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Passos N.94, Junho 2008

CULTURA - CINEMA

A telona posta à prova

por Carlo Dignola

Para muitos o cinema é apenas um passatempo. Mas o que se pode aprender com os filmes? Quais são os critérios para escolher o que assistir? Fizemos estas perguntas a um grupo de pessoas apaixonadas e especialistas no assunto, para entender como, partindo de uma história contada por imagens, é possível captar algo mais da realidade

Basta observar à sua volta: grupos de jovens juntam-se nos finais de tarde em frente às salas de cinema dos shoppings ou enturmam-se para assistir a um DVD. Ou consultar os jornais, blogs e fóruns de bate-papo na internet para constatar as muitas opiniões e comentários sobre a concessão do Oscar aos irmãos Coen ou sobre as aventuras de Juno, sobre o último Sean Penn ou o penúltimo Muccino. Há um renovado interesse pelo cinema. Essa forma de expressão parece ter uma relação especial com o nosso tempo, diferentemente de outras épocas, pois afeta profundamente um público muito mais amplo. Mas é possível ir ao cinema para entender alguma coisa da vida e não só para se distrair um pouco? O cinema pode ajudar na educação?
Fizemos essas perguntas a um pequeno grupo de profissionais italianos e a pessoas que conhecem bem esse setor, jornalistas, agentes culturais, jovens cinéfilos. Antonio Autieri dirige uma revista de cinema, Box Office, uma associação que procura promover filmes de qualidade, além de ter criado o site www.sentieridelcinema.it. Uma aventura da qual participa também Beppe Musicco, jornalista especializado no assunto. Stefano Cozzi e Marco Sebastiani são dois jovens de 18 anos, alunos do Ensino Médio, companheiros nas “fugidinhas” para o cinema. Leonardo Locatelli trabalha no Escritório de Pesquisa e transferência tecnológica da Universidade de Bergamo; o tempo livre ele o passa na companhia de Terrence Malick e Stanley Kubrick; colabora com o site www.ilsussidiario.net. Luca Marcora formou-se, com Francesco Casetti, em Filmologia na Universidade Católica de Milão.

Vamos começar pelos jovens. É verdade que há uma redescoberta do cinema?
Stefano: Sim. Porém, muitos o consideram acima de tudo como uma forma de entretenimento. Vão ver os filmes hollywoodianos à base de efeitos especiais, com atores famosos. Buscam um momento de distração, uma fuga.

Hoje se vê mais filme na telona ou na tela pequena?
Stefano: Muitos desses filmes passam na TV. Nós, porém, gostamos mesmo é de ir ao cinema. Usamos a internet para recuperar títulos especiais, que não encontramos mais tão facilmente nas locadoras. Eu prefiro os filmes antigos, até mesmo os do cinema mudo: de Dreyer, Tarkovskij, a Fellini. Eu sei, sou uma espécie de “dinossauro”! Mas eu vejo também coisas mais recentes: por exemplo, gostei de Persépolis, um filme iraniano de animação. A mera distração não me interessa. Sair da vida por algumas horas não me atrai. Se o cinema fosse um mundo à parte, não lhe dedicaria tanto tempo assim. Vendo um filme, procuro sempre encontrar algo a respeito de mim mesmo.
Marco: Eu e Stefano somos um tanto atípicos em relação aos nossos colegas. O pessoal com quem eu jogo basquete, por exemplo, jamais iria assistir Onde os fracos não têm vez, dos irmãos Coen. Os rapazotes de 15 anos enlouquecem com Eu sou a lenda, um filme de ficção científica. Que, aliás, nem é tão ruim.

Numa época em que as artes – literatura, pintura, escultura, música clássica – parecem muitas vezes exercícios escolares para alguns poucos fanáticos por trabalho, por que o cinema atrai ainda o grande público?
Beppe: Eu tenho duas filhas universitárias; com freqüência elas se encontram com os amigos para ver um DVD. Sabem que eu tenho uma livraria com centenas de títulos, mas o que me pedem é algo que cause espanto, assombre; eles querem alguma coisa que “prenda”. Os efeitos especiais são o caminho mais rápido para obter esse resultado, uma espécie de droga barata ao alcance de todos. No fundo, é uma coisa que desperta admiração, algo que uma arte como o cinema pode, de fato, oferecer.
Antonio: Sempre gostei da surpresa, da descoberta que podemos fazer junto com outras pessoas. O cinema é uma arte democrática. Para nós, técnicos, pode virar inclusive uma rotina. No entanto, depois de tantos anos, ainda acho legal propor aos amigos algum título pouco conhecido; raios de verdade e de beleza podemos encontrar em qualquer lugar. Num festival, no mesmo dia vamos assistir a um filme sabendo que na sala estarão apenas mais uns três ou quatro jornalistas; e talvez logo em seguida passe O senhor dos anéis, que atrai multidões. E o interessante é que ambos podem te agradar.
Luca: Eu vou pouco ao cinema. Aproximei-me desse mundo quando tinha onze anos, porque os meus pais me deram de presente um videocassete, e enchi a casa de fitas e DVDs. Sempre gostei da abordagem “histórica”: quando ficava sabendo que um canal de TV que lá em casa pegava mal ia passar, por exemplo, uma cópia restaurada de Noites de Cabíria, pedia à minha tia que a gravassse pra mim. É um grande filme. O cinema me fascina porque é sempre o ponto de vista de um outro homem sobre a realidade, quer seja a Itália pós-guerra descrita por Rossellini ou a Armênia de Sergei Parajanov, a Rímini de Fellini ou o mundo pós-moderno de Tarantino. É um olhar ao qual, por um instante, eu me apego. E que logo em seguida passo a avaliar.
Leonardo: Eu ia ao cinema aos sábados à tarde, com meu pai, no salão paroquial de nossa cidadezinha; para ver Cliffhanger, com Sylvester Stallone, ou Jurassic Park. Depois, veio 2001: Uma odisséia no espaço, talvez porque o jornalzinho da paróquia falava bem dele; nesse dia, entendi que precisava saber tudo desse Stanley Kubrick. A força do cinema, diferentemente de outras artes, é mais imediata. Não é preciso ter estudado para usufruir plenamente dele. O novo mundo, de Terrence Malick, é para mim um filme extraordinário. Sangue Negro, de Paul Thomas Anderson, também é um belo filme, mas assustador. Malick, ao invés, fala de uma beleza que me toca.
Beppe: Eu me recordo quando Dom Giussani, nos Exercícios, nos fazia ver Dies irae, de Dreyer: o fato de propor um filme, naquele contexto, era uma escolha que me impressionava muitíssimo. Hoje me parece que muitas famílias são indiferentes ou têm um juízo negativo a respeito do cinema: para a educação dos nossos filhos – pensam – o cinema é prejudicial. Duas posições erradas, me parece. A indiferença é nefasta: de fato, não é a mesma coisa que os filhos vejam uma coisa ou outra. Mas também a desconfiança preconceituosa é negativa. Nas primeiras vezes em que ouvi Dom Giussani propor certos filmes, como Deus precisa dos homens, fiquei confuso: eram filmes difíceis. Precisávamos ter uma atenção igual à dele, mas isso também para olhar o cinema do nosso tempo e não só o do passado.
Luca: Os filmes devem ser lidos em profundidade: Menina de ouro, de Clint Eastwood, por exemplo, foi muito criticado porque foi lido como uma defesa da eutanásia. No fundo, porém, havia um drama verdadeiro, uma questão forte: em minha opinião, não era algo de se desprezar.

Quais são os filmes mais recentes que, na opinião de vocês, valem a pena serem vistos?
Beppe: A Rosa Branca – Sophie Scholl; A vida dos outros; Onde os fracos não têm vez, que ganhou quatro Oscars, e é baseado num livro de Cormac McCarthy; Fargo – Uma comédia de erros, dos irmãos Coen, era melhor, mas também esse é um belo filme. Também O escafandro e a borboleta, a história de um jornalista francês que se torna paraplégico; seu primeiro desejo é morrer, depois entende que a vida é um dom, evidente inclusive para quem só pode mover uma pálpebra. Em exibição há agora Juno, a história de uma menina de 16 anos que fica grávida e decide não abortar: grande filme.
Antonio: A voz do coração, no cinema, não alcançou nenhum sucesso, Feliz Natal (“Joyeux Noel”) praticamente não foi exibido nas salas de cinema. É entusiasmante para alguém que trabalha nesse setor ver um filme que estava morto encontrar novos caminhos. Alguns títulos são divisores de água: alguns os adoram, outros os odeiam. Na natureza selvagem (“Into the wild”), por exemplo, para mim é um grande filme. Muitas vezes nos deixamos influenciar pelo nome do diretor: Sean Penn é um “comunista”, um anti-Bush... No entanto, nesse caso, fez um filme muito religioso.

Mas o cinema é capaz de educar?
Antonio: Tem grande potencialidade, enorme capacidade de convencer. É um instrumento que até na escola pode ajudar muito. Um filme pode tocar tão fundo que é capaz de provocar mudanças na pessoa. Fiquei sabendo que em muitos cursinhos para noivos os vigários passavam o filme italiano Casomai: às vezes, os jovens entendem melhor certas coisas por meio de um filme, em vez de muitos discursos. Mas o cinema pode também deseducar: quem não está habituado a um determinado uso da razão pode ser capturado por uma forma de comunicação tão direta e forte como essa.

Um filme pode mudar a vida de uma pessoa?
Stefano: Pode ser a ponta do iceberg. Se impressionar a pessoa no momento certo, tudo pode acontecer. Eu me lembro de um momento preciso: uma noite, eu assistia Sonhos, de Kurosawa, e diante daqueles quadros desconexos, dos quais eu não entendia praticamente nada, mas que tinham uma força estética incrível, para mim abriu-se um mundo.
Luca: A cinematografia oriental evoca de modo eloqüente a beleza: Kurosawa, Ozu, Mizoguchi, são autores capazes de fixar a câmera durante quinze minutos num enquadramento, contemplando uma cerejeira florida. Em geral, nós, ocidentais, damos preferência à forma em detrimento da mensagem.
Marco: A gente vive, caminha, faz o que precisa ser feito, mas como vegetais... Depois vê um determinado filme e, de repente, toma consciência de que está adormecido na vida. É isso, o cinema freqüentemente funciona como um despertador.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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