Estivemos em alguns vilarejos “fantasmas” em torno de Mosul, junto aos cristãos caçados pelo Estado Islâmico. Eles só podem ficar poucas horas em suas habitações, na planície de Nínive, onde ainda há combates. No entanto, certos corações já estão libertados
KEREMLES
Almass fala no dialeto siríaco de Keremles, um dos vilarejos cristãos da planície de Nínive. Em Qaraqosh, a poucos quilômetros de distância, fala-se outro dialeto. Keremles tem uma longa história. Sua origem remonta à época dos Sumérios. Ainda hoje, no centro, agora abandonado, há edifícios de arquitetura popular que lembram as formas assírias. A sua igreja mais antiga, a de São Jorge, remonta ao século VI.
Almass, mãe de família, enxuga as lágrimas com um lenço de papel. Chora ao ver aquela que era a sua casa antes que o Estado Islâmico (EI) obrigasse a ela e à sua família a fugir, numa noite que ela lembra com dor. O azeite sobre a bancada da cozinha, as camas no terraço (nas noites de verão, com temperatura a 50 graus, se dorme ali), a escova de dentes no lavatório, falam daquelas horas em que deixou tudo para trás. “Os meus filhos estavam dormindo, era meia-noite, eu os acordei e embarcamos no carro”, lembra. Antes de abandonar o vilarejo, depois de dois anos de ocupação, o EI queimou a sua casa, como fez com 80% das casas de Keremles.
Já se passaram dois verões, mas Almass não encontra uma explicação. “Vivíamos bem, de manhã eu ia à igreja rezar e depois eu voltava para os trabalhos domésticos”. Seu marido era um homem que fazia muitas coisas, como quase todos os moradores do vilarejo. Dedicava algumas horas ao trabalho agrícola, trabalhava como pedreiro e também numa oficina mecânica. Ela o indica com orgulho. Pregada na porta, uma oração ao “Hóspede”. Uma figueira resistente, no jardim onde estavam as galinhas, suporta a guerra. O marido é diácono e dava aulas às crianças, na escola da igreja, sobre a escritura caldeia, uma variante do aramaico. Por isso, cuidava muito bem de uma rica biblioteca, contígua à casa, que agora está reduzida a cinzas.
Atravessamos o vilarejo desolado em companhia de Almass e do seu marido. Brilha o sol, e sob uma tenra luz de inverno que aquece a alma tornam-se agradáveis até mesmo as ruas desertas, o abandono e a solidão. A igreja paroquial salvou-se do fogo, mas as cruzes ficaram, como sempre, mutiladas. Seu átrio é o lugar do duplo martírio de um sacerdote. Padre Ragheed, natural de Keremles, foi morto muito jovem pela Al Qaeda em Mosul. Eles o haviam ameaçado de morte, mas ele não quis abandonar os seus fiéis. Agora o seu túmulo, nesta que era a sua paróquia, foi profanado. O EI não o deixou repousar em paz. Também foram profanados os túmulos em volta da vizinha igreja de São Jorge. Um caixão sem tampa jaz na entrada.
Almass aperta o lenço úmido das suas lágrimas entre as mãos, e solta um suspiro. Chora com os olhos, mas sua boca sorri para mim. “Nossa vida não pode ser outra coisa senão confiar em Deus, rezar a Ele”, diz. Poucas palavras, claras, certeiras. Poucas palavras que tornam sólida uma vida difícil.
Keremles tem muitos túneis, que o EI utilizava para fugir. Entramos num deles, com uns setenta metros de comprimento. Ao longo das paredes, sacos de terra. Meio enterrado no chão, o calçado de algum miliciano. E o lixo da guerra: roupa suja, uma embalagem aberta de queijo de marca egípcia, restos de uma fogueira, traços escuros de um gerador e nomes de milicianos escritos aqui e ali.
Os milicianos e o pôr-do-sol. Como todos os cristãos da planície de Nínive, Almass tinha o hábito de visitar o Mosteiro de São Benham, construído no século IV. Nessa região, junto ao túmulo de um dos fundadores do cristianismo, foi construída uma igreja ricamente decorada num fascinante estilo oriental. É circundada por muitos locais onde as famílias costumavam passar os dias de celebração e festa.
Dirigimo-nos até o Mosteiro, que se encontra numa zona controlada pelas milícias xiitas. Por isso tivemos que percorrer nove quilômetros fora de Mosul. Deparamo-nos com um caminhão carregado de cadáveres envoltos em tapetes. Os xiitas adornam os postos de controle com bandeiras coloridas e flores de plástico. E mais uma vez o lixo da guerra. Milicianos muito jovens, sujos como mendigos, carregam os fuzis com uma ligeireza que dá medo. O Mosteiro de São Benham foi transformado num centro operativo da Brigada de Babilônia, onde lutam juntos xiitas e cristãos (o EI é uma organização de origem sunita e combate não só os cristãos, mas também os muçulmanos xiitas). A cúpula que cobre o túmulo de São Benham foi abatida com dinamite. Permanecem apenas ruínas do monumento cristão mais importante da planície de Nínive. Junto às ruínas, dois troncos de metal transformados em bombas, com o detonador pronto para fazê-los explodir. O Mosteiro novo, com os seus belos portais do século XVI, esculpidos em pedra, está de pé. Mas a estátua de São Benham foi mutilada. As doze figuras dos apóstolos foram destruídas a golpes de machado. Quem nos mostra os objetos é um miliciano, que faz o sinal da cruz diante de uma imagem de Maria, da qual cortaram as mãos. Seus companheiros jogam baralho debaixo desse sol que aquece suavemente. Um deles está de terno e chinelos, o outro, em uniforme militar e uma malha esportiva. E por toda parte, a sujeira da guerra. De um lado do Mosteiro sai um forte cheiro de urina. Esses jovens que seguram fuzis com o carregador inserido, precisariam de uma boa ducha de água há dias, há semanas. Um automóvel civil lhes distribui a comida, arroz com frango.
Começa a cair a tarde na planície de Nínive. Rapidamente nos movemos para sair da zona militar. Cruzamos com um comboio de soldados americanos, enormes carros armados, cor de terra. Um helicóptero gigantesco, como um grande monstro alado, voa lentamente sobre nossas cabeças, com um barulho ensurdecedor. Quando ele se afasta, volta a reinar o silêncio. Nas últimas luzes do pôr do sol delineia-se no horizonte, diante dos nossos olhos, uma terra cheia de nuances, terra trabalhada, fecunda, ventilada, já coberta pelos ramos de trigo. Uma terra que, talvez, os cristãos de Nínive perderam para sempre.
Almass olha de longe. É uma mulher de poucas palavras. Sorri para nós. “A nossa vida não pode ser outra coisa se não confiar em Deus, rezar a Ele”, diz agora o seu rosto sereno.
TEL ESKOF
Marvin tem vinte anos. Alto, magro, discreto, doce. Jamais tinha saído do seu vilarejo, Tel Eskof, até que foi obrigado a fugir do EI. Caminha conosco por uma localidade que chegou a ter quatro mil habitantes e que agora está deserta. Só algumas equipes de policiais rompem o silêncio na periferia. Mas Marvin gosta do centro, da casa dos seus avós e do mercado onde ajudava um dos seus amigos. Nesta parte de Teleskof as construções são do tipo tradicional, algumas poderiam ser definidas como assírias. Cubos perfeitos externamente, paredes de barro, grandes terraços.
Marvin insiste para irmos visitar o seu avô no cemitério. Descobrimos que o túmulo dele está aberto e foi profanado. Permanecemos em silêncio. Depois de alguns minutos, Marvin, emocionado, nos conta: “Eles não querem deixar que os mortos repousem. Este é um lugar de paz, meu avô está repousando”. Há outros túmulos violados, as cruzes estão quebradas, no chão.
Caminhamos até a casa de Marvin. Um dos becos está cheio de calçados. Talvez não agradaram ao EI, ou talvez algum saqueador os experimentou, não gostou e os largou ali. Muito silêncio. A destruição não é assim tão forte como em outros lugares. As casas ainda estão de pé, mas talvez por isso a desolação é maior. Um vilarejo, mas vazio, como se tivesse caído ali uma bomba que atingiu somente as vidas humanas. Uma aldeia sem pessoas, os comércios abandonados às pressas, os terraços sem voz e sem canto, constituem um imenso grito de ausência.
A casa de Marvin em Tel Eskof é grande, com uma ampla cozinha no andar térreo. O pai se dedica ao trabalho no campo, teve seis filhos. Entramos no quarto dos dois filhos maiores. “Quase todas as lembranças da minha infância estão aqui”, diz Marvin. “Mas toda vez que venho e abro esta porta, o que me vem à memória é aquele dia em que às dez da noite eu coloquei um pouco de roupa na bolsa e chorando eu a fechei, para escapar do EI. Todos nós chorávamos. Meu pai dizia que precisávamos ir embora porque eles estavam avançando até Tel Eskof”.
Marvin senta-se numa cadeira, entre duas camas. No chão estão suas roupas, que o EI ou os saqueadores arrancaram do armário. Cadeiras quebradas, pedaços de um espelho sobre as camas sem colchão. Tudo destruído, imundo.
Palavras sem raiva. “Nos primeiros meses depois que fugi eu estava muito confuso”, conta Marvin. “Eu acreditava em Deus, mas não ia com frequência à Igreja. Decidi começar a frequentá-la mais. Perguntava a Deus por que havia permitido aquilo que tinha acontecido. Eu era um jovem normal, queria ir à escola, brincar com os amigos. Jamais tinha saído de Tel Eskof. Perguntava a Deus por que havia permitido que fizessem aquilo conosco”.
A voz de Marvin começa a falhar, respira devagar depois de cada frase dita no inglês que aprendeu sem jamais ter saído de um vilarejo perdido no norte do Iraque. “Nestes três anos li a Bíblia, encontrei pessoas que me ajudaram, me aproximei mais da Igreja, e agora sei que Deus está ao meu lado, me sustenta, me acompanha”. Quando diz “ao meu lado” estica a mão e indica um espaço ao seu lado. “Estes três anos foram duros, mas eu agora sou diferente. Quero voltar o mais rápido possível, voltar a dormir aqui no meu quarto, na minha cama”.
Marvin, vinte anos. Um rosto doce, uma certeza firme, palavra sem raiva, sem ódio. Uma vítima do genocídio de Nínive com o coração libertado da espiral de ódio que o EI espalhou. O mal dos terroristas não é para sempre. Marvin, vinte anos, um homem plenamente adulto, reconstruído. Mais cristão, mais humano do que antes da fuga. As aldeias, as ruas, os becos se reconstruirão com muito trabalho, com dinheiro, com a ajuda internacional. Quem curará as feridas do coração? Quem voltará a dar paz aos mortos e aos vivos?
ERBIL
A criança da primeira fila adormeceu. Tem três anos e não consegue seguir a aula de Neval Nabil, a professora de inglês que cuida da escola elementar do campo de refugiados Ashti2, no vilarejo de Ankawa, na região de Erbil, no Curdistão iraquiano, relativamente protegido dos horrores da guerra. Neval dá aula num trailer. E vive num trailer, estacionado num só lugar, com o marido e o filho, nascido no campo. Neval é decidida: “Não quero voltar a Qaraqosh. Não tem futuro. Quero ir para a Austrália”.
Tem 24 anos, fala um inglês perfeito e tem um marido que trabalha das nove da manhã até à meia-noite num bar, para manter a família. Voltou para Qaraqosh com a família depois da libertação. O exército curdo deixa passar os cristãos que viviam nas aldeias da planície, para irem ver as suas casas, mas não permite que fiquem ali para dormir. É zona militar.
Qaraqosh era o maior vilarejo cristão entre os que estão ao redor de Mosul. Hoje é um vilarejo fantasma. Nessas visitas de um dia, os refugiados procuram arrumar as casas, que foram incendiadas, saqueadas. Alguns, muitos, fazem planos de retornar. Não querem ir embora, como Neval. Mas ainda não tomaram a decisão final.
A jornada foi longa em Erbil. Com a ajuda de um colega jornalista aposentado pela BBC, que decidiu vir me ajudar, e de uma antiga vizinha de Mosul, pudemos conversar com muitas pessoas. Responsáveis da Igreja, refugiados, jovens que trabalham com eles, políticos curdos e muitos outros. Não é impossível que grande parte dos 120 mil cristãos voltem para casa. Mas muitas coisas são necessárias. A fundamental é uma certa segurança de que o que aconteceu não volte a acontecer. Desejam uma segurança como a que se vive em Erbil, tranquila e limpa, como a Bagdá dos anos 90. E também são necessárias infraestruturas, dinheiro para reconstruir as casas. Luz e água. Seria útil que a declaração de genocídio fosse mais clara? Seria preciso criar um tribunal especial? Sim, sobretudo para salvaguardar a memória das vítimas. Alguns defendem um governo curdo para toda a região de Nínive. Outros gostariam de uma região autônoma, com o reconhecimento de Bagdá, o que no momento não existe.
Neval, talvez, conseguirá ir para a Austrália. Os mais jovens querem uma outra vida. Neval deixará a sua terra, “mas a Jesus eu não renuncio. Não deixarei jamais de ser cristã”, diz com decisão.
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