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Passos N.188, Fevereiro 2017

RUBRICAS

Cartas

CARITATIVA: A EXPERIÊNCIA DO CORAÇÃO BOM
A última vez que fiz caritativa seriamente foi há cerca de trinta anos. Não que não tenha feito coisas com gratuidade ou não tenha ajudado pessoas, mas não tinha mais levado a sério este gesto metodicamente e com empenho. Então, uma amiga da Fraternidade convidou minha mulher para ir aos sábados à tarde encontrar pessoas com problemas psicofísicos. Minha mulher me convidou para ir, mas nem este convite levei a sério: trabalhando intensamente durante toda a semana, no sábado sempre há algo para fazer, mesmo os filhos já sendo autônomos. Tem a casa, preciso ler um pouco, fazer um pouco de esporte. Porém, desta vez, minha mulher insistiu. Fui mais para deixá-la contente. O primeiro impacto foi muito duro. Estes jovens, que na verdade não são mais jovens, vieram até mim correndo, um deles babava por causa de um problema no palato, o outro tinha dificuldade de falar, mas se esforçava para explicar que era o responsável por uma pequena horta e lhe disseram que eu era agrônomo. Abraçaram-me como se já me conhecessem e eu me perguntava, completamente perdido, onde tinha acabado. Ficamos com eles durante uma hora tentando cantar músicas que eles sabiam, e, mesmo as que eu não gostava, cantei a plenos pulmões. Voltei para casa perturbado. Tinha ficado ali à disposição deles, dando orientações sobre hortas e cantando ao lado daquele que babava e que continuava me abraçando. Depois de duas semanas, perguntei a minha mulher sobre aqueles jovens. Voltamos lá. E depois de voltar muitas outras vezes começamos a encerrar aquela hora de companhia com uma oração a Nossa Senhora para oferecer o gesto e para poder entendê-lo mais a fundo. Agora, para mim, essa hora é importante e a espero com alegria. Neste gesto, experimento o que significa ter um coração bom. Passar um pouco de tempo com aquelas pessoas, com um programa que muda a cada vez, com uma total disponibilidade e o coração aberto, está mudando também o meu cotidiano. Sou empresário e estou repleto da mentalidade moderna, o que me leva a tentar obter o máximo resultado com o mínimo esforço, visto que para mim nada é óbvio, nem o salário. Vivo apressado e preciso correr, mas este momento de caritativa está quebrando o meu fechamento em mim mesmo, está acabando com aquela maldade última que o mundo coloca em mim tentando convencer-me de que se não formos assim, não vencemos. A coisa mais interessante foi descobrir que a experiência do coração bom não é uma banal ingenuidade infantil, mas que a minha felicidade passa por aí, também nas questões de trabalho.
Simão, Rímini (Itália)

ÁFRICA
“PRECISO DE CRISTO”

Os dois dias que passamos com Davide Properi (vice-presidente da Fraternidade de CL) foram, para mim, um momento decisivo: agora, olho para as coisas de modo diferente. A colocação de Arnold, “aquilo que carrego é o meu nada”, provocou-me a ir a fundo no significado de “nada”. O nada que sou não se contrapõe ao meu valor, nem à minha grandeza, mas me faz entender que eu dependo de um outro, que preciso de um outro para viver: preciso de Cristo. Acredito que isso seja um dom, porque Deus veio, morreu por mim, entrou na história por mim para que eu soubesse que mesmo sendo uma nulidade, um pecador, ele cuida de mim e morre por mim em cada instante do meu nada. A consciência do meu nada faz-me desejá-Lo, faz com que eu me identifique com meus amigos de Comunhão e Libertação com os quais desejo viver uma pertença, porque posso confiar neles totalmente; o meu nada deu-me uma razão para seguir.
Gladys, Campala (Uganda)

DEBAIXO DO VIADUTO
UMA ROSA QUE DERRUBA MUROS

Caro Julián, meu filho de dez anos me deu de presente, comprado com as economias dele, um maravilhoso ramo florido e uma enorme rosa vermelha confeccionada à parte. Os dois presentes ele me entregou enquanto íamos para a missa. Na volta, caminhávamos por debaixo do viaduto da avenida, um lugar escuro onde as pessoas vivem ao relento, em tendas improvisadas ao longo das paredes, sem serviços higiênicos, e onde muitos jovens e adultos se encontram para drogar-se, beber e delinquir. Passar por essa rua sempre me causa medo, o odor é terrível. Em geral, passo com pressa, sem olhar em volta para não provocar reações. Mas nesse domingo pensei que a mulher que estava sentada ali, sob o viaduto, também podia ser uma mãe, assim olhei para o meu ramo e minha flor, me aproximei e lhe disse: “Bom dia” e lhe dei de presente minha belíssima rosa vermelha. Muito surpresa, ela me agradeceu. Em casa, meu filho me repreendeu: “o presente era seu”, ao que eu lhe respondi: “Pedrinho, o amor que você me deu com essas flores foi tão grande que eu – que me sinto muito amada por Jesus e por vocês – posso compartilhá-lo com outras pessoas, para que elas também se sintam amadas”. Fiquei surpresa comigo mesma pelo que disse ao meu filho, apesar do medo que sentia daquelas pessoas. Mas o que mais me impressiona é que, desde então, toda vez que passo por lá, aquela mulher sorri, e acena com o braço: “Olá, senhora!”. E o muro do medo e da indiferença ruiu nessa saudação tão simples. Ela se tornou “uma vizinha”. O diálogo de que você nos falou, você e o Papa Francisco, para mim significa transmitir àqueles que me rodeiam o amor que Deus tem por mim. No meu país, neste período, se fala muito de insegurança, e agora eu não posso pensar nesse problema sem que me venha à mente aquela rosa e aquela saudação da minha nova vizinha.
Laura, Buenos Aires (Argentina)

CARO PAPA, UM PEDAÇO DO MEU CORAÇÃO AGORA É SEU
Depois do encontro com o Papa, um detento da penitenciária Due Palazzi, de Pádua, escreveu para ele.
Caro Papa Francisco, aqueles vinte e sete detentos que o senhor recebeu no domingo, 6 de novembro (e acredito que, também, as outras pessoas presentes, em primeiro lugar padre Marco Pozza, nosso pároco na Due Palazzi, de Pádua) ainda estão sonhando e não têm a menor intenção de acordar, porque os sonhos têm a duração que lhes damos, sobretudo se, como o encontro com o senhor, o acontecimento é um daqueles que não se repetem. As ruas de Roma, alagadas por aquela tromba de água e vento, naquela tarde viram uma comitiva encharcada que, a passos largos, se encaminhava à sua residência. Quando recebemos a notícia de que nos receberia, aquele céu escuro nos pareceu sereno. Quando o senhor apareceu não acreditávamos nos nossos olhos. O carisma da simplicidade que emanava da sua pessoa, e não o da reverência, fez com que ficássemos confortáveis e, sentindo-nos acolhidos, conseguimos falar de nós. O senhor alegrou nossas vidas lembrando-nos de que a esperança nunca deve se afastar dos nossos pensamentos porque Deus está conosco e que os últimos, como são definidos e tratados por muitos, podem ser e são filhos de Deus. Vivemos na total escuridão, esbarrando em todos os “cantos” de que uma estrutura como a penitenciária está cheia. Por causa das batidas, a dor torna-se quase amiga e não a sentimos mais, embora os hematomas permaneçam e se renovem todas as vezes que alguém nos lembra quem fomos e o que nos corrompeu. E isso acontece com frequência, mas o senhor, ao se interessar por nós, permitiu que a dignidade que faz do homem uma criatura de Deus nos fosse “devolvida”, sem insistir na condenação imposta pelo homem e que, infelizmente, já nos pertence. Obrigado, Papa Francisco, obrigado por existir e por ter se ocupado de nós, os esquecidos, que sobrevivem privados do bem mais precioso que Deus deu ao homem: a liberdade. Nunca pedirei que me devolva o pedacinho de coração que, no dia 6 de novembro de 2016, levou consigo daquela sala; deixo-o com o senhor com prazer, assim como levo o abraço recebido pelo meu aniversário. Que Deus lhe dê a força para prosseguir nos seus propósitos de paz e unidade do mundo. Com bem e esperança, um abraço de um homem do Sul como o senhor.
Mario, Pádua (Itália)

FUNDO COMUM
DOAÇÃO EXTRA

Mais de vinte e um anos depois da falência da empresa para a qual trabalhava, recebi o dinheiro dos salários atrasados. Para exprimir a minha gratidão à Fraternidade, em concordância com minha família, decidi fazer uma doação extra pela construção da obra comum. Como Julián Carrón nos repetiu muitas vezes, precisamos obedecer à modalidade com a qual o Mistério nos dá os recursos e, tendo me dado cinco, não posso fazer quatro e meio. A amizade humana daqueles que foram investidos pelo encontro com Ele é capaz de modelar a realidade com verdade; desejo que o nosso caminho juntos seja para isso, como um grande dom que deve ser alimentado e pedido.
Giovanni

MISERICÓRDIA POR MIM
Hoje sofri uma tentativa de assalto e bem inesperadamente... O fato que me chama atenção foi a minha distração. Pedalava e só percebi mesmo o assalto já no ato. Confesso que em outros momentos já havia percebido o risco e me atentei, evitando assim a ameaça. Em relação a isso, sempre considerei como algo dado por um Outro. Pois, quanto mais buscava o relacionamento comigo e este Tu, percebia que estava mais atenta à realidade e aos seus riscos. Hoje, por outro lado, apesar de estar rezando em intenção aos meus e a CL enquanto pedalava, reconheço que havia uma distração até no meu pedido. Eu me concentrava em ouvir a música que tocava. Afinal, o assaltante conseguiu me segurar, empurrando-me contra o muro do viaduto. Tudo muito rápido, inclusive os pensamentos (o que ele pediria e o perigo sobre a minha vida). No entanto, enquanto isso, um motociclista e um motorista que passavam perceberam e buzinaram. Neste momento, fazia o movimento de pegar o celular para entregá-lo. Mas, com estas buzinas pude ficar mais tranquila e olhei para ele com muita serenidade e pedi que ele parasse com aquela ideia, era o mais sensato: “Vamos seguir em paz...”. Além de indicar o alerta da buzina. Por fim, ele desistiu e disse “Tá bom! Vai! Vai com Deus!”. O mesmo disse para ele: “Também, vai com Deus!”. Ao seguir, olhei para trás para ter certeza da sua desistência, vindo em seguida o desejo de agradecer e o desejo de rezar por ele uma Ave Maria. Depois, pude avistar o motociclista parado para saber de mim, dizendo que iria voltar. Ao tranquilizá-lo sobre o ocorrido, continuei agradecendo-o muito e refleti em como ainda existem sim pessoas atentas ao bem do outro, se preocupando com o outro. Agora, ao final do dia, estou com o pé engessado devido ao empurrão do assaltante e extremamente comovida ao me deparar com o dom que estou recebendo desde então: fui protegida, fui conduzida e tive compaixão pelo assaltante. Eu também tinha diversos planos para hoje (e para o mês!) e que dependiam deste pé direito engessado. Contudo, o que prevalece é saber o que Cristo quer me dar nestas três semanas como dependente do empenho e do tempo a mais de todos os outros ao meu redor e de como voltarei a olhar para a origem do meu desejo em executar os projetos de trabalho que tenho. Estou querendo descobrir como segui-Lo em tudo isso sem a pretensão de definir o que é que serve para mim, ou seja, sem a ilusão de que o que mais importa é fazer por impulso. Caso contrário, não poderei olhar para a Presença dada e que quer me atrair a Si, sendo a única capaz de dar a consciência do que mais importa e de construir. Finalmente, o que vivi me impele a escrever para entender e me “obriga” a olhar objetivamente para Cristo. Porque me deu a resposta de que eu não posso ser inútil. Eu não estou parada. Eu existo. E, por isso, eu quero viver ainda mais o agora e o futuro provando mais uma vez que a minha verdadeira necessidade é d’Ele diante do que aconteceu e do que vai continuar acontecendo, mesmo que eu tenha que quebrar algo.
Joanna, Aracaju (SE)

CENTRO DE ACOLHIDA
NÓS COMO ELES

Falando com uma minha colega, descobri que ela é voluntária num centro de acolhimento para imigrantes, na Alemanha, próximo a Schaffhausen. Fiquei muito impressionada com sua narrativa e com sua atitude de extrema humanidade em relação a essas pessoas. Percebia-se que está ali porque elas estão em seu coração. Não é uma mera ação de voluntariado, feita por um senso de piedade, mas porque, como qualquer um de nós, tem dentro de si a necessidade de fazer o bem e de olhar as pessoas pelo que elas são, homens e mulheres como todos nós. Fiquei impressionada com o fato de que até mesmo uma colega não-crente, ou pelo menos não-praticante, possa ser para mim sinal do Mistério encarnado. Perguntei se eu podia ir com ela encontrar essas pessoas e me contou que a cada dois sábados eles se encontram para fazer um lanche e ficam umas duas horas juntos. Assim, propus a alguns amigos que me acompanhassem, levando em conta o que está escrito no livreto da caritativa: “Quando há algo de belo em nós, nos sentimos estimulados a comunicá-lo aos outros. Quando a gente vê outros que estão piores do que nós, nos sentimos estimulados a ajudá-los com algo nosso. Tal exigência é tão original, tão natural, que existe em nós antes mesmo que estejamos conscientes dela e nós a chamamos justamente de lei da existência”. Éramos oito, mais os nossos dois filhos. Não fizemos nada de especial, ficamos juntos com esses jovens imigrantes, em sua maioria muito jovens, conversamos, alguns participaram de jogos coletivos. Foi uma tarde muito bonita. Primeiramente, vimos com nossos próprios olhos que o que está acontecendo neste especial período histórico, esses fluxos migratórios, é mesmo uma coisa imensa e impensável: são engenheiros, pessoas instruídas, gente como nós. Eu mesma, se não tivesse nascido aqui, poderia ter nascido em Aleppo. Mas a coisa mais bela e inesperada foi tomar consciência de que, como foi dito na Escola de Comunidade, “A certeza de ser amado me permite abraçar a realidade”. Ter ao meu lado a companhia dos meus amigos é, de fato, o testemunho de ser amada, de que há alguém que me quer bem. E só com essa certeza é que consigo abraçar a realidade, e até mesmo um simples bate-papo com um jovem sírio enche o meu coração de gratidão.
Sara, Zurique (Suíça)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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