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Passos N.187, Dezembro 2016

CULTURA

Um místico como Nobel

por Jason Blakely

Da cultura liberal ao relacionamento com os beat, de Rimbaud a Santo Agostinho, retrato ponderado de Bob Dylan, um ícone da música que entrou surpreendentemente no panteão da Literatura. Graças (sobretudo) a um coração sempre inquieto

Bob Dylan é o Prêmio Nobel de Literatura de 2016. Para além da discussão sobre a oportunidade de atribuir a um compositor as honras reservadas a romancistas e poetas “laureados”, nos Estados Unidos reabre-se a discussão sobre o peso político da sua arte. É um debate que não evolui desde que Dylan apareceu em cena, nos Anos Sessenta. No entanto, há cinco décadas é ele mesmo quem exprime claramente seu senso de alienação em relação ao mundo de certa cultura política americana liberal e de esquerda que o reivindica como uma de suas bandeiras. Em uma entrevista de 2004 declarou que preferiria ser visto como “um beberrão... um louco, um sionista, um budista, um católico ou um mórmon”, do que como “o arcebispo da anarquia”, que é um modo para dizer “porta voz” da esquerda dos Anos Sessenta.
Isso gerou uma grande confusão entre muitos de seus fãs. E a sensação de desorientação é compreensível. Depois de tudo, Dylan alcançou fama como o maior autor do movimento de protesto. No entanto, hoje, poucos realmente entendem a perspectiva que está por trás das suas posições.

Menino prodígio. É verdade que Dylan, pelo menos na fase inicial, pertencia à tradição do folk de esquerda e do movimento dos compositores intérpretes. Tratava-se de uma onda musical populista puramente americana que, na metade do século passado, utilizava músicas folk para gerar conhecimento de problemas como o racismo, a exploração dos trabalhadores e o abuso de poder por parte das elites econômicas. O objetivo do movimento era – também – provocar uma mudança social. Dylan era o menino prodígio desse movimento. Antes de completar vinte e cinco anos, já tinha escrito canções que o deixaram famoso.
Blowin’ in the Wind é desse período e é considerada o hino tanto do movimento pelos direitos civis quanto do movimento pacifista. São palavras que ficaram tão conhecidas que perderam parte da sua força poética. No entanto, nelas permanece o sussurro abafado de seu rugido original, de grande alcance na época: “Quantos caminhos um homem deve percorrer / antes que possa ser chamado de homem?... Quantas vezes deverão voar balas de canhão / antes que sejam banidas para sempre?”. Para Dylan, a resposta sopra com o vento. O vento conserva nossas aspirações, nossas esperanças, nossos sonhos de uma sociedade mais igualitária, mas tal justiça não tem ainda um fundamento sólido e continua inalcançável.
No entanto, a resposta de Dylan, vaga e mística, reporta-se a uma segunda tradição que inspira sua arte – uma realidade que acabou tendo uma influência muito mais forte e contribuiu para gerar atritos entre ele e a esquerda: a poesia beat. Num primeiro olhar, os beat estão perfeitamente em harmonia com os ideais liberais. Depois de tudo, o movimento beat normalmente é definido como o precursor da rejeição do conformismo, do consumismo e do tradicionalismo por parte da contracultura hippie. Como os românticos, que em parte os inspiraram, os beat viam na arte uma busca estática da iluminação espiritual contraposta ao hiper-racionalismo da Idade Moderna. Este objetivo às vezes era perseguido através das religiões orientais como o Budismo, mas ainda mais frequentemente junto com uma experimentação antimoralista de drogas, sexo, arte e uma contínua identificação com os excluídos e os diferentes da sociedade americana.
Dylan logo fez contato com os poetas beat nos cafés do Greenwich Village onde se apresentavam os músicos folk. Começou a se aproximar da sensibilidade e do estilo deles, inserindo em seus textos expressões cultas e gírias, temáticas ligadas ao consumismo desenfreado e ao materialismo espiritualmente árido da América pós-guerra. It’s Alright Ma, cujo texto se espalhou como fogo, contém versos furibundos sobre o achatamento espiritual das pessoas em sua volta, por causa da cultura comercial: “Os outdoors enganam você / fazem você pensar que é único / que pode fazer aquilo que nunca foi feito / que pode vencer aquilo que nunca foi vencido / enquanto a vida lá fora continua ao seu redor”.

Busca dolorosa. O antimaterialismo beat tinha grandes pontos de contato com o ceticismo da esquerda em relação ao capitalismo. Mas o fato é que essa poética tinha um horizonte muito mais amplo do que a política. Os beat eram pesquisadores – tendiam ao transcendente. Sua busca se voltava para a recuperação de um senso religioso mais profundo, que estava sufocado no mundo moderno. Normalmente isso os colocava em aberto contraste com a esquerda tradicional, que era rigorosamente laica e via a existência humana como um fator principalmente político. Jack Kerouac, no seu romance Desolation Angels (que mais tarde inspirou Desolation Row, de Dylan), descrevia assim esta tensão: “Estudei na Columbia, onde a única coisa que tentavam nos ensinar era Marx, como se isso me importasse. Faltava às aulas, ficava no meu quarto e dormia nos braços de Deus... adaptava-me mais à Rússia do século XIX do que a esta América moderna feita de cabelos escovados e semblantes carrancudos dentro dos Pontiac”.
O tema beat da busca espiritual dentro da desolação de uma América materialista é claramente evidente em It’s Alright Ma, de Dylan. Esta canção contém a declaração mais sintética já escrita sobre a busca espiritual dos beat, o famoso aforismo: “Não está ocupado em nascer, está ocupado em morrer”. O objetivo espiritual da vida humana não era necessariamente de natureza política, mas consistia mais em renascer continuamente – ser como crianças diante da beleza do cosmo, ser abertos e entusiasmados com a realidade. Como Dylan diria muito mais tarde, uma pessoa deve empenhar-se espiritualmente em ficar Forever Young, jovem para sempre. O objetivo primário da arte era a iluminação religiosa e a não mobilização ideológica.
Dos beat, Dylan herdou a linguagem metafórica, o ecletismo e a colagem de fragmentos líricos modernistas. Mas para entender sua poética é necessário olhar para a influência do simbolismo francês e sua tentativa de quebrar a relação entre significante e significado.
Dylan conhece o trabalho do poeta simbolista francês Arthur Rimbaud graças a Suze Rotolo, sua companheira durante os anos do Greenwich Village, de 1961 a 1964. Rimbaud pensava que a arte deveria exprimir verdades transcendentes que só podiam ser comunicadas de modo indireto. Reportava-se aos românticos, à sua crítica do culto iluminista da razão e da convicção de que a ideologia racionalista poderia salvar o mundo. No entanto, Rimbaud acreditava que o objetivo do artista era o conhecimento místico – uma busca dolorosa por verdades profundas que transcendiam qualquer política ou ideologia. “Afirmo que deve ser um visionário”, escreveu em 1871: “Um poeta torna-se visionário perseguindo uma longa, interminável e sistemática desordem de todos os sentidos. Todas as formas de amor, sofrimento, loucura; vasculha em si mesmo, exaure-se de si mesmo... precisa de uma fé imensa, de uma força sobre-humana... para alcançar o que é desconhecido”.

A nota cósmica. Em Mr. Tambourine Man Dylan se inspira no chamado de Rimbaud à viagem mística através do sofrimento e do amor, à busca do que é “indefinível”. O percurso do protagonista torna-se aos poucos mais irreal, levando-o através “dos anéis de fumaça da minha mente / lá embaixo, perto das ruínas nebulosas do tempo, muito depois das folhas geladas / as árvores malditas e aterrorizadas, em direção à praia tempestuosa / distante do curso contornado pela tristeza louca”. Mas quem é realmente o tambourine man? Por que sua viagem implica a perda de si mesmo? Os símbolos, aqui, superam o significado das palavras, apontam além.
O uso que Dylan faz dos conceitos do beat e do simbolismo francês (que veem o poeta como um místico) para rejeitar a redução a ideologia da expressão do indivíduo através da arte, é evidente em uma entrevista concedida em 1963 a Studs Terkel, famoso jornalista de esquerda da época. Dylan havia tocado algumas canções durante o programa de rádio de Terkel, entre elas Hard Rain.
Terkel: “Tomemos esta canção que você cantou. Na minha opinião, Hard Rain’s Gonna Fall é um clássico, mesmo que tenha nascido da sua opinião sobre a chuva radioativa”.
Dylan: “Não. Não! Não é chuva radioativa. Outros também pensaram que era isso... não é chuva radioativa. É somente chuva torrencial”.
Terkel: “Chuva torrencial?”
Dylan: “Não é chuva radioativa. É chuva torrencial”.
O que parece uma tentativa irreverente por parte de Dylan de reduzir o significado da canção ao que é literal, é, na verdade, um gesto de proteção em relação aos símbolos que ela contém. O símbolo se refere a um nível de realidade que não pode ser completamente explicado pela política ou pela linguagem.
Este distanciamento nunca foi uma coisa evidente. Em 1968, Dylan reescreve o folk tradicional I dreamed I saw Joe Hill transformando-o em I Dreamed I Saw St. Augustine. A composição original tornara-se um clássico do folk, uma peça claramente da esquerda proposta por Pete Seeger e Joan Baez. Conta a história de um sindicalista, Joseph Hillström, cuja morte violenta tinha se tornado um símbolo do martírio laico. Em contraste, a peça de Dylan substitui Joe Hill por Agostinho de Hipona. A canção começa com as mesmas palavras, mas os nomes são trocados: “Sonhei que vi Santo Agostinho / vivo como você e eu”. Dylan chega a imaginar o santo nos advertindo, dizendo que “entre vocês não há nenhum mártir que possam chamar de seu” (hoje não temos nenhuma ideia do que são os verdadeiros mártires) e que somos todos “reis e rainhas muito dotados”, mas não entendemos o quanto realmente valemos. Esta é a “triste queixa” de Santo Agostinho ao falar de um mundo aprisionado na gaiola do desencanto espiritual.
Além do mais, na balada original ficava claro qual era o culpado pela injustiça – os “patrões”. Mas na versão de Dylan todos nós tivemos um papel no assassinato de Santo Agostinho (assim como toda a humanidade, na teologia cristã, está envolvida na crucificação de Jesus). A busca religiosa ou espiritual inclui e informa a política sem, porém, ser redutível a ela.
O que muitos ouvintes de Dylan ainda têm dificuldade para compreender é essa sua nota cósmica e mística. Os problemas subjacentes àquilo sobre o que a esquerda e a direita americanas discutem (ambas “estão distantes na torre de comando”) são muito mais profundos do que as duas partes reconhecem. Talvez o Prêmio Nobel possa servir para nos fazer escutar Dylan com mais atenção. Para entendê-lo mais do que o fizemos até agora.

O AUTOR
Jason Bakley é professor associado de teoria política na Pepperdine University. Seu livro, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor, and the Demise of Naturalism acabou de ser lançado, em inglês, pela University of Notre Dame Press.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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