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Passos N.97, Setembro 2008

IGREJA - MEMÓRIA | DOM ESTEVÃO BETTENCOURT (1919-2008)

A fortaleza de uma alma

por Rodrigo Coppe Caldeira

Monge, exegeta e teólogo, Dom Estevão ficou conhecido como um exemplo de dedicação à Igreja. Escreveu obras que se tornaram referência para os católicos, no Brasil e no exterior

Em 14 de abril deste ano faleceu um dos maiores apologetas brasileiros do século XX. A ida de Dom Estevão Bettencourt para a Casa do Pai deixa órfãos aqueles que continuam na peregrinação terrestre e que viam nele um exemplo de vida e dedicação à Igreja. Sua morte deixa lacuna irreparável.
Lembro-me bem quando estive no Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro em 2000. Nos momentos em que os monges se reuniam no coro para rezar o Ofício Divino, um deles me chamava à atenção. Quase desaparecendo entre os bancos, pela sua baixa estatura e seu problema de coluna, e aparentando grande fragilidade exterior, mas interiormente marcado pela força da fé, Dom Estevão Bettencourt marcou sua travessia com perseverança, reflexão contínua e defesa dos fundamentos do cristianismo.

Do nascimento ao ingresso no Mosteiro
Flávio Tavares Bettencourt, nome de batismo, nasceu no Rio de Janeiro em 16 de setembro de 1919. Em novembro do mesmo ano foi batizado e em agosto de 1930 fez sua primeira comunhão. Aos 4 anos de idade foi para Paris com os pais, onde iniciou seus estudos no Lyceé Buffon e permaneceu até 1930. De volta ao Rio, prosseguiu sua trajetória escolar no Colégio São Bento, onde de 1931 a 1935 concluiu seu curso ginasial. A partir da convivência diária com os monges, principalmente Dom Pedro Candiota, Dom Vicente Ribeiro e Dom Tarcísio Silva Ferreira, Flávio sentiu-se chamado por Deus para se entregar à vida monástica. Concluído seu curso ginasial, ingressou no Mosteiro de São Bento em 1 de fevereiro de 1936.
Sete meses após a sua entrada ganhou o hábito de noviço do Abade Tomás Keller, e devido à sua devoção especial aos mártires da Igreja primitiva, recebeu seu novo nome de Estevão, o primeiro mártir (protomártir) cristão. Em 7 de outubro de 1937 proferiu seus primeiros votos. Nota-se que desde a juventude Dom Estevão foi um apaixonado pelos estudos e pela reflexão intelectual. Conhecedor do latim, grego, francês, alemão e inglês, cursou filosofia no Pontifício Ateneu de Santo Anselmo, em Roma, onde realizou seus estudos entre 1937 e 1945. Fez sua profissão solene no belo Mosteiro de Monte Cassino (Itália) em 7 de novembro de 1940 sob o Abade Dom Gregório IX Diamanre. Em julho de 1942 recebeu o diaconato na Basílica de Santo Antônio de Paula, em Roma, e sua ordenação presbiteral realizou-se na igreja Santa Agnese, também na Cidade Eterna, em julho de 1943. Dom Anselmo Stolz, percebendo em Dom Estevão grande potencialidade intelectual, buscou convencê-lo a realizar um doutorado em Teologia. Não obteve êxito. Escreveu, então, ao abade Tomás Keller pedindo permissão para que doutorasse em Teologia Dogmática. A resposta do abade do Rio foi positiva. Em 1944, em plena Segunda Grande Guerra, defendeu a tese sobre Orígenes intitulada Doctrina Ascetica Origines seu quid docuerit de Ratione animae humanae cum daemonibus. Em janeiro de 1945 retornou ao Brasil.

Ora et labora
De volta ao seu mosteiro de origem, Dom Estevão iniciou uma nova fase de sua vida, e sempre ao ritmo do lema beneditino ora et labora (reza e trabalha) mergulhou na atividade teológica e na vida monástica. Tal “mergulho” se deu a partir do ensino da exegese e da teologia, participação em cursos, congressos e simpósios e ocupação de cargos importantes. Desde seu retorno ao mosteiro do Rio, Dom Estevão assumiu a cátedra bíblica na Casa de Estudos da Congregação ou Escola Teológica da Congregação Beneditina do Brasil. Contudo, sua atividade docente não se limitou a essa escola. Foi professor de várias disciplinas filosóficas e teológicas em vários institutos e universidades do Rio de Janeiro: Casa de Estudos da Congregação Beneditina do Brasil, depois Escola Teológica e atualmente Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro (1945 a 2005), Universidade Santa Úrsula (1946 a 1980), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1958 a 1961 e de 1968 a 1974), Universidade Católica de Petrópolis (1968 a 1978), Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro (1985), Escola Superior de Catequese Mater Ecclesiae, Escola Luz e Vida de Catequese no Instituto Pio X do Rio de Janeiro (1957 e 1958). Participou de inúmeras conferências e congressos e também ocupou alguns cargos importantes como a Diretoria do Instituto de Teologia da Associação Universitária Santa Úrsula (1975); foi Decano do Centro de Teologia, Filosofia e Ciências Sociais (1976 e 1977); vice-reitor da Faculdade Eclesiástica de Filosofia João Paulo II desde 1981; membro dos Conselhos Universitários e de Ensino e Pesquisa (1976 a 1980); vice-presidente da LEB (Liga de Estudos Bíblicos) (1964 a 1967 e 1975 a 1977); consultor da Comissão Episcopal de Doutrinas e membro da Comissão de Diálogo Judeo-Cristão da CNBB; membro da Comissão para a Doutrina da Fé na Arquidiocese do Rio de Janeiro; diretor executivo das Escolas Mater Ecclesiae do Rio de Janeiro e secretário da COMMUNIO e redator-chefe da revista da instituição.
Como um grande intelectual da Igreja, Dom Estevão destacou-se como servidor da obra de Deus. Em toda a sua produção intelectual, livros, artigos em jornais e revistas, o monge assinalou-a com o sinal de fidelidade inabalável ao Evangelho e ao Magistério da Igreja. É necessário ressaltar que Dom Estevão não foi um teólogo stricto sensu, não elaborou reflexões teológicas profundas nem escreveu obras marcadas pelo teor da novidade. Antes disso, foi um apologeta da fé, um defensor da verdade, sempre visando a defesa da doutrina católica, calcada nas Sagradas Escrituras e no Magistério secular da Igreja. Dessa forma, atraiu sobre si inúmeros ataques, que sempre redarguia com a sinceridade que só a fé pode oferecer. Frente aos desregramentos morais e intelectuais da contemporaneidade, Dom Estevão construía verdadeiras muralhas em defesa da razão, da fé e da Igreja. Tido como um baluarte da ortodoxia, esclarecia conceitos, redimia dúvidas, desafiava à interlocução. De maneira sempre simples e acessível, os textos do beneditino esclareciam das dúvidas mais comuns às mais rebuscadas e controversas. Por isso, sua presença na mídia foi marcante durante seu apostolado. Na sua longa labuta a frente da revista Pergunte e Responderemos (de 1957 até ao seu falecimento), o monge, franzino corporalmente, mas espiritualmente inabalável, esclarecia dúvidas, afirmava as verdades da fé de modo firme e invariável.
Seus livros mais importantes são: A vida que começa com a morte (editado também na Argentina); Diálogo Ecumênico. Temas controvertidos; Reencarnação: prós e contras (editado também na Espanha); 15 questões de fé. Além deles, Dom Estevão colaborou com várias obras, despontando no cenário religioso e tornando-se conhecido no país com títulos como: Para entender o Antigo Testamento (1956), Para entender os Evangelhos (1960), Ciência e fé na história dos primórdios (1954), Páginas difíceis do Evangelho (1985). Traduziu os Livros de Tobias, Judite, Ester e o Cântico dos Cânticos para a Coleção A Santa Bíblia (1955 e 1957) e a Primeira e a Segunda Epístolas de São Paulo aos Coríntios para a Bíblia de Jerusalém (1985).
Dom Estevão Bettencourt foi um dos grandes nomes da história da Igreja do Brasil e a sua memória é capaz de, indubitavelmente, trazer novas esperanças aos corações de todos que tem no Evangelho e na Igreja um porto seguro a se ancorar. Que possamos, a partir do exemplo do grande monge, clarear sempre mais nossa fé e estabelecer fundamentos fortes e duráveis.

Nota
Agradeço aos monges do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro que me acolheram para a produção deste artigo. Especialmente Dom Cassiano, Dom José e Dom Matias. Obrigado pela amizade, carinho e dedicação.
Este artigo tem como base principal de pesquisa o texto: Bento Silva Santos. Esboço bio-bibliográfico de Dom Estevão Bettencourt OSB. Homenagem a Dom Estevão Bettencourt osb. Coletânea. Tomo I. Rio de Janeiro: Lúmen Christi, 1990, p. 1-11.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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