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Passos N.187, Dezembro 2016

ATUALIDADE | SÍRIA

Onde nós estávamos?

por Luca Fiore

Em Aleppo, as bombas continuam a cruzar sobre as cabeças dos civis. Quem é capaz de interrompê-las? A quem, de fato, interessa a paz? A análise de Domenico Quirico, enviado especial do jornal italiano La Stampa, que vê aquele povo viver "o mais extraordinário tesouro que o homem possui"...

As bombas cruzam sobre a cabeça dos habitantes de Aleppo. As relações entre a Casa Branca e o Kremlin continuam a deteriorar-se. As tréguas decididas nos palácios da ONU não duram. Quem, hoje, quer a paz na Síria? Quem age para que, de fato, a guerra termine? O que é preciso fazer para pôr fim ao massacre? A seguir, um diálogo com Domenico Quirico, enviado especial do jornal italiano La Stampa, que acompanhou como testemunha a parábola trágica das Primaveras árabes desde o início. Foi refém dos terroristas por dois dias na Líbia, em 2011, e durante cinco meses na Síria, em 2013. Hoje observa com olhar ferido o quebra-cabeça global, que na batalha pela conquista de Aleppo emerge com sua face mais dramática. Nas palavras de Quirico não se encontram respostas cômodas ou tranquilizadoras, mas um fundo de revolta e impotência. E a saudade de uma narrativa que mostre com verdadeira justiça a epopeia de um povo.

É possível que a paz reine na Síria?
Em minha opinião, a guerra contra o Califado (Estado Islâmico), da qual a Síria é um dos principais teatros, durará ainda algumas décadas, como a Guerra dos Trinta Anos na Europa do século XVII.

O que o leva a pensar assim?
Para interromper a guerra ou chegar a uma trégua é preciso diplomacia. Hoje, nos lugares controlados pelo Califado, a diplomacia está excluída, não tem mais qualquer sentido. Para realizar um acordo são necessárias pelo menos duas pessoas e os atores precisam reconhecer a legitimidade um do outro. O problema é que o Estado Islâmico baseia-se na lógica binária puro-impuro, e tudo o que é diferente deles é impuro: o Califado não faz acordo com ninguém. Para segurá-lo só há um caminho, a sua destruição física.

Quantas e quais são as guerras que se combatem hoje em solo sírio?
Há a guerra do Califado contra todos os outros. Há aquela entre Assad e os seus inimigos sírios, e aqui entram muitos grupos entre os quais as formações residuais da primeira revolução síria, os grupos islamitas que, com nomes diversos, têm em comum o objetivo de instaurar um Estado islâmico... Depois há o conflito entre Arábia Saudita e Irã; o confronto entre a Turquia e os curdos; a luta entre Estados Unidos e Rússia para garantir a influência na região. É uma quantidade enorme de guerras encadeadas uma na outra. É uma trama intrincada, por isso digo que serão necessários muitos anos.

Tanto tempo para chegar aonde?
A única possibilidade é que a comunidade internacional reconheça a falência da Síria e Iraque como Estados e aceite a progressiva constituição de novas entidades ligadas às realidades étnico-religiosas. Penso numa Síria alauíta e basharista, no território hoje controlado por Assad, incluindo Aleppo; um Estado curdo entre a Síria e o Iraque; uma Síria e um Iraque sunita (possivelmente não nas mãos do Califado), e um Iraque xiita controlado pelos iranianos. São povos diferentes que cometeram uma quantidade tão grande de atrocidades recíprocas que torna hoje praticamente impossível a convivência numa único Estado.

Os rebeldes moderados não existem mais?
Em Aleppo existem, mas só formalmente. A maior parte das formações combatentes são compostas por fundamentalistas ligados, com nomes diferentes, à Arábia Saudita e ao Qatar. O objetivo deles, eu dizia, é instaurar a sharia. Há o que resta do velho "Exército sírio livre": eles não eram islamitas e queriam trocar o ditador e, depois, ver o que ser podia construir. Não tinham ideias muito claras, para dizer a verdade. Hoje, em todo caso, não têm mais força.

O senhor esteve em Aleppo. Viu algo sobre o qual os habitantes da cidade podem apoiar alguma esperança para o futuro?
Como se consegue falar de esperança com um cidadão de Aleppo? A cidade, antes ou depois, voltará para o controle de Assad. O problema é a que preço. Quantos terão morrido? O que restará da cidade? Quem conseguiu sobreviver vive naquele inferno não há cinco meses, mas há cinco anos! É um capítulo terrível, doloroso e magnífico. Documenta o quanto o ser humano é capaz de resistir ao sofrimento.

Quais são as suas recordações de lá?
Era o final de 2011, início de 2012. Havia ainda os mercados, as feiras onde eu comprava azeitonas. Até 2013 eu fiquei na parte controlada pelos rebeldes, mas depois do meu sequestro só fiquei na parte oeste. A cidade já estava reduzida a escombros. Fora das padarias havia centenas de pessoas na fila, e acontecia de serem atingidas pelos tiros de morteiro. Uma vida impossível. O que nós não conseguimos entender – inclusive porque a maioria dos que se ocupam dessas coisas na Síria jamais puseram os pés lá – é que a cidade é bombardeada todo dia. Não há pausa. Todos os dias. As pessoas morrem, não há pão, não há água, não há energia elétrica. É uma Stalingrado que já dura cinco anos. O cerco a Stalingrado durou menos que isso.

O senhor falou de uma magnífica capacidade de resistir ao sofrimento. Como explicá-la?
A relação do homem com a dor é o tesouro mais extraordinário que temos. A nossa capacidade de viver e refletir o que existe em torno de nós. É a vitalidade do sofrimento. Para descrevê-la não precisamos de um especialista em geopolítica; ele não entenderia nada. Precisaríamos de um Mauriac, de um Dostoiévski. Aleppo deve ser descrita como uma experiência mística coletiva, de centenas de milhares de pessoas. Infelizmente, nunca haverá uma voz à altura dessa epopeia feroz e maravilhosa, dolente e inesquecível. Aleppo não tem o Vasilij Grossman que merece.

Que impressão teve da presença da Igreja lá?
Vi uma comunidade sólida, que não tem medo. Estão na parte controlada pelo regime; se morassem na outra parte já teriam sido todos mortos. Visitei os franciscanos que têm um grande complexo imobiliário para a instrução dos jovens no coração da cidade. Eles estão lá, jamais se mudaram.

Se o senhor fosse convidado para um dos colóquios em Genebra ou Lausanne, onde se tentam realizar colóquios de paz, e lhe pedissem para dar um depoimento, o que lhes diria?
Procuraria contar-lhes como é o dia a dia em Aleppo, tal como eu o vivi. Quando caminhei pela parte leste da cidade, não havia lugar onde pudesse ir para dormir, e me deram um cômodo num hospital. Uma cama sobre a qual, durante o dia, cuidavam dos feridos. Quando eu retornava dos meus giros pela cidade "para ver a guerra", me esperava essa cama, que era usada para levar os pacientes para a sala de cirurgia. Eu a encontrava suja de sangue. As pessoas eram descarregadas do carro ou caminhão diante do hospital. Homens despedaçados por morteiros, estilhaços de bomba. Em alguns a casa havia caído sobre eles. O sangue era canalizado para ser despejado diretamente na rua... Então gostaria de perguntar-lhes onde eles estavam quando houve o primeiro dos 400 mil mortos da tragédia síria. O que faziam, o que discutiam quando as vítimas passaram de 10 mil para 100 mil, para 300 mil?

Há alguns meses o senhor recebeu a notícia de que alguns dos seus sequestradores tinham sido mortos. Qual foi seu primeiro pensamento?
Que eu não poderia mais falar com eles, pois teria lhes perguntado como podiam rezar tranquilamente e com fervor sabendo que eu era inocente de qualquer culpa em relação a eles. Eu era simplesmente uma testemunha, não um espião. Tinha ido lá para documentar o sofrimento dos sírios e, de certo modo, também o deles.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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