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Passos N.197, Novembro 2017

DESTAQUE | JORNADA

Um Acontecimento ou a ideologia

por Isabella S. Alberto (org.)

No início da noite de sábado, 21 de outubro, centenas de pessoas se reuniram em dezessete cidades do Brasil para participar da Jornada de Outubro. Na Europa, esta época do ano marca o fim do verão e das férias, por isso este momento é proposto por Comunhão e Libertação como uma retomada dos acontecimentos do ano. Na Itália foi conduzido por pe. Julián Carrón no final de setembro, cujo texto integral está nas páginas centrais desta edição, e foi replicado no Brasil por Marco Montrasi, responsável nacional de CL. Queremos aqui disponibilizar as contribuições brasileiras que enriqueceram este evento e nos ajudam a aprofundar os temas tratados no texto “No início não foi assim!”. São testemunhos do que o Acontecimento coloca diante dos olhos de todos.

O teste se o acontecimento está ocorrendo agora – o teste de que não se trata de uma teoria, de um saber abstrato, mas de um fato real, que acontece agora, a mim, e que eu reconheço, acolho, e que se torna o ponto de partida de cada movimento meu – é a forma como me relaciono com as pessoas e as coisas. O teste é a novidade que surpreendo em mim, na forma de reagir.
Julián Carrón


“Nestas férias, em Januária, o tema mexeu muito comigo: ‘Hoje a salvação entrou nessa casa’. E essa pergunta (E nós? Interessa-nos a salvação?) e nós? Eu cheguei e me senti totalmente no meu quarto, como nessa figura de Van Gogh, mas no meu quarto os dois primeiros dias estavam do jeito que eu queria que estivessem, com a minha bagunça, fechado e totalmente meu. E os dias foram passando e ontem a gente teve aquela experiência de ver o semiárido e o Rio São Francisco. A vida é desse jeito, pelo menos do jeito que eu penso dela. Eu vim e não vou voltar pro quarto do jeito que eu cheguei. Esse quarto não existe mais pra mim. Olhando para aquele sertão e para aqueles ribeirinhos, que vão ficar 11 meses na seca mas têm a certeza de que a chuva vai chegar e vai florescer e o arco deles vai ficar diferente, é como criar a possibilidade para que o Outro entre no meu quarto. Não quero arco frouxo. Eu quero ele teso! Essa relação com Deus eu quero ela totalmente esticada, tesa, porque é o meu sangue que pulsa. É essa sede que eu tenho. Meu quarto eu não quero que seja mais o mesmo, independente de quem quiser entrar ou não. Para mim, ele vai voltar diferente.”
Leandro, Brasília/DF

“Sempre briguei um pouco com minha fé. Acho-a pequena demais... Sempre quis sentir as emoções relatadas por várias pessoas, mas nunca consegui. Quando fui convidada para as férias de Angra, não queria ir. Porém, fui sem muitas pretensões, a não ser, passar um tempo a mais com minha filha e, quem sabe, buscar entender um pouquinho o que a levou a ficar tão encantada com o Movimento. (...) Apesar da minha pouca fé, de me perguntar como seria estar em um lugar com pessoas que eu queria acreditar alienadas, me peguei ouvindo ‘como fui parar ali?’. Fiquei comovida em ver pessoas com tanta vontade de fazer o bem, pelo simples fato de desejar um mundo mais cheio de luz, de saber que mesmo com tantos problemas, é possível uma vida mais plena, com mais leveza. Eu me peguei contando para meus filhos, que ainda não entendem a escolha da irmã, que eu tinha gostado muuuito das férias, do tempo com aquele povo tão diferente e tão gente como a gente. Eles, ainda sem entender direito, porém, sabendo que eu estava dizendo a verdade, ficaram incrédulos. Tive que repetir várias vezes.Como era possível que eu tivesse gostado tanto? Nem eu sabia. Quando veio o convite para o encontro com o Carrón, em São Paulo, no início de setembro, algo dentro de mim já havia mudado. Fiquei com vontade de saber mais, ninguém precisou me incentivar. E continuei me emocionando, principalmente quando aprendi sobre a liberdade, que quanto mais minha filha ‘pertence’ ao Movimento, à fé, mais ela é livre. Achei isso fascinante! E hoje, como estou? Continuo não sabendo, a não ser o fato de compreender, no meu coração, que sim, minha filha encontrou um caminho, ou seja, fez a escolha que a deixa imensamente confortável em sua busca em ser uma pessoa cada vez melhor.E isso para mim é um valor imprescindível. Estou mais em Paz, me sinto ainda mais perto da minha filha.”
Márcia, Governador Valadares/MG

Uma concepção nova é constantemente gerada por um acontecimento presente e “passa” acontecendo. Só deste modo é que poderá transmitir-se, passando de uma pessoa a outra.
Julián Carrón


“Posso dizer que em duas datas específicas, dois simples questionamentos feitos em ambiente acadêmico (até então o foco da minha vida) foram necessários para que tudo o que eu havia vivido, todas as alegrias e tristezas, toda a minha postura com a fé e a minha religiosidade, o meu comportamento com o próximo, os meus relacionamentos com familiares e amigos... enfim, tudo fosse questionado!
Desde a época da primeira comunhão ajudo na Igreja. Não fazemos parte de nenhuma pastoral específica, mas sempre ajudamos como podemos os que precisam. Em 2014, iniciei os estudos em uma faculdade que não era a que realmente queria, mas já havia finalizado a escola há dois anos e precisava iniciar a vida acadêmica. Fui me esforçando cada vez mais e me exigindo sempre além de onde estava. Continuava a rezar e a ir à missa, porém, muitas vezes (e cada vez mais), como se fosse um peso ou estivesse me atrasando nos trabalhos da faculdade. Dormia pouco, me alimentava mal e a vida acadêmica sempre estava em primeiro lugar. Como consequência, tinha frequentemente mau humor, me sentia muito destruída quando não conseguia cumprir uma meta e experimentava um vazio posterior ao atingi-la.
Foi então que, no dia 28 de setembro de 2016, minha professora da matéria mais importante de arquitetura me perguntou o que eu estava fazendo ali, naquela faculdade. Para mim, a pergunta foi além. Voltei para casa questionando toda a minha vida acadêmica (mesmo sendo uma ótima aluna naquela instituição). Outros quatro professores começaram a encorajar a mudança também. Enfim, comecei a planejar a minha vida somente pelo lado profissional. Foi então que segui a orientação da minha mãe: primeiro, pedir a Deus que me ajudasse e, segundo, pesquisar como era o processo de transferência para uma faculdade melhor.
Entrei no site. Em duas semanas começavam as inscrições para o processo seletivo de transferência. Precisava produzir um portfólio, realizar uma prova e uma entrevista. Foi tudo tão rápido e, para muitos, uma ‘coincidência’, como se tudo fosse se encaixando. Em dezembro recebi a notícia de que havia sido aprovada e que teria que retroceder dois anos, quatro períodos, mas eu estava totalmente decidida pela mudança, afinal seria o melhor para o meu futuro profissional.
Assim, no dia 6 de março de 2017, iniciei os estudos na tão esperada universidade que sempre quis, cujo ambiente era fantástico e que valorizava alunos estudiosos. Entrei na sala em minha primeira matéria, ‘O humano e o Fenômeno Religioso’, e o professor, muito contagiante, me olhou nos olhos e disse ‘O que é a coisa mais importante na sua vida?’. Ponto, mais uma vez meus olhos se encheram de lágrimas! Desta vez, por onde eu iria parar se continuasse a exaltar somente o lado profissional, qual o sentido da minha vida, o que estamos todos realmente fazendo aqui, porque a sociedade está como está?
Com o passar das aulas, dadas por Dom Paulo Romão, percebi que era Deus que me dizia para colocá-lo novamente como centro da minha vida. Precisava limpar o foco dos meus objetivos. Dom Paulo me convidou para os Exercícios Espirituais dos Universitários em São Paulo (sem confiança de que eu fosse aceitar). Fui e achei muito interessantes os assuntos tratados. Comecei a entender um método em que eu podia unir a minha vida pessoal com a vida espiritual, meus amigos e minha religião, que até então viviam isolados.
Duas músicas nos Exercícios me ficaram gravadas: uma ‘Fé cega, faca amolada’, como se Deus fosse me moldando se eu Lhe permitisse (afinal, somos livres) e a música de Claudio Chieffo, ‘E verrà’, que fala dessa alegria ao anunciar, falar da beleza e do amor de Deus. Comecei, através das aulas, a ficar maravilhada com o Mundo criado e a entender que podia, de fato, relacionar a arquitetura à fé e que essa relação poderia ser um instrumento para transmitir a beleza de Deus, que fora perdida e abafada por eu estar focada no trabalho mecânico e na rotina da arquitetura como centro.
Ao retornar ao Rio, nos organizamos para formar um grupo na faculdade. Já não se faziam encontros há anos ali. Iniciamos no final de abril com cinco jovens e Dom Paulo. Cada vez mais percebo a importância destes encontros. É uma ajuda mútua, analisamos nossas experiências, desejos e dúvidas. Além das reuniões, jantares em casa, com a presença do Dom Paulo e Padre Álvaro, nos contagiam e fortalecem o grupo.
É incrível como o número de pessoas foi crescendo. Em duas missas distintas, Dom Paulo comentou sobre nós na homilia e, ao terminar a celebração, uma moça e um rapaz pediram para participar. Outro dia, eu estava no ônibus saindo da faculdade e um rapaz começou a conversar comigo e o convidei (achando que nem iria aparecer na reunião) e desde então participa. Um outro menino convidou uma amiga e essa convidou outro amigo. Continuo a receber contatos do professor para adicionar pessoas no grupo. Ou seja, muitas pessoas querem ouvir esses assuntos tratados no Movimento, querem saber como preencher esse vazio que existe dentro de cada um de nós.
É preciso estar preparado e disposto, em posição de abertura para não ser um ‘jovem-sofá’ como diz o Papa Francisco, não ter medo de falar de Cristo como disse São João Paulo II, e ser alegres, úteis e mostrar que Deus não é triste (tentando ao máximo ser bons exemplos) como aconselhou o Papa emérito Bento XVI. É preciso ceder para aquietar o coração e a alma, que vivem acelerados nos dias atuais (com mil e uma fontes de informações, distrações e tarefas). Eu percebi que o fardo se torna muito mais leve quando descobrimos o sentido de nossas vidas. Uma coisa queria falar pra todo mundo: ‘Não se restrinja somente ao grupo que já se conhece. Às vezes, amigos, conhecidos e até pessoas que não conhecemos podem querer ouvir o que você tem a dizer’.”

Catalina, Rio de Janeiro/RJ

Dom Giussani nunca deixou de nos indicar o caminho: “As coisas que nós compreendemos, com efeito, não as compreendemos porque nos sentamos ao redor de uma mesa e fazemos um programa de estudos para compreendê-las (...); compreendemo-las se aderimos como crianças à história de Deus na nossa vida, à história pela qual Ele quer arrombar totalmente todas as nossas portas, porque d’Ele somos feitos” (L. Giussani).
Julián Carrón

“Gostaria de contar um pouco das experiências que tenho feito nos últimos tempos. Começo falando da beleza que foi participar das férias em Angra. O simples fato de estar ali, para mim já foi um grande acontecimento porque foi um ‘despir-me’ de uma série de juízos e conceitos pré-concebidos devido à minha história. Mas chegando lá, foi como dar-me conta de toda uma história acontecida, e não só a minha, de todas aquelas pessoas que estavam ali... Nasceu uma gratidão e uma letícia que eu não esperava e que eu só podia acolher, que de alguma forma eu queria comunicar, mesmo se eu não sou de falar. Por outro lado, me dava conta da facilidade que pode ser a gente perder uma oportunidade assim. Do mesmo modo que precisa ser simples como crianças para abraçar a realidade como ela se apresenta, basta também ser como uma criança ‘birrenta’ e colocar o braço na frente do rosto para não ver o que está tão evidente, como eu tantas vezes fiz. Por isso é tão importante a companhia. Neste sentido, outro Acontecimento foi o encontro com o Carrón em São Paulo. Fiquei marcado em particular quando ele disse que ‘o que torna estável nossa posição diante do real é um caminho e não um milagre... e isso só pode acontecer se Cristo acontece a cada instante... Cristo entrando na vida acaba com a curva de Gauss... nós vimos como foi com Dom Giussani, não é ilusão, não estamos destinados a decair... tudo isso só tem uma única condição: seguir’. Mas seguir não tem nada de óbvio. Eu sempre me vangloriei que seguir é fácil. Agora me dou conta que é como tirar uma armadura que nos protege sabe-se lá de que, mas se não fizermos isso não estamos seguindo de verdade, estamos fingindo. Não se pode seguir dois senhores. Simples assim! Radical assim! Por causa dessa necessidade da companhia a todo instante, da necessidade do caminho e do desejo de pertencer cada vez maior, pedi para retomar a Fraternidade de CL da qual estava afastado há quatro anos, e para mim foi uma bela surpresa ser acolhido de maneira tão simples. Foi natural esse reinício, como se o tempo não tivesse passado, embora não se possa e nem se deva apagar o que houve, aliás, eu tenho ainda muito o que aprender com o que esse tempo que o Senhor me permitiu passar.”
Ribamar, Rio de Janeiro/RJ

Eu não sou digno, do que fazes pra mim, Tu, que amas tanto, alguém igual a mim... Esta música me ocorre sempre que na Escola de Comunidade me sinto provocada. A vida nos envolve de uma maneira tal no seu cotidiano de trabalho e atividades necessárias à sua engrenagem, nos levando a práticas imediatas e pré estabelecidas, que acabamos nos esquecendo de identificar os seus porquês.
E essa mesma vida, no mais das vezes, que parece estar correspondendo aos nossos anseios, nos afasta do que é verdadeiramente necessário para vivermos com plenitude. Passei um tempo considerável distante do Movimento, por razões de ordem profissional, que me levaram a residir em uma cidade distante. Mas a atração que esse encontro me provoca acaba me trazendo de volta e sempre, sempre, me sacode e me tira do fundo do mar com uma mão forte e generosa.
O lançamento do livro A beleza desarmada na minha cidade foi um desses momentos para mim. Mais uma vez, o Movimento me provocou um encontro que me tirou outra vez da inércia de pensamentos e reflexões. Como diz Carrón, ‘sem o encontro com o outro – e com um determinado outro – não poderia manifestar-se nem manter-se vivo um eu que se abra para interrogações fundamentais da vida, que não se contente com respostas parciais. A relação com o outro é uma dimensão antropológica constitutiva’. É um raciocínio perfeito, mas que eu só percebo no seu significado mais profundo e verdadeiro nesses momentos de encontro. Mais uma vez, o Movimento me provocou a restabelecer um sentimento que já está em mim e que tantas vezes eu insisto em adormecê-lo, talvez por comodismo ou conveniência. É que a profundidade do que foi dito, mais uma vez, agora com sutiliza e amor por Bracco, nesta que foi a primeira vez que o vi, que me fez refletir sobre a minha indignidade do amor que Deus me oferece todos os dias, e do quanto eu sou ingrata por não participar dessa distribuição, como faz Bracco, apesar de ter tanta consciência dessas verdades e do seu significado, em um mundo onde as pessoas não fazem as perguntas por que normalmente não gostam das respostas.
Mais uma vez entendi, antes mesmo de ler essas palavras de Carrón, o quanto o encontro com ‘determinado outro’ pode nos trazer à tona novamente, para as reflexões fundamentais da nossa vida. E não importa que eu passe por ela inteira procurando as respostas, já que a só sensação de estar à procurada daquilo que corresponde às exigências do meu coração, já me é suficiente para me achar um pouco mais digna desse amor que me persegue. Ainda mais emocionante é perceber que essa sensação de ‘indignidade’ é tão humana e individual quanto os desejos e planos rasos que fazemos na nossa vida, porque a compaixão de Deus jamais nos classificaria dessa forma. Quero dizer que se há essa tentativa de despertar para as reflexões que realmente nos importam, para a não redução das perguntas, é porque a nossa humanidade está sempre nos levando ao caminho inverso, aparentemente mais fácil e mais livre, de maneira que a sensação de indignidade que tenho é aliviada pelas respostas que essa relação com Carrón e com o Movimento me proporciona.
Como foi dito naquele dia – do lançamento do livro – lançar-se na descoberta do eu com alguém que não se assuste diante desse ‘eu’, é uma aventura apaixonante e só assim ela é possível. ‘A reconquista das convicções fundamentais não se dá senão no seio de uma relação’, diz Carrón. Naquele dia, tive essa percepção, mais uma vez. Naquele dia, renasci para o Movimento, mais uma vez. Naquele dia, restabeleci meu desejo de profundidade e infinitude, mais uma vez. Portanto, como diz a canção que não me sai da mente: Vê, não tenho nada, pata Te doar, mas, se Tu quiseres, eis-me aqui!

Adriana, Campina Grande/PB

Voltaram porque reaconteceu o início, através do encontro com um de nós, no lugar, na realidade viva do nosso povo. Vemos isso a toda hora.
Julián Carrón

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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