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Passos N.96, Agosto 2008

EXPERIÊNCIA - ENCONTROS EM TODOS OS LUGARES

As dificuldades de nós, modernos, para entender a fé

pela Redação

Transcrição da palestra de Ricardo Fenati, professor de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, durante a apresentação do livro É possível viver assim? , em Belo Horizonte, em 4 de junho de 2008

Quando fui convidado a estar aqui recebi um pequeno texto de padre Carrón do qual comentarei duas frases: A primeira frase é: “Somos modernos e temos dificuldades para aceitar a fé”. Talvez ele se refira à nossa dificuldade de aceitar que a fé seja um caminho para entender. E a segunda frase é a seguinte: “Nós não podemos ser presunçosos e achar que o clima cultural que nos circunda não nos atinge”.
Uma primeira observação que gostaria de comentar no livro de Dom Giussani é a de que nós devemos partir de onde estamos. Nós estamos sempre em algum ponto, em algum lugar, em algum território, mesmo que nós não saibamos disso. A primeira pergunta então é “Onde nós estamos?”. Não existe um estado vazio, um estado de ignorância (“Ah, eu não sei onde eu estou”, ou “Eu não sei nada ainda”, “Não há nenhum ponto zero, nenhum ponto inicial”). Nós estamos sempre no interior de uma espécie de marco simbólico, de um conjunto de crenças que molda o mundo no qual nós vivemos, que quase determina o modo como nós agimos, como sentimos, o que procuramos, o que gostamos; assim como molda também o que nós não acreditamos, assim como molda aquilo que nós devemos ignorar. É uma espécie de lar: assim como temos uma casa física, nós temos um lar simbólico: esse conjunto de crenças que em última instância somos nós mesmos. Crenças sobre aquilo que é justo, que é injusto, sobre o valor que nós atribuímos aos nossos semelhantes (valor maior, valor menor), sobre o trabalho, sobre o amor, sobre a morte, etc.
Num certo sentido, nós nascemos velhos, nós temos a idade de nossas crenças e só muito tardiamente na vida é que nos rejuvenescemos. Na medida em que, com o tempo, nós nos tornamos capazes de identificar o que nos moldou, nós vamos rejuvenescendo. Então, primeiramente, qual é o contexto em que vivemos hoje e no qual conversamos sobre a fé?
Há uma historinha grega – talvez seja a história mais conhecida da filosofia – contada por Platão, chamada de “alegoria da caverna”. Platão dizia que no início nós estamos como que presos, acorrentados, como se todos nós estivéssemos numa caverna virados para o lado de dentro. Fora, na boca da caverna, há uma fogueira. Mas desde o nascimento nós só olhamos o fundo da caverna, só vemos aquilo que se passa no fundo. E entre a fogueira lá atrás e nós aqui, as pessoas passam, conversam, etc., mas nós só assistimos aquelas sombras que estão ali. Um belo dia um de nós se liberta e percebe que aquele mundo tomado como real é ilusório, o mundo real é aquele que se passa lá fora do qual esse mundo de cá é somente sombra.
Esta é uma historinha que serve para explicar um pouco o que é filosofia, o itinerário da filosofia e muitas coisas mais. E se eu modernizasse um pouquinho esta alegoria, eu diria hoje que nós estamos presos não só, como Platão retrata, à realidade sensível, a esta solicitação mais imediata que os sentidos provocam em nós, mas nós estamos presos a uma espécie de segunda caverna. Que segunda caverna é essa? É o conjunto de opiniões hegemônicas, dominantes, habituais. Porque o mundo no qual nós hoje vivemos é um mundo que está explicado demais, há um excesso de explicação e, se nós quisermos, de certa maneira avançar, o obstáculo a ser ultrapassado é esse excesso de explicações, este excesso de compreensão, esta ausência de silêncio. Este é o nosso obstáculo. Em Platão era muito fácil dizer: “Isso é um erro! Tomar a sombra como uma verdade é um erro porque o corpo vivo e real está passando ali atrás”. Hoje é muito difícil para nós porque estas opiniões todas se equivalem. Então, para nós é muito difícil estabelecer o que é correto e o que é incorreto.
As pessoas têm opiniões como se tem uma propriedade: “Esta é a minha opinião!”, como se isso tivesse maior importância. Claro que isso é o começo da conversa, mas não o seu final; nós partimos da opinião, mas ela não pode ser o final da conversa. No mundo no qual vivemos, a primeira grande dificuldade – estou seguindo Dom Giussani aqui – é o fato de estarmos emaranhados nesta teia na qual vivemos.
Dado este cenário, a pergunta é: “Quais são as experiências de realidade que nos convocam?”. Quais são as experiências de realidade às quais nós temos acesso? De uma forma muito simples: O que nos deixa surpreendidos? O que nos deixa aturdidos? Ou dizendo de outra forma, mais próxima do cristianismo agora: “O que parece a nós pertencer ao domínio do Mistério?”.
O problema é a nossa baixíssima capacidade de nos surpreendermos, de nos aturdirmos – quer dizer, a nossa recusa em sair do centro do palco. Mistério, em substância, é isso, é alguma coisa que me envolve, alguma coisa diante da qual eu não sou senhor. A primeira dificuldade é justamente esta palavra que nunca cessa e que – curiosamente – ao invés de funcionar como chave de compreensão do mundo, funciona como interrupção, como obstáculo de compreensão do mundo. Vivemos uma quase impossibilidade de ter acesso a experiências de Mistério. Então as experiências de encontro que poderiam romper esta barreira, romper esta teia. Se nós perdermos estas experiências, é a própria condição humana que se perde. Se perdermos estas experiências que explodem o nosso cotidiano, é a condição humana que se perde com elas.
Para nós humanos, essas experiências nos ensinam. Estas grandes experiências – das quais nos fala Dom Giussani – experiências às quais nós hoje temos pouco acesso, são as experiências verdadeiramente humanizadoras. Há um estranhamento que nos humaniza. Se nós perdermos esta capacidade de estranhamento, curiosamente, nós nos desumanizamos. Dizendo da maneira mais clássica: nós não estamos no mundo como se estivéssemos inteiramente em casa. Não que nós sejamos de outro mundo – nós somos deste mundo aqui –, mas há uma tarefa a ser feita; e se nós nos demitimos dessa tarefa, humanamente nós desaparecemos.
Creio que a primeira grande recomendação desse livro é esta: nós devemos estar atentos a estas experiências de amplidão. São experiências que nos obrigam a que nós nos ampliemos, experiências que nos obrigam a que nós nos apaixonemos pelo mundo.
Estas experiências fundamentais são experiências que, na condição humana, nos conduzem ao Cristianismo, conduzem à experiência cristã, no exercício de nos desacostumar.
Estas possibilidades são reais; é a condição humana tal como Dom Giussani está aqui descrevendo. É isso que significa o seu pedido para que sejamos razoáveis. Ele para que nós sejamos razoáveis, usando o termo assim como utilizamos na experiência cotidiana: “seja razoável, não atue desproporcionadamente à situação”. Então, ser razoável é estar perto desta realidade que ele acabou de descrever: Esta é a realidade humana; sejamos razoáveis diante disso. Ser razoável é acolher isso; num certo sentido, ser razoável é o contrário de ser racional. Ser racional significa impor um pouco os nossos limites à realidade, os limites da nossa lógica. Ser razoável é acolher esta ordem presente na realidade.
Quando padre Carrón diz que nós somos modernos e temos dificuldades para aceitar que a fé é um caminho para entender, é exatamente isso. Quando compreendemos esta dimensão de excesso da condição humana aí nós compreendemos que é razoável compreender isso aí, que é razoável aceitar isso aí, que é razoável partir disso aí. Negar isso não é razoável. Esta é a esperança de Dom Giussani, que é uma esperança inscrita na tradição de São Tomas, na tradição de Aristóteles. Esta é a primeira questão.

(Texto não revisto pelo autor)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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