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Passos N.95, Julho 2008

DESTAQUE - CHINA

Duas ou três coisas que entendi indo além da grande muralha

por Luca Doninelli

Os novos milionários. A importância dos cérebros. Cartão-postal de uma cidade onde se vive “como se o eu não existisse”. Mas onde se percebe que isso não basta

Não havia acontecido nada ainda no Tibete quando estive em Pequim. Mas, mesmo que houvesse acontecido algo, provavelmente minhas palavras seriam as mesmas. De fato, não é preciso ser especialista em geopolítica para entender que, enquanto houver um só chinês sobre a face da Terra, o Tibete não adquirirá independência, a não ser – e isso é sabido – à custa de uma guerra, que para a China seria uma guerra de defesa.
Esse é um problema que existe há milhares de anos; anos que, na China, correm de maneira estranha, parecem imóveis e, de repente, se aceleram fulminantemente.
Gostaria de relatar aqui algumas coisas que ficaram indelevelmente gravadas em minha mente durante a viagem por esse mundo especial, com uma civilização que não tem nenhuma raiz em comum com a nossa, que conta o tempo e olha o homem de um outro modo, mas que pode, em poucos anos, se tornar familiar a nós.

O fator humano
Existe uma China moderníssima e riquíssima. Muitos milionários, que acumularam fortunas imensas, sobretudo graças ao mercado financeiro. Há 350 milhões de ricos e novecentos milhões de pobres na China.
Entrar em Pequim pelo aeroporto causa grande impressão: de repente, nos vemos cercados por uma imensa floresta de arranha-céus, muitas vezes maior do que Manhattan (em Nova York). A maior parte desses edifícios têm menos de oito anos. Terrenos que, em 2000, eram ainda parte da zona rural e que foram transformados em moderníssimos centros de negócios. Todos os maiores escritórios de arquitetura do mundo deixaram aqui a sua marca.
O povo chinês é formado por muitas etnias diferentes; chegam a 24, me disseram. Pequim localiza-se no norte do país, próxima à Grande Muralha. Viajando pelo norte, encontramos regiões ainda pouco habitadas, como a Mandchúria ou a Mongólia, com paisagem lunar. Os jovens de Pequim são bonitos, altos e vestem-se segundo a moda. Conversando com eles, percebemos enorme energia: querem conquistar o mundo. E logo!
Conquistar o mundo é um desejo saudável. Para isso fomos feitos. Eis porque os chineses me inspiram simpatia. Disseram-me que, nos Estados Unidos, um estudante do ensino médio não sabe quem foi Dante Alighieri, enquanto que na China circulam pelo menos sete traduções da Divina Comédia, e Dante é muito apreciado pelos jovens (que o lêem como uma espécie de evolução de Harry Potter).
Um funcionário da embaixada italiana me diz que em Pequim a população universitária gira em torno de um milhão de pessoas e que as universidades – entre públicas e privadas – são quase uma centena. Em muitas áreas de alta especialização, os pontos de excelência encontram-se aqui, não mais nos Estados Unidos. A China já começou a importar cérebros.
Suas empresas comerciais têm sede de relações internacionais. São muitíssimas as empresas italianas que mantêm relações comerciais com a China, e o número aumenta cada vez mais, apesar de os especialistas viverem dizendo que a China é um império de papel, que se trata de uma bolha de sabão que vai implodir, bastando que os Estados Unidos decidam furá-la...
Eu pouco entendo de economia, e menos ainda de finanças. É o fator humano que me interessa. A força da China não está só em seus recursos financeiros ou em sua capacidade de se renovar economicamente, mas em sua perspectiva humana.

Os pobres de Mao
A classe dirigente, a aristocracia econômica e os intelectuais não gostam de Mao Tsé-Tung. Para muitos, ele foi um fator de atraso; por exemplo, destruindo a universidade, mandando os professores para o campo e trazendo-os de volta após quatro anos.
Mas na praça Tiananmen – a maior praça do mundo – forma-se durante todos os dias do ano uma fila interminável de pessoas que vão visitar o mausoléu de Mao. O quadro que a gente vê dá uma dor no coração! São pobres, pertencem a raças diferentes dos nascidos em Pequim, e dá para perceber que a roupa que vestem é a única que possuem. Eles amam Mao; esperam pacientemente o momento de ficar diante do corpo dele. Consideram-no um verdadeiro pai. E têm razão. Nesse país comunista não existem sindicatos, não existe nenhuma tutela para o trabalhador, nenhuma proteção para os mais fracos (incluindo aí os deficientes), nenhum tipo de previdência social. A proteção dos idosos cabe aos filhos, ou melhor, ao filho, pois desde 1979 vigora uma lei que proíbe – para frear o crescimento populacional – os casais de terem mais de um filho.
Naturalmente, quem quiser ter mais filhos pode tê-los, mas tem que pagar ao Estado algo em torno de sete mil dólares. Isso significa que só as famílias ricas podem permitir-se ter mais de um filho. Desse modo, o Estado calcula que, no espaço de algumas gerações, o número de ricos superará o de pobres, estes destinados à extinção gradativa. No dia em que isso acontecer, o que farão os chineses ricos para conseguir os meios de sobrevivência?
Enquanto aguardamos a resposta a essa pergunta, observamos que o homem, na China, deve valer muito pouco, sob o domínio desse tipo de lei.
O que é o homem? Na Uibe, uma das maiores universidades econômicas de Pequim, sou convidado a falar sobre “A Itália e o mar”. O tema me dá a oportunidade para discorrer sobre o nascimento do homem europeu. Os que me escutam – entre os quais diversos professores – ficam impressionados com a dramaticidade desse nascimento. O reconhecimento do valor da pessoa humana, fonte de direitos, toca-os profundamente.
Um deles me explica que, enquanto o Império Romano baseou-se na lei, o chinês alicerçou-se nos administradores, no aparato burocrático. “A vossa civilização”, diz ele, “reconheceu desde logo o valor da pessoa”. Explica-me que o chinês é psicólogo, sabe distinguir os movimentos do espírito, sabe ler nos olhos, mas não considera a ontologia do homem. O homem é uma questão administrativa. O eu não existe, não tem consistência.
Aliás, visitando os museus, ou a Cidade Proibida, ou o belíssimo Templo do Céu (o mais apreciado), outras observações nos levam na mesma direção. O fato de os vasos – belíssimos – serem muito semelhantes entre si, não importando a época em que foram feitos; o fato de que, aí, a diferença entre “original” e “cópia” não parecer essencial; o fato de contarem o tempo não por anos ou séculos, mas por dinastias (o tempo é dos deuses, do imperador, que é também um deus); o fato de os nomes dos lugares jamais contemplarem o homem (sempre “Porta da Paz Celestial”, “Palácio do Alimento do Espírito”, “Sala da Tranqüilidade Terrestre”), confirma a impressão de que o homem não era o verdadeiro cidadão dessa terra.

O segredo para roubar
Aliás, nem é tão certo que os deuses se lembram de nós! Por que deveriam fazê-lo?
Quando o avião volta a se aproximar da Europa, fico pensando que, por estas paragens, alguém, há muitos anos, levantou o olhar por cima do seu rebanho, dos seus campos ou da sua trilha no deserto, e disse: “O que é o homem, para dele te lembrares?”.
Volto com a memória aos meus encontros com os professores universitários, àqueles com os jovens da Uibe e dos cursos da língua italiana na Sociedade Dante Alighieri. Se a cultura que dominou por séculos na China, e da qual o comunismo chinês é a última expressão, colocou entre parêntese o eu, como se não existisse, apesar disso ele existe, e pode ser visto na força, no desejo de conquista, na ânsia de conhecimento de tantas pessoas e, sobretudo, na nostalgia daquela pergunta.
Eu disse a um gentilíssimo professor: “Vocês podem pegar tudo o que fizemos: as obras de arte, as catedrais, os palácios. Mas jamais poderão roubar-nos o eu”.
“Mas é justamente esse o segredo que mais nos interessa”, respondeu ele.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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