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Passos N.202, Maio 2018

TESTEMUNHO | RIMINI-RIO

Voltar ao primeiro amor

por Isabella Alberto (org)

Uma companhia, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Aqui, um pouco do que foi testemunhado por Jacqueline e Alessandro, durante a provação da doença dela. E o caminho que ela fez de se aproximar de Jesus, ajudando e sendo ajudada por muitos amigos

Durante a semana das Oitavas de Páscoa, na quinta-feira 5 de abril, faleceu Jacqueline de Souza, a quem carinhosamente todos chamavam de Jacque. Esta carioca, de 46 anos, morava em Rímini desde 1997, quando se casou com o italiano Alessandro De Ponti. Sua casa era ponto de encontro de todos os brasileiros que chegavam para participar do Meeting de Rímini, e s sorriso fácil e sua acolhida está na memória de tantas pessoas. Há três anos Jacque lutava contra um câncer. E esta circunstância misteriosa e cheia de dor, revelou-se um florescer de vida nela, no marido e no filho Jhonis, nos amigos, sejam aqueles mais próximos fisicamente como os do outro lado do Oceano, que do Brasil sempre a acompanharam.
A seguir, publicamos a homilia de padre Giuliano Renzi, seu grande amigo e pároco em Rímini, com quem ela conheceu o Movimento ainda quando era colegial no Rio de Janeiro e ele era missionário no País junto com Dom Filippo Santoro. Publicamos também a carta do Dr. Samorani, o médico que a acompanhou no final da vida, e o relato de outra amiga que testemunha o carisma acolhedor de Jacque.

Na Noite da Vigília Pascal, justamente uma semana atrás, na qual a nova luz do Círio, ou seja, Cristo, começou a dissipar as trevas, o Papa Francisco terminava a homilia com estas palavras: “Não está aqui, ressuscitou! E espera por ti na Galileia, convida-te a voltar ao tempo e lugar do primeiro amor, para te dizer: ‘Não tenhas medo, segue-Me’”. Como eu vi estas palavras em você, Jacqueline! Você que viveu na própria carne o Mistério Pascal, acompanhada pela total dedicação do Alessandro e de muitos amigos que competiram para estar perto de você e nunca deixá-la sozinha!
Aquele convite do Papa “a voltar ao tempo e lugar do primeiro amor” foi para mim o convite para reconhecer como e quando o Senhor apareceu na nossa… na sua vida, Jacque, apareceu em nossas vidas para levá-la consigo, e fazer com que você a descobrisse cheia de significado e promessa!
Ao relembrar a sua história pessoal na história particular do Movimento, eu não posso deixar de me comover e surpreender diante da iniciativa e da obra do Seu amor por você – e pelas muitas pessoas que a conheceram. Por como o Senhor a “moldou” fazendo vir à tona o melhor de você.
Nós havíamos nos conhecido há pouco tempo (e já se passaram trinta anos!), quando você fez a dramática experiência da morte do seu pai. Junto com sua querida mãe, Divina, a quem você sempre esteve ligada, enfrentou aqueles momentos, e ela continuou a acompanhá-la com afeição, mesmo de longe, até quando, cerca de 10 anos atrás, de modo imprevisto o Senhor a chamou para si (como vocês se pareciam, não só fisicamente, mas sobretudo no temperamento).
Nossa amizade floresceu dentro da companhia dos primeiros estudantes do Pedro Álvares Cabral, uma escola pública do Rio de Janeiro, próxima à paróquia de Nossa Senhora de Copacabana.
Quando terminou o Ensino Médio, começou a procurar trabalho, e junto com algumas amigas (a Sandrinha e a Betty) aceitou morar na favela naquela casa que há pouco tempo havia sido abandonada (por causa de várias circunstâncias típicas da favela: tráfico de drogas e outras situações…), mas digna e que ficava no território da Capelinha da paróquia.
Naquele meio tempo tinha crescido, junto com o Waltinho, Daniela, Lili, Katinha, Jacyra, Ramiro, Marcelo Negão e depois Fernandinho e mais outros ainda, aquela bela amizade (que continua até hoje) que na época chamávamos de Jovens Trabalhadores.
Justamente naquele ambiente, durante um jantar na minha casa, você conheceu o Alessandro, a quem eu estava hospedando num período de férias… que depois voltou para um outro período de férias.
A um certo momento, Dom Filippo pediu que você fosse a sua secretária pois havia necessidade devido aos diversos compromissos e viagens que ele começava a fazer por toda a América Latina. E a nossa sede se tornou um verdadeiro “meeting point”…
O casamento aqui na Itália com Alessandro ... que mudança ... de vida, hábitos, clima ... de amizades ... E você me dizia: “Ah Ju, que saudades dos meus amigos do Brasil…” . Eu sei que não foi fácil… mas eu repetia e repito sempre, citando um verso de Vinicius de Moraes, “a vida é a arte do encontro”.
Assim foi a surpresa da chegada de Jhonis, onde você experimentou até o fim o que significa ser mãe! Nisto, a sua Fraternidade, com paciência, foi realmente uma ótima referência!
E depois … o Senhor, nunca desiste, talvez dê um passo atrás ... até dois ... mas nunca desiste! A sentença dramática da doença e o encontro providencial com o amigo e doutor Domenico Samorani e os amigos do ponto rosa. Que graça! Que graça! Eles ajudaram você a enfrentar este período, fazendo vir à tona o seu temperamento de lutadora e a sua fé!
Cara Jacque, como tudo isso tornou evidente a obra de Jesus em você: Ele a transformou, valorizando ao máximo aquilo que você era… até a sua “teimosia” e a sua doçura, até dizer-lhe, como repetia o Papa na noite de Páscoa: “Não tenhas medo, segue-Me”.
Padre Giuliano

O encontro com a Jacque não estava previsto, pois a nossa companhia de amigos gira em torno de outros lugares e de outras circunstâncias. Mas Deus, o grande trabalhador, é imprevisível e, assim, uma amiga nossa pediu que inseríssemos a Jacque na nossa rede.
Esta foi uma outra sugestão de Jesus que nos tomava pela mão e, através da Jacque, queria nos ajudar a percorrer um outro trecho da estrada e corrigir a nossa direção na viagem de volta para casa. Foi assim. A amizade com a Jacqueline nos tirou de nós mesmos, esculpiu a nossa humanidade, o nosso rosto. Redespertou em nós a consciência de pertencermos ao povo de Deus, de ser a sua carne.
Ao redor dela surgiu um povo que se alternava para lhe fazer companhia por todo o tempo em que esteve doente em casa e ultimamente no hospital. Eles cuidavam dela, a visitavam, saciando um pouco a sede da sua alma, lhe davam também comida, levando o almoço e o jantar. Competiam para fazer isso e ela nunca estava sozinha. Eram todas carícias de Jesus. Neste percurso de conhecimento e de grandes perguntas, não nos faltou ajuda, especialmente do padre Mario e das Clarissas de Santa Ágata.
Em setembro do ano passado, a doença voltou a avançar, e não só para ela. As Clarissas acolheram esta nossa dramática pergunta: “Se a doença faz parte da vida, como é possível vivê-la como um recurso e não como uma desgraça?”. As respostas foram um remédio para todos. Naquele dia, a silenciosa Jacque, com os olhos cheios de lágrimas e a voz embargada, colocou o problema da sua relação com Jesus. “Eu amo Jesus, desejo a sua amizade; não gostaria, mas estou com raiva d’Ele e isso me chateia, porque tenho vergonha desta raiva”.
A Abadessa lhe respondeu: “Se a relação é verdadeira a raiva também entra, porque fala de um relacionamento que é importante pra você, e que é natural na relação entre pais e filhos. Pode ficar com raiva de Deus, porque, hoje, esta é a sua verdadeira oração”.
No dia 4 de outubro fizemos uma festa de aniversário surpresa no hospital, no nosso salão, e ela foi coroada como uma verdadeira Princesa por um impressionante número de amigos. Foi um aniversário especial e inusitado dentro de um hospital, onde normalmente se chora e se está sozinho diante da provação mais grave. Nós cantamos juntos e nos alegramos juntos porque havia tantas razões para festejar. A maior delas é que, aos poucos, Jesus estava transformando o seu medo e a sua dor em letícia, utilizando-se também de nós.
É assim que Ele tinha em mente transfigurar a realidade da Jacque. Colocando uma luz nova sobre tudo, mesmo na sua doença. A Jacque nunca fazia discursos, e, no entanto, naquele dia agradeceu a Jesus pelo amor que Ele derramava sobre ela através da Sua companhia carnal no rosto dos amigos. Nada é impossível para Deus. Com Ele se vai dentro da vida e sempre mais longe da morte.
Em novembro, ao sair do hospital, ela abre novamente o seu coração com padre Mario. Pergunta sobre a utilidade de viver a dependência de Deus. E diz: “É um período um pouco dramático para mim, porque antes eu estava no hospital e depois voltei para casa e sempre procurei obedecer àquilo que Deus colocava diante de mim, tinha sempre a pergunta: mas por quê? Por que passo por tudo isso? Queria uma resposta. Tenho esta dúvida dentro de mim, por que tudo isso? Se falava de obediência, então tem a ver comigo..”
E padre Mario: “É dramático, porque a tudo isso não se responde, porém se pode responder a uma outra pergunta: para QUEM é tudo isso? Este QUEM é alguém que me quer bem ou me quer mal? Estou certa de que este Alguém me quer bem assim como meu marido, aliás, muito mais? Este é o ponto focal para todos, porque se entrar a suspeita sobre isso, cria-se uma confusão. Depois, o porquê, nos detalhes, saberemos no Paraíso”. Sim, no Paraíso.
Na terça-feira, Jacque acelerou o passo, estava terminando a sua viagem. Para mim foi uma companha fiel e paciente, sempre na luta, mas sem nunca perder a direção do caminho, aliás, indicando-o também a mim. É uma amiga preciosa para todos, que chegou em casa antes, fez de tudo para chegar, tinha a respiração curta por causa do cansaço, mas também pela fortíssima emoção que se experimenta pouco antes de ver o amor da própria vida.
É humanamente imprevisível tudo aquilo que nasceu ao redor dela. Um povo - sinal evidente da Sua Presença – tornou possível viver a morte (não sucumbindo-a como ofensa) dentro de uma companhia total com ela, inimaginável, diante da qual podemos apenas nos ajoelhar e agradecer por ter encontrado a Jacque no nosso caminho e por ter sido, junto com ela, amados e queridos e preferidos por Jesus, o amor da sua vida e também da nossa.
Eis que agora a Jacque O vê, conhece o porquê, sabe como as coisas são. Que ela nos torne participantes da sua alegria.
Dr. Samorani

Minha amizade com a Jacque começou por uma circunstância comum: uma doença, mais precisamente, por causa do câncer. Eu não conhecia a Jacque pessoalmente, apenas por mensagem no WhatsApp, recurso da tecnologia, que graças a Deus, nos aproximou tanto, mesmo estando do outro lado do Oceano Atlântico. Passamos por muitas coisas juntas, quimioterapia, enjoos, dores... e todos os sintomas que essa doença pode trazer, mas também descobrimos muitas coisas belíssimas com essa experiência, como ser testemunha uma para a outra do amor de Cristo pela nossa vida, a beleza de caminharmos juntas rumo ao nosso Destino. Ela mesma escreveu para mim: “Dani, desde que começamos a nos falar, estou aceitando de novo a viver a minha Cruz”; “Graças a Deus que te conheci amiga, presente de Deus, você me ajuda a entender o amor por Ele, viver sem Ele é impossível”... E ela viveu essa cruz junto com Cristo nessa semana Santa e também tenho certeza da sua ressurreição, mas como Cristo chorou pela morte de Lázaro, também eu choro e sinto falta da minha companheira de viagem. Sou muito grata por sua amizade e por seu testemunho.
Daniela Kim, São Paulo (SP)


 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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