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Passos N.202, Maio 2018

VIDA DE CL | ÁFRICA

“Posso dizer que nasci naquele dia”

por Ignacio Carbajosa

Na África, as histórias dos universitários, a morte de um jovem pai, o testemunho de sua esposa, as mulheres muçulmanas que encontram o cristianismo. Os dias passados em Kampala e, depois, no Quênia, com os jovens, através do olhar de um sacerdote espanhol. Entre fatos e encontros que desmentem os nossos “pensamentos”

Cheguei a Kampala alguns dias antes dos Exercícios Espirituais que pregaria aos universitários da África, no final de semana de 9 a 11 de fevereiro. Cheguei a uma comunidade atingida pela morte repentina, em um acidente de carro, de Francesco Frigerio, um italiano benquisto por todos, que nos ajudara alguns meses antes a organizar as férias do CLU em Uganda. Deixou mulher e três filhos pequenos. Este fato suscitou muitas perguntas que chegaram às contribuições escritas pelos jovens. Mas também chegou a mim a notícia da revelação de uma humanidade nova na pessoa de Sara, a esposa de Francesco, que deu força à comunidade com sua certeza: “Francesco está participando do banquete com o Senhor”. Ouvi testemunhos sobre como foram vividos os dias que antecederam a chegada do féretro à Itália. Falaram-me do marceneiro que trabalhava com Francesco e que, ouvindo os cantos durante a vigília, vendo a serenidade e a estranha letícia, perguntou se na Itália as pessoas não choram quando uma pessoa querida morre. Um dos presentes respondeu: “Na Itália, diante da morte, ficamos desesperados. O que o senhor está vendo é excepcional, chama-se fé”.
Com esses fatos nos olhos, e com o desejo de responder às perguntas dos jovens sobre a morte, vou ao International Meeting Point para encontrar “as mulheres de Rose”. Esta é uma obra dirigida por Rose Busingye que acompanha mulheres aidéticas.Depois de uma hora de cantos e dança, pergunto a elas: “Vocês dizem que são livres, que o encontro com Rose as libertou. Vocês conheciam bem Francesco: foi ele que construiu a Luigi Giussani High e Primary School. O que é a morte para vocês? Quer dizer, o que é, para vocês, viver?”. Fico surpreso com a resposta de Teddy, uma delas, que, ao invés de partir de uma teoria sobre a morte, parte da sua autoconsciência: “Há Alguém que me faz a cada instante. É Ele o senhor da vida. Assim, é possível ter confiança também diante da morte”. Tomo nota. Se o que vivemos neste instante não tem a ver com a morte... vivemos como todos e depois damos uma explicação que não satisfaz ninguém.

De joelhos. No jantar, na Casa das Memores Domini, estão também três mulheres muçulmanas que participam do Meeting Point. Contam-nos como “devoram” Traces assim que chega a Kampala e como participam, junto com as outras mulheres, da venda militante da revista (leia a entrevista). Uma delas, que recebeu o Batismo na última Vigília Pascal, fala da sua conversão. Enquanto fala, começo a sentir-me incomodado olhando para as outras duas mulheres muçulmanas. Minha mentalidade europeia está em ação: “Será que elas, que permanecem muçulmanas, se sentem mal?...”. Ao final do jantar, suas expressões desmentem os meus pensamentos: estão felicíssimas.
Quando nos despedimos, vejo uma cena que me impressiona: as duas mulheres muçulmanas estão de joelhos diante de Rose. No dia seguinte, pergunto o significado daquele gesto. “É uma expressão de gratidão. Como para dizer: ‘Permita que estejamos sempre aqui, não nos abandone’”, me diz Rose. E depois começa a me contar as coisas que eu, grande homem da razão, não tinha visto. Aquelas mulheres estavam muito felizes em ir à casa dela e sentar-se à mesa junto com os brancos, comer a mesma comida, nos mesmos pratos, ser servidas e poder participar da conversa e também pelo interesse que tinham por elas. Realmente descobriram o valor da própria vida. Antes, se olhavam como eram olhadas: a mulher muçulmana de cor tem um papel ínfimo em seu ambiente e aquelas coisas simples, possíveis na casa de Rose, antes eram impensáveis para elas. Nós estamos habituados. Elas, porém, identificam os traços de uma humanidade diferente... que as coloca de joelhos.

“Boa noite”. No dia seguinte, durante o almoço, fomos à favela, à casa de uma jovem do CLU. Quer compartilhar a alegria de ter avançado nos estudos. Para ela, nossa visita é um verdadeiro acontecimento: “tia” Rose, padre Nacho e seus amigos vêm para encontrá-la! Entramos na casa humilde (humilde é pouco para descrever o quarto onde moram cinco pessoas). Todos os moradores da favela olham para o nosso estranho cortejo. “Onde eles vão?”. “À minha casa!”, diz ela a todos com o seu olhar. Como será lembrado nos Exercícios, aquela menina sente-se como Zaqueu: hoje a salvação entrou nesta casa. “Foi olhado e, então, viu”, era o título do nosso gesto.
Depois de uma viagem de onze horas, no dia seguinte chegamos a Eldoret, no Quênia, para começar os Exercícios. As meditações foram enriquecidas pelas perguntas e contribuições dos jovens, mas também pelo que eu tinha visto no dia anterior em Kampala. É fácil ilustrar o “foi olhado”: muitos parecem estar no sicômoro, olhados de novo por “tia” Rose. Uma jovem fala de sua vida antes de subir naquela árvore. Todas as coisas eram contra ela, odiava tudo, até o dia de seu nascimento. E também Deus. Ninguém a amava pelo que era. Tentou o suicídio por três vezes. Porém, via seu irmão enfrentar de modo diferente as mesmas circunstâncias em casa (entre outras coisas, o pai alcoólatra...), tanto que aceitou seu convite para a Escola de Comunidade. Diz: “Era a segunda semana do segundo semestre do meu primeiro ano da faculdade (como o encontro de João e André com Cristo: eram quatro horas da tarde). Entrei na sala onde aconteceria a Escola de Comunidade; eu estava adiantada. “Tia” Rose entrou e me viu ali. Fixou-me o olhar – normalmente faz assim com as pessoas novas – e senti o coração bater forte. Depois, abrandou o olhar e sorriu para mim. Disse-me: “Boa noite”. Eu era tão estúpida e me sentia tão pequena que não consegui responder. Mas aquele olhar e aquele sorriso, mesmo só de pensar, me deixavam em silêncio. Em toda a minha vida, ninguém nunca tinha me olhado e sorrido para mim daquele modo. Era um olhar tão forte que derrubava os muros do meu passado escancarando o presente diante de mim. Era um olhar que me dizia que eu também posso ser amada com tudo o que sou. Parecia me dizer: “Você é importante”. Senti que Alguém me chamava a segui-Lo através daquele olhar. E, a partir daquele momento, decidi seguir. Senti que tinha encontrado um lugar ao qual pertenço. Posso dizer que a graça de Deus me alcançou e que nasci quando tinha 14 anos porque foi este o momento em que entendi o verdadeiro sentido da minha vida. Comecei a compreender quem é Deus para mim e a grande lacuna que havia entre a minha origem, e ela foi preenchida. O Movimento devolveu-me a mim mesma. Desejo recomeçar e não medir mais a vida. Assim como Dom Giussani, não quero viver a vida inutilmente”.
No primeiro encontro temos tudo, nos lembra Dom Giussani, mas o que seja esse “tudo”, nós o compreendemos através das circunstâncias. Conheço alguns desses jovens já há cinco anos, eu os acompanhei do colégio à universidade. É bonito começar a vê-los passando “da evidência do primeiro encontro à convicção”. Uma passagem que Zaqueu precisou enfrentar a partir do dia seguinte quando, irritado com a mulher, descobriu-se triste pensando em Jesus.
Um dos jovens nos falou da sua perplexidade diante de dois amigos da comunidade que se afastaram depois de um certo percurso. “Vós também quereis ir embora?”, ressoa na minha mente. “É o tempo da pessoa”, nos disse Dom Giussani. Temos todos os instrumentos para julgar, não devemos ter medo. De fato, começou a falar do “tempo” que tinha decidido dar à Escola de Comunidade, ao coro... Mas durou pouco. “Vi-me perdido na minha ideologia”, explica, “não aguentava mais ficar sem o olhar de ‘tia’ Rose, Alberto e Seve”. O coração em ação. A partir daí, começou uma verdadeira verificação na universidade.

Na classe. Durante uma aula, o professor de Economia explicava a pirâmide das necessidades humanas. Na base, as necessidades primárias. Uma vez satisfeitas, subindo, está a necessidade de segurança e assim por diante, até que, no topo, as necessidades são completamente satisfeitas. O rapaz levanta a mão: “Professor, na nossa experiência não é verdade que as necessidades são plenamente satisfeitas”. Começa uma discussão acalorada na sala. O rapaz se vê obrigado a falar da sua experiência. No fim, o professor, curioso, pergunta: “Desculpe, qual é a fonte da sua ideologia?”. Ele fala de Dom Giussani e lhe dá de presente um exemplar de Por que a Igreja.
Este padre europeu, já à beira dos 50 anos, convenceu-se, mais uma vez, de que, para pregar os Exercícios, é mais útil deixar-se tocar por aquilo que acontece do que chegar com as palestras já prontas. Como nos ensina o Inominado, personagem do livro Os noivos, de Manzini, é mais eficaz ficar obstinado à porta do Cardeal Frederico do que o “já sabido” da nossa mentalidade kantiana.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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