Barro mineiro, que viveu cerca de 200 anos antes. Pastro foi considerado por muitos uma espécie de “Michelangelo brasileiro”, não só pela qualidade de sua obra, mas também porque representou uma síntese entre as manifestações artísticas latino-americanas do século XX e a volta às fontes do cristianismo preconizada pelo Concílio Vaticano II. Assim como Michelangelo, a Basílica de São Pedro e o teto da Capela Sistina representam, de certa forma, o encontro entre o Renascimento italiano e a arte cristã, Cláudio Pastro e sua maior obra – o interior da Basílica Nacional de Aparecida – representam uma síntese característica da arte católica latino-americana pós-conciliar.

As origens e o encontro com CL
Nascido em São Paulo, no bairro Tatuapé, em 1948, Cláudio recebeu na infância, das Irmãzinhas da Assunção, uma formação religiosa marcada pela liturgia e pela objetividade da relação da pessoa com Deus. Aprendeu desde cedo que o cristianismo não é uma doutrina intelectual, mas um Fato presente, documentado na experiência da beleza e nos encontros que fazemos ao longo da vida. Quem o conhecia, rapidamente se dava conta de como a beleza e a objetividade do encontro com Cristo dominavam não só sua arte, mas toda a sua vida.
Já na juventude, aproximou-se da Ordem Beneditina. Fez grandes amizades nos mosteiros beneditinos do Paraná, particularmente no Mosteiro do Encontro, hoje localizado na cidade de Campo do Tenente. Mas sua casa espiritual em vida e local onde está sepultado é o Mosteiro Nossa Senhora da Paz, em Itapecerica da Serra. Lá se tornou oblato beneditino, com o nome de Irmão Martinho, e conheceu Madre Dorotéia Rondon Amarante, falecida em 2015, que foi sua mais marcante e duradoura influência. Com ela desenvolveu uma espiritualidade sóbria e austera, que se refletiu na simplicidade e pureza dos traços em suas obras, e foi incentivado a conhecer os grandes mestres do Concílio Vaticano II: Odo Casel, Aemiliana Löhr, Louis Bouyer, Romano Guardini, entre outros.
Também na juventude, por meio de Rosa Brambilla, a Roseta de Belo Horizonte, como é mais conhecida hoje em dia, encontrou um grupo de missionários de Comunhão e Libertação (CL) que trabalhavam na paróquia de São Mateus, que na época era um bairro cheio de favelas na periferia extrema de São Paulo. Lá, desenvolveu seu lado artístico, dando aulas de artesanato para o povo simples, e aprofundou seu relacionamento com o carisma de Dom Giussani.
No final da década de 1970, os missionários de Comunhão e Libertação foram chamados pelo arcebispo de São Paulo, o cardeal Paulo Evaristo Arns, a reiniciar a pastoral Universitária, que deixara de existir com o fechamento da Juventude Universitária Católica pelo regime militar. Para isso, foi criada a Casa Cultura e Fé, um misto de centro cultural e casa de uma comunidade religiosa. Cláudio Pastro foi morar na casa, juntamente com padre João Carlos Petrini (hoje bispo em Camaçari/BA) e Vando Valentini (hoje padre na arquidiocese de São Paulo). No Mosteiro Nossa Senhora da Paz, na Casa Cultura e Fé e na Pastoral Universitária, Cláudio foi ajudando a educar a sensibilidade para a beleza de uma geração de universitários cristãos. Dali em diante, ele nunca mais abandonou esse trabalho de formação. Não era apenas o artista que fazia obras, mas também o mestre que ajudava a compreender o nexo profundo entre beleza e fé.
Na época, os missionários de Comunhão e Libertação em São Paulo eram acompanhados pelo padre Francesco Ricci, um sacerdote italiano que vivia entre a Polônia e a América do Sul porque, naqueles anos acreditava que o futuro da Igreja passava por essas duas partes do mundo. Foi ele que “descobriu” Cláudio Pastro em São Mateus, levando-o para a Europa e fazendo-o se tornar artista profissional. Padre Ricci previu, de certa forma, São João Paulo II e Papa Francisco – e ajudou a Igreja a ter um artista símbolo de nosso tempo. As histórias se entrelaçam na vida da Igreja.
A Casa Cultura e Fé foi fechada nos anos 80, mas a relação de Cláudio com Comunhão e Libertação continuou. Além das amizades pessoais, partilhou com o movimento a influencia beneditina. Assim, permitiu que a medalha de São Bento feita por ele para as comemorações dos 1500 anos do Santo fosse utilizada como símbolo da Fraternidade de Comunhão e Libertação.

Trajetória artística
Cláudio estudou arte na Abbaye Notre Dame de Tournay (França), no Museu de Arte Sacra da Catalunha (Espanha), na Academia de Belas Artes Lorenzo de Viterbo (Itália), na Abadia Beneditina de Tepeyac (México) e no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. As origens de sua arte, contudo, sempre foram sua experiência de fé, marcada pela beleza da liturgia, e sua vivência junto aos mosteiros beneditinos.
Do encontro com a arte românica, com os ícones bizantinos e a originalidade da produção de nossos índios e negros nasceram suas primeiras obras: imagens com olhos, mãos e pés marcadamente expressivos, pele morena dos primeiros cristãos e do povo brasileiro simples que Cláudio encontrava. Nascia assim uma produção artística que bebia nas fontes cristãs da Patrística, no rico e complexo simbolismo do mundo oriental, mas também refletia a alma popular latino-americana e as tendências primitivistas da arte moderna do século XX. Muitos consideram suas obras muito simbólicas e cerebrais, mas o povo simples sempre aderiu com facilidade à beleza e às cores vibrantes de sua arte.
Com o tempo, suas obras foram se tornando mais delicadas e os traços mais essenciais. A síntese entre oriente e ocidente se consumava cada vez mais e o Mistério parecia se apoderar sempre mais de sua criatividade. Utilizava materiais que traduzissem a beleza do culto: a Jerusalém Celeste jamais pode ser construída com plásticos ou materiais mentirosos. Não precisa de luxo, mas de verdade. Portanto, a matéria deve respirar eternidade. A pedra, a madeira, o metal, o vidro, os azulejos, os objetos litúrgicos, as alfaias, tudo grita e proclama a glória: “A Palavra se fez carne” (Jo 1,14). “Toda forma, o traço, a cor, o som, o movimento, o gesto do ser cristão é essencialmente continuidade do Mistério da Encarnação ou não é”, assim repetidamente, falava Cláudio.

Os últimos anos
No final da década de 1990, Cláudio foi convidado para sua obra mais importante: concluir o interior da Basílica de Aparecida, que na época tinha as paredes nuas, sem nenhuma obra de arte. Ainda no início dos trabalhos, em função de uma crise hepática, entrou num coma que durou quarenta dias. Praticamente renascido, seus últimos anos foram marcados pelos sofrimentos advindos de uma saúde muito comprometida e por uma produção artística que impressionava a ele mesmo. Nunca havia produzido tanto ou sido tão reconhecido.
É o período em que mais se dedica à ambientação, renovação e restauro dos templos católicos. As comunidades, das pessoas simples do interior do Brasil aos membros de grandes associações europeias, sempre gostaram e se renovaram com suas obras. Por isso, hoje em dia, existem centenas de espaços religiosos de sua autoria no Brasil, na Itália, Alemanha, França e Espanha.

Moderno e fiel às raízes
A síntese artística e a personalidade de Cláudio Pastro muitas vezes despertaram polêmicas – aliás, despertar polêmicas sempre foi uma característica que compartilhou com boa parte dos gênios artísticos de todos os tempos. Contudo, o estudioso bem informado constata que suas ideias estavam em sintonia com a mais antiga e genuína tradição artística cristã. O ponto de partida para a compreensão de sua obra é a distinção entre arte de culto e arte de devoção.
A primeira, característica dos primeiros séculos do cristianismo e do catolicismo oriental, está a serviço da contemplação do Mistério e de sua presença objetiva no mundo, segue indicações litúrgicas e não a subjetividade do artista. A arte de devoção, que vigorou na Europa do Concilio de Trento, está muito mais vinculada à subjetividade do artista, ressalta sua sensibilidade e seus dotes artísticos. É o homem interpretando, à sua medida, o Mistério.
Assim, os ícones bizantinos – exemplo típico da arte de culto – frequentemente mostram Cristo e Nossa Senhora muito maiores fisicamente que os apóstolos, porque à luz do Mistério eles são mesmo maiores do que os demais seres humanos. Já Cristo e Nossa Senhora na arte barroca, tipicamente devocional, são totalmente “realistas”, denotando a capacidade individual do artista e procurando despertar nossas emoções pessoais diante da glória ou do sofrimento dos personagens bíblicos.
A sensibilidade religiosa brasileira é tipicamente devocional, daí a dificuldade de entender a arte de Cláudio Pastro, voltada ao culto mais que à devoção. Porém, quem acompanhou sua trajetória artística percebe o entrelaçamento de sua arte sacra com a alma brasileira.

A renovação dos espaços sagrados
Os especialistas de patrimônio cultural consideram os templos religiosos como obras físicas “mortas”, a serem preservadas para retratar um período histórico. Pastro os considerava como obras vivas, fruto da interação permanente da comunidade de fieis com as estruturas materiais. Por isso, afora casos específicos de alto valor histórico, considerava que o templo tinha que passar sempre por um processo de renovação que mantivesse suas raízes, mas também acompanhasse a evolução da comunidade.
Sua obra foi rigorosamente fiel aos preceitos do Concílio Vaticano II, que preconiza uma volta às fontes do cristianismo, conforme o Documento Perfectae Caritatis de 1965. A Beleza no Cristianismo é uma pessoa: Jesus Cristo e a única razão de ser do templo cristão é a celebração do Mistério Pascal. Assim, seguindo o espírito do Concílio Vaticano II, concebeu, em 1988, o primeiro espaço celebrativo no Brasil que seguia as normas litúrgicas pós conciliares: a Capela da Hospedaria do Mosteiro Beneditino de Brasília.
Outro caso exemplar é o Pateo do Collegio, marco da fundação de São Paulo. A igreja colonial que ali existia praticamente desabou no século XIX e o espaço passou à prefeitura, sendo retomado pelos jesuítas só em 1953. Buscando as origens históricas do Pateo do Collegio, o artista se preocupou em recuperar os aspectos estéticos sem violar o que já fazia parte integrante do edifício. Após estudos e pesquisas, descobriu que o edifício original já havia desaparecido e o atual é uma réplica, refeita pelo Poder Público nos anos 60 e 70 do século XX. Assim sendo, respeitou todo o estilo e interferiu o menos possível neste espaço. Usando azulejos (material típico do Brasil colônia) refez a igreja internamente, de modo a recuperar a memória de seu significado histórico, mas incorporando as normas litúrgicas preconizadas pelo Concílio Vaticano II e a estética da atualidade.

Associação Cláudio Pastro
Em 01 de março de 2016, com o objetivo principal fazer conhecer às pessoas a “arte como veículo do Sagrado”, foi criada a Associação Cláudio Pastro – Ars Sacra. Seu primeiro projeto é a catalogação da extensa obra de Pastro que tem cerca de 300 igrejas espalhadas pelo mundo e um número incontável de quadros, esculturas e objetos litúrgicos. O Catálogo é a principal fonte para conhecer com abrangência e profundidade a obra de um artista, além de ser ferramenta fundamental para identificar sua trajetória e mensurar sua produção artística. Catalogar significa que além de organizar todo o processo artístico, preserva-se a obra.
O nome da Associação, escolhido pelo próprio artista, traz a origem e as bases em que Cláudio Pastro firmou sua fé e seu trabalho: as Sagradas Escrituras. A palavra Arte, cuja origem está no latim Ars, Artis, significa serviço, função e trabalho. Da Antiguidade clássica à baixa Idade Média, e em todos os povos primitivos, o artista era um funcionário cujo valor da obra estava em executá-la com toda a perfeição necessária. Neste sentido, tudo era sagrado. Cláudio compreendeu e viveu profundamente este servir.

Aprofundamentos
> “Ferido pela Beleza” – Palestra de Cláudio Pastro, em 2007, falando de sua vida e arte.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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