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Passos N.186, Novembro 2016

MAGISTÉRIO

“Foram misericordiosos para conosco”

por Papa Francisco

Trechos da vídeo-mensagem do Santo Padre por ocasião da celebração do Jubileu Extraordinário da Misericórdia no Continente Americano. Bogotá, 27 de agosto de 2016


Para iniciar, voltam à minha mente as palavras do apóstolo Paulo ao seu discípulo predileto: “E dou graças ao que me tem confortado, a Cristo Jesus, nosso Senhor, porque me teve por fiel, pondo-me no ministério, a mim, que, dantes, fui blasfemo, perseguidor e opressor; mas alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade. E a graça de nosso Senhor superabundou com a fé e o amor que há em Jesus Cristo. Esta é uma palavra fiel e digna de toda a aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal. Mas, por isso, alcancei misericórdia, para que em mim, que sou o principal, Jesus Cristo mostrasse toda a sua longanimidade” (1 Tm 1, 12-16).
E Paulo diz isto claramente: Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores, e ele considera-se o pior. Tem clara consciência de quem é, não esconde o seu passado nem sequer o seu presente. Mas esta descrição de si mesmo não a faz nem para se culpar nem para se justificar, e muito menos para se vangloriar da sua condição. É o início da carta, já nos versículos precedentes recomendou a Timóteo que não ouvisse “fábulas ou genealogias intermináveis”, nem “vãs contendas”, admoestando que todas acabam em disputas, em confrontos. Não é importante – como poderíamos pensar à primeira vista – o seu ser pecador, mas que Timóteo, e com ele cada um de nós, se possa colocar naquela mesma sintonia. Em termos futebolísticos, poderíamos dizer: passa a bola para que outro a chute. “Passa-nos a bola” para que possamos partilhar a sua mesma experiência: não obstante todos os meus pecados “tiveram misericórdia de mim”. [...]
Não obstante os nossos pecados, os nossos limites, as nossas faltas; não obstante as nossas numerosas quedas, Jesus Cristo viu-nos, aproximou-se, deu-nos a mão e teve misericórdia de nós. De quem? De mim, de ti, de todos. Cada um de nós poderá recordar, pensando em todas as vezes que o Senhor o viu, que olhou para ele, que se aproximou dele e o tratou com misericórdia. [...] E a isto Paulo chama doutrina segura – curioso! – isto é doutrina segura: foram misericordiosos para conosco, [...] e voltar a admirar-se com a misericórdia de Deus. Esta é palavra segura, é doutrina segura e não palavras vazias. [...]
Para Paulo, a sua relação com Jesus é selada pelo modo como o tratou. Longe de ser uma ideia, um desejo, uma teoria – e também uma ideologia – a misericórdia é um modo concreto de “tocar” a fragilidade, de nos vincularmos aos outros, de nos aproximarmos entre nós. [...] O Deus de Paulo gera o movimento que vai do coração às mãos, o movimento de quem não tem medo de se aproximar, não tem medo de tocar, de acariciar; e tudo isto sem se escandalizar nem condenar, sem excluir ninguém. Uma ação que se faz carne na vida das pessoas.

Entender e aceitar o que Deus faz por nós – um Deus que não pensa, ama e age movido pelo medo, mas porque confia em nós e espera a nossa transformação – deve ser o nosso critério hermenêutico, o nosso modo de agir: “Vai, e faz o mesmo” (Lc 10, 37). Então o nosso modo de agir em relação aos outros nunca será uma ação baseada no medo, mas na esperança que Ele deposita na nossa transformação. E pergunto: esperança de transformação ou medo? Uma ação baseada no medo só pode obter separação, divisão, querer distinguir com exatidão cirúrgica um lado do outro, construir falsas seguranças e por conseguinte construir recintos. Uma ação baseada na esperança de transformação, na conversão, encoraja, estimula, olha para o futuro, gera espaços de oportunidades, impele. Uma ação baseada no medo acentua a culpa, o castigo, o «erraste». Uma ação baseada na esperança de transformação frisa a confiança, o aprender, o erguer-se, procurar sempre gerar novas oportunidades. Quantas vezes? Setenta vezes sete. Portanto a atitude misericordiosa desperta a criatividade. Acentua o rosto da pessoa, a sua vida, a sua história, o seu dia a dia. Não se liga a um modelo nem a uma receita, mas possui a sadia liberdade de espírito para procurar o melhor para o outro, do modo como a pessoa pode entender. E isto ativa todas as nossas capacidades, toda a nossa inventiva, faz-nos sair do nosso recinto. Nunca são palavras vãs – como diz Paulo – que nos enredam em disputas intermináveis. A ação baseada na esperança de transformação é uma inteligência inquieta que faz com que o coração palpite e confere urgência às nossas mãos. Palpitação ao coração e urgência às mãos. O caminho que vai do coração às nossas mãos.
Ao ver Deus agir assim, pode ocorrer-nos o que aconteceu ao filho mais velho da parábola do pai misericordioso: escandalizamo-nos pelo tratamento que o pai reserva ao filho mais novo que volta. [...] Iniciamos a escandalizar-nos – acontece a todos nós, é como um processo, não? – quando surge o Alzheimer espiritual, quando nos esquecemos do modo como o Senhor nos tratou, quando começamos a julgar e a dividir a sociedade. Invade-nos uma lógica separatista que, sem nos darmos conta, nos leva a fraturar ainda mais a nossa realidade social e comunitária. Fraturamos o presente construindo “facções”. Existe a facção dos bons e dos maus, dos santos e dos pecadores. Esta perda de memória faz-nos esquecer aos poucos a realidade mais rica que temos e a doutrina mais clara a defender. A realidade mais rica e a doutrina mais clara. Embora sejamos pecadores, o Senhor não deixou de nos tratar com misericórdia. [...]

Estamos inseridos numa cultura fraturada, numa cultura que respira descartes. Uma cultura viciada pela exclusão de tudo o que pode atentar contra o interesse de poucos. Uma cultura que deixa ao longo do caminho rostos de idosos, crianças, minorias étnicas que são vistas como ameaças. Uma cultura que aos poucos promove a comodidade de poucos com o aumento do sofrimento de muitos. Uma cultura que não sabe acompanhar os jovens nos seus sonhos, narcotizando-os com promessas de felicidade etérea, e que esconde a memória viva dos idosos. Uma cultura que desperdiçou a sabedoria dos povos indígenas e não soube preservar a riqueza das suas terras. Vivemos numa sociedade que sangra e o preço das suas feridas habitualmente é pago pelos mais indefesos. Mas é precisamente a esta sociedade, a esta cultura que o Senhor nos envia. Envia-nos e impele-nos a levar ali o bálsamo da “sua” presença. Envia-nos com um único programa: praticar a misericórdia, tornar-nos próximos dos milhares de indefesos que caminham na nossa amada terra americana propondo uma atitude diversa.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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